terça-feira, 12 de maio de 2009

Capítulo 36 - A Menina sem Estrela

A ala dos indigentes era do outro lado. Parei no meio do corredor. Na dispnéia da fúria, comecei: — “Quer dizer, dr. Hermínio, que eu vou, eu vou ter que varrer, mudar a roupa de cama, e, ainda por cima, servir à mesa?”.
O médico dizia, risonhamente: — “Mas é o que todos fa­zem. Quem precisa faz”. Disse “quem precisa faz” de uma ma­neira cordial, quase doce e, ao mesmo tempo, firme, inapelável.
Até aquele momento tudo me parecia irreal. Irreal a tuber­culose; fantástico, Campos do Jordão. E o próprio Sanatorinho, feito de madeira, como se fosse de brinquedo, era tudo falso. Olhei em torno. Nunca me esqueço: — vi um doente apanhan­do e desatarraxando uma escarradeira de bolso e lá cuspindo. Comecei a detestar o dr. Hermínio, os internados e até a tarde que descia, invisível, sobre os pinheiros.
Todo mundo me olhava. E a nossa conversa, no fim do corredor, era a vida real. Comecei a viver, e só então, a minha tuberculose. Disse-lhe: — “Dr. Hermínio, vamos fazer o seguinte. Quanto é que se paga aqui por mês?”. E me imaginava mudando a fronha dos travesseiros e varrendo a enfermaria.
Dr. Hermínio respondeu: — “Bem. Tem quarto particular e enfermaria. Enfermaria, 150 mil-réis”.
Ergui o rosto: — “Pago os 150 mil-réis. Pago”.
Ele me olhava com uma simpatia divertida: — “Como qui­ser”. Havia um leito vago na enfermaria. Pouco depois, vinha a mala e fui ocupar a minha cama. Ficava numa extremidade, junto da janela. O dr. Hermínio explica, sumariamente: — “Ca­fé na mesa, das sete às nove; almoço, às onze e meia; repouso absoluto, de uma às três; jantar às seis; silêncio, às nove”. Era a casa dos mortos. Casa dos mortos.
Na enfermaria, existiam todas as formas da doença: a mais comum, pulmonar; de laringe; óssea; e outras, sei lá. Hoje, o tuberculoso nem tosse; e não deixa a sua casa, os seus móveis, os seus afetos. Ainda outro dia me dizia um tuberculoso recente: — “Eu não sei o que é tosse, o que é expectoração, o que é febre”. Mas, em 34, fui encontrar, na enfermaria, lesões de quinze, dez, oito anos; e, à noite, era uma fauna misteriosa e tristíssima de tosses.
Saiu dr. Hermínio e fiquei, junto da cama, mudando a rou­pa. Vesti o pijama de lã e, por baixo deste, um suéter grosso. Troquei as meias por outras de lã. E sentei-me na cama. Tinha medo, eis a verdade, tinha medo. Nunca houve um homem tão só, homem mais só. Pensava: — “Se eu piorar, desço imediata­mente. Quero morrer em casa”.
Vou comparar outra vez o velho doente e o novo. O tuber­culoso de hoje, salvo os casos agudos, namora, casa, beija. Na­quela época, havia o pavor do contágio. Eu me lembro de que, nos primeiros dias de Campos do Jordão, perguntei aos médicos: — “Entre marido e mulher, há contágio?”. Dependia. Falaram em contágio maciço. Beijo era contágio maciço.
Dizia eu, num capítulo recente, que o tuberculoso era, en­tão, o mais traído dos seres. Na minha segunda ou terceira noi­te de sanatório, conversamos sobre o nosso feio destino. Lembro-me de um baiano, comerciante de jóias (não sei se de jóias, se de espelhos). Fizera, há pouco, toracoplastia, a mons­truosa operação. Sem várias costelas, ele adernava para um la­do. E dizia numa fúria de mutilado: — “O sujeito, aqui, recebe carta na primeira semana; menos na segunda; menos ainda na terceira; e nada, a partir da quarta”.
Agora me lembro: — chamava-se Lemos. Falava muito nas próprias costelas: — “O sujeito que faz essa operação não po­de amar nu”. E havia, por trás de suas palavras, uma vaidade absurda do ombro aluído e da cicatriz. Levantava a camisa e mos­trava o corte, radiante. Suspirava: — “Vou ficar aqui, morrer aqui. Se descer, mato a minha mulher. Mato”. Estava casado, continuava casado. E há dez anos não recebia uma carta, um bilhete, um recado, nem da mulher, nem dos filhos. Lembro-me de que, certa vez, no almoço, comendo cozido, afirmou com uma satisfação terrível: — “Eu estou morto, eu morri”.
A partir de certa hora, na treva, começavam as tosses da madrugada. Eis o que queria dizer: — as tosses tinham o seu horário como o canto dos galos. E me lembro de que, por ve­zes, a enfermaria ficava acordada, até tarde, tecendo no escuro as suas fantasias eróticas. Um dizia: — “Eu preciso de um ro­mance. Um romancezinho. Sem romance, não vai”. E, uma noi­te, me perguntaram: — “E você?”. Queriam a minha opinião. Como jornalista, redator de O Globo, era muito ouvido e mui­to adulado.
Diziam de mim: — “Tem o intelectual muito desenvolvi­do”. Respondi: — “Eu sou do amor eterno”. O baiano da toracoplastia teve um riso feroz: — “Você fala assim porque tem todas as costelas. Eu, não. A mim dão bola de cachorro”. Ah, o desejo era triste no Sanatorinho.
Eu estava lá havia um mês, um mês e pouco, quando apa­receu uma égua em nosso mato. Lindo, lindo animal. E como era uma figura plástica, elástica, ornamental, e de nariz fino, e crinas violentas, alguém disse: — “Cavalo árabe”. Até que, uma tarde, aparece no mesmo terreno um cavalo. Era o casal. Por certo, o recém-chegado não era bonito, nem elástico, nem escultural como a companheira. Mais vira-lata do que árabe. Ti­nha um russo manchado e as orelhas pendiam humilhadíssimas.
Já tocara o repouso absoluto. Duas e tanto da tarde. E to­dos os doentes, inclusive os febris, apinhavam as janelas. Fui um dos que subiram na cama e espiaram a cena. O cavalo ron­dava, grave e triste, a companheira. Entre os dois, uma distân­cia de uns dez metros. Os doentes esperam cinco, dez, quinze minutos. Um de nós grita: — “Vai, seu bobo!”. Outro esbrave­ja: — “Não quer nada!”. Houve um momento em que o animal se afastou. Rompeu um desespero no Sanatorinho.
Ele está longe, olhando para o fundo da tarde. Até que, de repente, volta. O sanatório, em peso, deixa de respirar. Ardiam, em todas as janelas, as fomes de sexo. O desejo anônimo e ge­ral também pastava. Ninguém dizia nada. Um internado, que ia morrer dois dias depois, agarrava-se ao vidro, na dispnéia pré-agônica. Não sei quanto tempo passamos, ali, com as sacadas debruçadas sobre aquele amor. Depois, ainda olhamos o cava­lo que se retirava, levando a tristeza grave da posse acrobática. Os doentes saíram das janelas, numa desesperada euforia. Só o baiano da toracoplastia teve uma prodigiosa crise de choro. Soluçava: — “Vou descer pra Salvador. Vou matar minha mulher”. Ninguém disse nada. O sonho subia de nossas entranhas como uma golfada.

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