A fome é casta. Era isso que repetia para mim mesmo, a caminho da montanha. Fiz baldeação em Pindamonhangaba (nem sei se é assim que se escreve). Lá tomaria o bondinho. A castidade da fome era minha experiência recente. E ia aprender, em Campos do Jordão, que não há doença mais erótica do que a tuberculose.
Bem. Agora não é assim. Falo do tempo em que a tuberculose tinha o nome parnasiano de “peste branca”. Em 1934, ainda não se esgotara a boa época do pneumotórax. E, se não me engano, saltei em Pindamonhangaba em abril. O frio já começara em Campos do Jordão. Mas falei nas tremendas fixações eróticas da velha tuberculose. E vou contar, rapidamente, certo episódio do sanatório.
É o caso de um cantor de tango que veio de Santos para a montanha. Cantor de tango, mas brasileiro de Jaboticabal. Tinha uma cavidade num dos pulmões e fazia pneu. Ganhou uma cama de canto, na minha enfermaria. No meio do tratamento, apanhou uma pleuris. Mais um pouco e a água virou pus.
E aí começou o martírio. Era queimado, ao mesmo tempo, pelo frio e pela febre. Trinta e nove, quarenta, trinta e nove, quarenta. Tinha uma mulher, uma filhinha, e não recebia carta de ninguém. Repetia, dia e noite: — “Ainda não morri e já me esqueceram”. Falava como se o tuberculoso fosse o mais traído dos seres. Uma noite, ouve-se o seu grito: — “Sangue, sangue!”. Alguém acende rapidamente a luz. Era a hemoptise. Veio o médico de plantão. Ainda me lembro do olho enorme do medo.
Depois soube que ele cantava tango em cabarés ordinaríssimos de cais. Mas não tinha salário; punha um pires ou um prato, no chão, como um cego, e os crioulões da estiva, marinheiros louros e as prostitutas bêbadas pingavam, lá, a sua moeda. Mas ele estava morrendo. E, súbito, começou a odiar a mulher. Cachorra, cachorra. Xingou-a de todos os nomes. Era terrível de se ver a sua agonia pornográfica.
Quiseram levá-lo para o isolamento. Reagiu, babando sangue: — “Morro aqui, aqui”. Queria morrer no meio dos outros, olhando alguém, alguém. E, então, foi deixado em paz. Horas antes de morrer, deixou de odiar a esposa. Agora o ódio era um desejo triste, tardio, inútil. A enfermaria toda, numa unanimidade homicida, queria a sua morte. Nenhuma pena e só irritação. E o que assombrava era que ainda tivesse sangue para jorrar no balde.
Bem me lembro de sua última manhã. Só os olhos viviam, só os olhos vazavam luz. Cerca de umas nove, dez horas, entra a crioula, baiana, d. Maria, que todas as manhãs varria a enfermaria. O médico e o enfermeiro tinham acabado de sair. Os outros doentes estavam na varanda, tomando sol nas pernas. E, na enfermaria, o moribundo levantava-se do fundo de sua agonia. Via a preta (magra e velha), varrendo, mudando os lençóis e as fronhas. Saltou da cama e veio, cambaleando, atropelar a criada. Esta pula para trás, desprende-se, uma fúria. As canelas finas e espectrais não sustentam mais o moribundo. Quando os outros entraram, viram, no chão, a ossada aluída. Era, sim, apenas uma ossada com uma pele diáfana por cima.
A baiana apanhara a vassoura, a mão ambas, e ia fender-lhe o crânio. Os outros carregavam o homem de Jaboticabal, enquanto a arrumadeira esganiçava palavrões. E, ali, morreu o cantor, agarrado ao seu último desejo. Daí a pouco, o corpo era retirado para a capelinha. Mas a agonia lasciva contaminara toda a enfermaria. Não se falou em outra coisa, só de mulheres. E cada qual teve uma súbita e inconsolável nostalgia de antigos, espectrais namoros. Um era viúvo; e pôs-se a falar, com sombrio élan, da falecida. Era gorda. E, na enfermaria, o sujeito, lembrando os desejos fenecidos, gabava as graças físicas da mulher. E dizia-lhe do seio: — “Parecia gelatina”. A saudade carnal dava-lhe uma salivação intensa.
Mas tudo isso que contei acima aconteceu muito depois. Preciso falar do primeiro dia de Campos do Jordão. Salto na estação e sou ferido pelo frio. Lembro-me de um sujeito que me dizia: — “Em Campos do Jordão, até os pardais são tuberculosos”. Pois bem. Tomo o táxi: — “Me leva no Sanatório Popular”. O chofer diz: — “Ah, o Sanatorinho”. Eu estava tão batido que o diminutivo me fez bem. Sanatorinho. Gostei da ternura inesperada do nome. Sanatorinho.
Da estação até lá, era uma distância bem pequena: — talvez uns cinco minutos. Mas ia olhando, pessoas, casas, árvores, animais, com uma curiosidade intensa, devoradora. De 1934 para cá, já rolaram 33 anos. E tudo está vivo, tenso, em mim. Ainda hoje tenho de pinheiro, de certos verdes, de penhascos, uma espécie de ódio paisagístico. É que não perdôo nada em Campos do Jordão, nem seus luares, nem suas estrelas e céus.
Salto no Sanatorinho. Era todo construído em madeira. Imaginei, apanhando o troco do chofer: — um incêndio, ali, havia de lamber tudo, num minuto. Pouco depois, estava apertando a mão do dr. Hermínio, o amigo do dr. Brown. Dou-lhe a carta. Estou vendo a cara de Hermínio cheia de espinhas (naquele tempo, o brasileiro tinha mais espinhas). Ele acabou de ler; guarda a carta. E começa.
“O Brown diz que você não pode pagar nada. Você não pode pagar?”
Um escrúpulo doeu em mim; mas tomei coragem e respondi, vermelho, mas firme: — “Não posso pagar”.
Hermínio enfiou as duas mãos nos bolsos do avental: — “Você vai ficar na enfermaria de indigentes”.
Acho que fiquei branco. No Rio, ouvira falar em “indigente”. Mas a palavra me soara impessoal; havia entre mim e ela uma distância; não me sentira “o próprio indigente”. Agora a indigência me tocava, e comprometia, e feria. Vamos andando eu e o Hermínio para a outra ala. Ele ia explicando: — “Lá, os doentes em bom estado, como você, varrem a enfermaria, mudam a roupa de cama. Serviço leve”.
Paro: — “Quer dizer, dr. Hermínio, que vou ter que varrer, mudar a roupa de cama, não é, dr. Hermínio? É só?”.
Ele completou: — “Uma vez por semana, serve à mesa”.
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