quinta-feira, 14 de maio de 2009

Capítulo 38 - A Menina sem Estrela

Eu me tornei, e cada vez mais, amigo de Simão, o assassi­no. Mas se era assassino, não devia ser meu amigo. Depois da morte de Roberto, eu vivia dizendo: — “Tudo, menos assassi­no”. Seria amigo do canalha, amigo do ladrão, do cáften. Ad­mitiria todas as abjeções. Abraçaria o pulha integral. Não o as­sassino. E quando Simão falou dos seis tiros, pensei na bala única que matou Roberto.
Mas ouvira Simão dizer: — “Quero morrer junto de minha mãe, chorado por minha mãe”. E se ele falava assim, e sentia assim, talvez não fosse tão assassino. Ainda agora, batendo à má­quina, penso no chauffeur varado de balas. O sujeito que leva seis tiros não tem tempo para o grito. E o chauffeur há de ter sentido apenas o espanto, sem entender aquela constelação de estampidos. Era covarde o Simão; mas, de repente, a covardia tornara-se homicida e cuspia fogo.
E quando ele falou em morrer em casa, imaginei a minha própria morte. Ao subir para Campos do Jordão, e durante to­da a viagem, repetia para mim mesmo: — “Se eu morrer, quero morrer em casa. Não no Sanatorinho, em casa”. E me imagina­va segurando a mão de minha mãe e minha mãe chorando por mim. Eu me lembro de meu irmão Joffre. Tempos depois, ele estaria morrendo em Correias, no sanatório de lá. Disse, no fun­do do seu delírio: — “Quero morrer em casa”. É o que o Si­mão queria, o que todos querem.
No sanatorinho, aprendi a olhar no fundo da nossa brutal e indefesa fragilidade. Ninguém é forte. Essa vontade de ser cho­rado geme em nós. Ah, os meus amigos atuais: — o Hélio Pellegrino, o Otto Lara Resende, o Borgerth da Ducal e o Cláudio Mello e Sousa. Eu os quero e eles me fascinam porque são débeis, e tão meninos. Certa vez, há um ano, ano e pouco, o Cláu­dio viveu uma dessas provações que ninguém esquece. O caso é que ele passa na caixa do Jornal do Brasil para receber. En­fiou a cara no guichê com uma boa-fé lancinante. E soube de tudo: — estava demitido. Ainda gaguejou, branco: — “O quê? Como?”. Essa demissão, à queima-roupa, sem nenhuma insinua­ção anterior, devastou-o. O pânico baixou, ali mesmo. Era co­mo se ele visse, cara a cara, a própria morte. Desceu não sei se pela escada, não sei se pelo elevador. Embaixo, rangia os den­tes de orfandade. Olhava em torno. Era como se até os edifí­cios o espreitassem para esganá-lo.
A cara do Cláudio demitido. Era assim que olhavam no Sanatorinho os que iam morrer, os que estavam morrendo e os que simplesmente tinham medo. De vez em quando, vejo, no Otto, no Hélio, no Borgerth e por um brevíssimo momento, a mesma cara de espanto que faziam em Campos do Jordão. É o olhar de quem está pedindo que alguém os chore, imediata­mente.
Bem, eu me perdi e volto ao Sanatorinho. Quando o médico falou em “leprosa”, toda a enfermaria parou (e o Simão estava no seu canto, acuado). Mas ninguém duvidou, nem o próprio Simão. A verossimilhança era irresistível. Aquela mulher, que ia buscar lenha todas as manhãs, tinha, sim, orelhas, nariz, beiços mais que suspeitos. E o pior eram as bochechas de máscara de Carnaval. Ninguém disse nada. O médico ainda foi de cama em cama, olhan­do o gráfico da temperatura. Disse a um que estava com 38 de febre: — “Repouso absoluto. Come na cama”.
Quando o dr. Hermínio saiu (com as duas mãos enfiadas no avental), três ou quatro correram para o lado do Simão. Lembro-me de que o baiano dos espelhos teve um comichão no braço. Passou as unhas na coceira imaginária, coceira induzida. Foi aí que o Simão disse e repetiu, num desafio maligno: — “Eu não me arrependo, eu não me arrependo”.
