quarta-feira, 13 de maio de 2009

Capítulo 37 - A Menina sem Estrela

“Se disser mais uma palavra, te parto a cara!” O chofer esbravejava, cara a cara com Simão. Era um comovente e lúgubre cabaré do interior paulista. E o outro espetava o dedo no peito do Simão: “Tu não é homem. E quando me encontrar, atravessa a rua!”. O homem diz isso, enche o peito e olha, uma por uma, as caras que o rodeiam. Ao lado de Simão está a sua pe­quena vestida de amarelo. Na mesa, uma garrafa de cerveja, dois copos. E súbito, o chofer apanha o copo e atira a cerveja na cara do Simão.
Imaginei que, aí, encharcado de cerveja, haveria reação. Nada, nada A enfermaria estava ouvindo a história do Simão, contada pelo próprio Simão. Ele vinha de uma cidadezinha paulista (só não me lembro do nome). Sua cama era ao lado da minha. Alguém perguntou: — “E você? Você?”. A cerveja escorria da cara descia, pelo pescoço, entrava por dentro do colarinho. E Simão não fez nada. Baixou a cabeça e começou a chorar.
Ele passou uma hora contando, sem parar. Todos nós ou­vimos, sem uma palavra, e fascinados pela covardia do Simão. A coisa começara meses atrás. Simão e o outro gostaram da mes­ma prostituta e ao mesmo tempo. E a pequena o escolheu. As­sim começara o ódio. Onde quer que o chofer visse o Simão, vinha desfeiteá-lo.
Nunca, em momento nenhum, alguém foi tão humilhado. E o chofer dizia: — “Te dou na boca! Na boca!”. Até que, um sába­do, Simão apareceu na casa de mulheres. Veio a pequena e sentou-se a seu lado. Pouco depois, entra lá o chofer. Entra, olha e vem direto. Diz, alto, forte: — “Simão, levanta para apanhar na cara”. Simão ergue-se: parecia oferecer o rosto. Disse: — “Bate”.
O outro bateu. Simão esperava pela bofetada, desejava a bofetada. Deu um pulo para trás. Ao voltar, tinha o revólver na mão. Foi atirando. Primeiro, na barriga, depois no peito, na bar­riga novamente e outra vez no peito. Continuou atirando. Mu­lheres de verde, amarelo, vermelho tinham ataques. O chofer girou sobre si mesmo e ainda levou duas balas nas costas. Sua cara era de espanto, apenas de espanto, e não de medo. Morreu de bruços. Espantado.
Só quando Simão contou o crime é que se desfez a tensão desesperadora dos ouvintes. Uma alegria feroz inundou a en­fermaria. Uns sentaram-se na cama; outros acenderam, com a mão trêmula, o cigarro; e um paraibano, com cara de sagüi, riu em falsete como índio de filme. E todos se sentiam os felizes co-autores do crime antigo.
A enfermaria tinha um jornalista, que era eu; um negociante de espelhos; um ator de circo, Scaramouche; um cantor de tan­go; um farmacêutico; um campeão de bilhar francês; o Tico-Tico, que não era nada, senão tuberculoso mesmo e estrábico; e um assassino, o Simão. Era espanhol e deixara, na cidadezi­nha, uma portuguesa, que era seu amor. Havia nove ou dez anos que ele estava em Campos do Jordão. Era outro que dizia: — “Se eu sentir que vou empacotar, desço. Quero ser chorado por minha mãe”.
Um dia, o Simão me chamou: — “Vem ver. Olha ali”. Era uma mulher, atarracada, descalçada, que subia o caminho do morro. (Diante do Sanatorinho havia um morro. Os doentes em bom estado podiam ir até lá em cima, pela manhã e à tarde.) Lembro-me de que, de repente, a mulher parou e acenou para o Sanatorinho. Não sei quantas janelas retribuíram. E o curioso é que, desde o primeiro momento, Simão saltou: — “É minha! Vi primeiro!”.
Uns oitenta doentes tinham visto, ao mesmo tempo. Mas o Simão era um assassino. Como ele próprio dizia, sem ódio, quase com ternura, “matei um”. E o crime pretérito intimidava os demais. Constava que trouxera, na mala, com a escova de dentes, as chinelas, um revólver. Naquela mesma tarde, foi pa­ra a cerca, esperar a volta da fulana. E conversaram na porteira. Simão voltou, desatinado. Conversara a fulana. Queria um en­contro, na manhã seguinte, no alto do morro.
A outra não prometera nada. Ia ver, ia ver. Simão estava possesso: — “Dez anos!”, e repetia, quase chorando: — “Dez anos não são dez dias!”. Campos do Jordão estava cheio de casos parecidos. Nada mais cruel do que a cronicidade de cer­tas formas de tuberculose. Eu conheci vários que haviam completado, lá na montanha, um quarto de século. E o pró­prio Simão falava dos dez anos como se fosse esta a idade do seu desejo.
Pouco antes do toque de silêncio, entrou na enfermaria um dos enfermeiros. Se não me engano, chamava-se Aparecido. (Guardei do Sanatorinho muitas caras e pouquíssimos nomes. Lembro-me também de pijamas, de chinelões e mais: — de um copo de prata, de atarraxar, e com flores desenhadas em rele­vo. Mas não era copo, era escarradeira de bolso.) O enfermeiro entra e senta-se na cama de Simão. Começa: — “Não te mete com aquilo. É doida. Já esteve internada”. O outro reagiu: — “Doida é melhor. Não faz mal. Igual às outras”. De noite, o Si­mão quase não dormiu. De vez em quando, até alta madruga­da, eu o via, no escuro, acender o cigarro. Virava-se, revirava-se, debaixo de cinco, seis cobertores.
Na manhã seguinte, foi o primeiro a acordar. Quando fui, de toalha no pescoço, para o banheiro, estava lá, na pia, esco­vando os dentes, com feroz élan. Depois, na enfermaria, ape­sar do frio, mudou a camisa-de-meia. Antes, lavara com álcool debaixo do braço. Pôs um suéter, de quadradinhos, presente da portuguesa. Nunca o usara, nunca. Alguém disse: — “Estás cheiroso pra burro”. Ele saiu dizendo que ia se casar.
Havia uma tosse da madrugada e uma tosse da manhã. Eu me lembro daquele dia. Nunca se tossiu tanto. Sujeitos se tor­ciam e retorciam asfixiados. E, súbito, a tosse parou. Todo o Sanatorinho sabia que, no alto do morro, o Simão ia ver a tal mulher do riso desdentado. E justamente ela estava subindo a ladeira. Como na véspera, deu adeus; e todas as janelas e varan­das retribuíram. Uma hora depois, volta o Simão. Foi cercado, envolvido: — “Que tal?”. Tinha uma luz forte no olhar: — “Tem amanhã outra vez”. Durante todo o dia, ele quase não saiu da cama: — sonhava. Às seis, seis e pouco, um médico entra na enfermaria. Falou pra todos: — “Vocês não se metam com essa mulher que anda por aí, uma baixa. Passou, hoje de manhã, subiu a ladeira. É leprosa”. Ninguém disse nada. O próprio Simão ficou, no seu canto, uns dez minutos, quieto. Depois, levantou-se. No meio da enfermaria, como se desafiasse os ou­tros, disse duas vezes: — “Eu não me arrependo, eu não me arrependo”.

Um comentário:

Carol Freitas disse...

Sempre bom, sempre intenso...

:)