segunda-feira, 11 de maio de 2009

Capítulo 35 - A Menina sem Estrela

A fome é casta. Era isso que repetia para mim mesmo, a ca­minho da montanha. Fiz baldeação em Pindamonhangaba (nem sei se é assim que se escreve). Lá tomaria o bondinho. A casti­dade da fome era minha experiência recente. E ia aprender, em Campos do Jordão, que não há doença mais erótica do que a tuberculose.
Bem. Agora não é assim. Falo do tempo em que a tubercu­lose tinha o nome parnasiano de “peste branca”. Em 1934, ain­da não se esgotara a boa época do pneumotórax. E, se não me engano, saltei em Pindamonhangaba em abril. O frio já come­çara em Campos do Jordão. Mas falei nas tremendas fixações eróticas da velha tuberculose. E vou contar, rapidamente, cer­to episódio do sanatório.
É o caso de um cantor de tango que veio de Santos para a montanha. Cantor de tango, mas brasileiro de Jaboticabal. Ti­nha uma cavidade num dos pulmões e fazia pneu. Ganhou uma cama de canto, na minha enfermaria. No meio do tratamento, apanhou uma pleuris. Mais um pouco e a água virou pus.
E aí começou o martírio. Era queimado, ao mesmo tempo, pelo frio e pela febre. Trinta e nove, quarenta, trinta e nove, qua­renta. Tinha uma mulher, uma filhinha, e não recebia carta de ninguém. Repetia, dia e noite: — “Ainda não morri e já me es­queceram”. Falava como se o tuberculoso fosse o mais traído dos seres. Uma noite, ouve-se o seu grito: — “Sangue, sangue!”. Alguém acende rapidamente a luz. Era a hemoptise. Veio o mé­dico de plantão. Ainda me lembro do olho enorme do medo.
Depois soube que ele cantava tango em cabarés ordinaríssimos de cais. Mas não tinha salário; punha um pires ou um prato, no chão, como um cego, e os crioulões da estiva, marinhei­ros louros e as prostitutas bêbadas pingavam, lá, a sua moeda. Mas ele estava morrendo. E, súbito, começou a odiar a mulher. Cachorra, cachorra. Xingou-a de todos os nomes. Era terrível de se ver a sua agonia pornográfica.
Quiseram levá-lo para o isolamento. Reagiu, babando san­gue: — “Morro aqui, aqui”. Queria morrer no meio dos outros, olhando alguém, alguém. E, então, foi deixado em paz. Horas antes de morrer, deixou de odiar a esposa. Agora o ódio era um desejo triste, tardio, inútil. A enfermaria toda, numa unanimi­dade homicida, queria a sua morte. Nenhuma pena e só irrita­ção. E o que assombrava era que ainda tivesse sangue para jor­rar no balde.
Bem me lembro de sua última manhã. Só os olhos viviam, só os olhos vazavam luz. Cerca de umas nove, dez horas, entra a crioula, baiana, d. Maria, que todas as manhãs varria a enfer­maria. O médico e o enfermeiro tinham acabado de sair. Os ou­tros doentes estavam na varanda, tomando sol nas pernas. E, na enfermaria, o moribundo levantava-se do fundo de sua ago­nia. Via a preta (magra e velha), varrendo, mudando os lençóis e as fronhas. Saltou da cama e veio, cambaleando, atropelar a criada. Esta pula para trás, desprende-se, uma fúria. As canelas finas e espectrais não sustentam mais o moribundo. Quando os outros entraram, viram, no chão, a ossada aluída. Era, sim, ape­nas uma ossada com uma pele diáfana por cima.
A baiana apanhara a vassoura, a mão ambas, e ia fender-lhe o crânio. Os outros carregavam o homem de Jaboticabal, en­quanto a arrumadeira esganiçava palavrões. E, ali, morreu o can­tor, agarrado ao seu último desejo. Daí a pouco, o corpo era retirado para a capelinha. Mas a agonia lasciva contaminara to­da a enfermaria. Não se falou em outra coisa, só de mulheres. E cada qual teve uma súbita e inconsolável nostalgia de antigos, espectrais namoros. Um era viúvo; e pôs-se a falar, com som­brio élan, da falecida. Era gorda. E, na enfermaria, o sujeito, lembrando os desejos fenecidos, gabava as graças físicas da mulher. E dizia-lhe do seio: — “Parecia gelatina”. A saudade carnal dava-lhe uma salivação intensa.
Mas tudo isso que contei acima aconteceu muito depois. Preciso falar do primeiro dia de Campos do Jordão. Salto na es­tação e sou ferido pelo frio. Lembro-me de um sujeito que me dizia: — “Em Campos do Jordão, até os pardais são tuberculo­sos”. Pois bem. Tomo o táxi: — “Me leva no Sanatório Popu­lar”. O chofer diz: — “Ah, o Sanatorinho”. Eu estava tão bati­do que o diminutivo me fez bem. Sanatorinho. Gostei da ter­nura inesperada do nome. Sanatorinho.
Da estação até lá, era uma distância bem pequena: — tal­vez uns cinco minutos. Mas ia olhando, pessoas, casas, árvores, animais, com uma curiosidade intensa, devoradora. De 1934 pa­ra cá, já rolaram 33 anos. E tudo está vivo, tenso, em mim. Ain­da hoje tenho de pinheiro, de certos verdes, de penhascos, uma espécie de ódio paisagístico. É que não perdôo nada em Cam­pos do Jordão, nem seus luares, nem suas estrelas e céus.
Salto no Sanatorinho. Era todo construído em madeira. Ima­ginei, apanhando o troco do chofer: — um incêndio, ali, havia de lamber tudo, num minuto. Pouco depois, estava apertando a mão do dr. Hermínio, o amigo do dr. Brown. Dou-lhe a carta. Estou vendo a cara de Hermínio cheia de espinhas (naquele tem­po, o brasileiro tinha mais espinhas). Ele acabou de ler; guarda a carta. E começa.
“O Brown diz que você não pode pagar nada. Você não pode pagar?”
Um escrúpulo doeu em mim; mas tomei coragem e respon­di, vermelho, mas firme: — “Não posso pagar”.
Hermínio enfiou as duas mãos nos bolsos do avental: — “Você vai ficar na enfermaria de indigentes”.
Acho que fiquei branco. No Rio, ouvira falar em “indigen­te”. Mas a palavra me soara impessoal; havia entre mim e ela uma distância; não me sentira “o próprio indigente”. Agora a indigência me tocava, e comprometia, e feria. Vamos andando eu e o Hermínio para a outra ala. Ele ia explicando: — “Lá, os doentes em bom estado, como você, varrem a enfermaria, mu­dam a roupa de cama. Serviço leve”.
Paro: — “Quer dizer, dr. Hermínio, que vou ter que var­rer, mudar a roupa de cama, não é, dr. Hermínio? É só?”.
Ele completou: — “Uma vez por semana, serve à mesa”.

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