Não houve horror. Um espanto moderado, uma pequena an­gústia. Em 1934, o tuberculoso só era fiel, estritamente fiel à pró­pria doença. Uma tosse mais intensa soltava todos os nossos pa­vores. Estávamos, ali, numa construção de madeira e tão frágil, quase de palito, Muitas vezes, na mesa, na cama, na varanda, me sentia indigente. Era pagante, mas aí é que está: — me senti indigente. A maioria não esperava nada da vida, nem de ninguém. Eu me lembro de como se morria no Sanatorinho. O sujeito man­dava chamar a mãe, a mulher, o filho. E não vinha ninguém. O próprio Sanatorinho desaconselhava à família: — “É melhor não vir. Não adianta”.
E ninguém vinha. Minto. Certa vez, apareceu, lá, a mãe de um garoto. Mas chegou tarde: — o filho já estava enterrado. E o que nos preservava era um desespero cínico, um fatalismo jucundo. Vejo um sujeito, junto da pia, escovando os dentes e dizendo: — “Eu acredito na minha mãe e só na minha mãe”. Havia na ala dos indigentes um finlandês que, de vez em quan­do, vinha visitar os pagantes. Naquela manhã, apareceu lá; dis­se, com alegre impiedade: — “Tuberculose ou lepra é a mesma coisa”. Essa autoflagelação radiante fez todo mundo rir. Mas o riso puxava a tosse. O doente procurava disciplinar-se para não chegar jamais à gargalhada.
Na manhã seguinte, estava todo mundo na varanda. E, de repente, ouve-se o grito: — “Lá vem ela!”. Era a fulana que su­bia a ladeira. Durante vários meses, nós a veríamos passar, to­das as manhãs, mesmo na geada. E foi um alarido nas janelas e nas varandas. A mulher fazia gestos, esganiçava o riso, pulava como um índio de cinema. O médico da véspera passou; viu aquilo e disse: — “Vocês não têm vergonha?”. Mas ele próprio sabia que ninguém, ali, podia ver mulher. E depois que a fulana sumiu no alto do morro, houve de repente um silêncio. Rom­pia de todos os cantos uma voluptuosidade triste.
Alguém veio perguntar ao Simão: — “Você teria coragem?”. Ele estava na cama, debaixo de uns cinco, seis cobertores. Res­pondeu outra coisa: — “Estou com temperatura”. Tiritava. Fui perguntar: — “Quanto?”. Ele respondeu: — “Trinta e oito”. Passou o dia todo de termômetro na boca: — 39, 39,5, 40, 39,8. Esteve, de tarde, na radioscopia. O dr. Hermínio espiou e dis­se: — “Uma pequena piora”. Ao voltar para a enfermaria, Si­mão dizia: — “Vou chamar minha mãe”. Sentei-me na cama: — “Mas que é isso e por quê?”. Ele sabia que, em Campos do Jordão, a morte não esperava. O sujeito corado da véspera, gor­do da véspera, podia ser o defunto do dia seguinte.
Meu amigo Simão, o assassino. Um insinuou: — “E a por­tuguesa?”. Respondeu, arquejando: — “Não interessa a portu­guesa. Quero minha mãe”. No dia seguinte, telefonaram para a velha espanhola: — “O Simão pediu para a senhora subir”. Tudo aconteceu numa progressão fulminante. Os médicos ex­plicavam que eram velhas doenças não curadas da mocidade. E o pulmão estava pegando fogo. Estou vendo o médico entrar e dizer para o Simão: — “É melhor você ir para o isolamento”. Lá se foi o Simão. No corredor, e na cama empurrada, repetia: — “Quero minha mãe”. Quando estive no isolamento, ele agar­rou minha mão: — “Não morro antes de minha mãe chegar”. Sua dispnéia era de se ouvir no fundo do corredor.
Mas a velha espanhola chegava de vestido preto, magra, uma cara pétrea de dor. Simão não enxergava mais. Com os olhos de cego, pediu: — “A mão, a mão”. Apanhou a mão, guardou-a no peito. E de repente, a sua agonia ficou tão doce, e tão man­sa. Quando ele morreu, foi a velha que entrelaçou as mãos do filho e com que estremecido amor.

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