sexta-feira, 15 de maio de 2009

Capítulo 39 - A Menina sem Estrela

Com a morte de Simão, o assassino, tudo ficou mais triste. De repente, mais triste. Comecei a achar que o Sanatorinho era feito de madeira de caixão. E também os pinheiros, e a lenha que a leprosa ia buscar no alto do morro. Tudo era madeira de caixão.
Vejo a mãe de Simão na volta do cemitério. Entrou na en­fermaria. Apertou a mão dos doentes, um por um (e sua mão era áspera e máscula). Deu-me a sensação de que tinha um olho maior que o outro e que o olho enorme não pestanejava. Disse para mim: — “Apareça”. E, de preto, firme, ereta, a fronte al­çada, parecia uma velha morta há muito tempo. Defuntos os seus modos, e vestido, e meias, e sapatos, e o coque antigo.
Já não sei se disse “apareça”. Por que diria “apareça”, eis o que me pergunto, por que diria? Ela apanhou as coisas de Si­mão, nem tudo. A escova de dentes estava num copo. Mas por que levar a escova de dentes? (E, ao mesmo tempo, teve por um momento a tentação de levá-la.) Depois, fomos olhar a sua par­tida. O táxi a esperava. Enquanto a vimos, Simão parecia menos morto. Mas entrou no táxi, sem dar adeus, com as coisas do filho num embrulho (embrulho amarrado com barbante).
E quando o automóvel arrancou e sumiu mais adiante, sen­timos como se o Simão estivesse morrendo outra vez. O pior foi a cama sem lençol, sem travesseiro e o colchão tão nu e ca­da vez mais nu. Foi nessa noite, de repente, que começou a minha gratidão por Roberto Marinho.
Quando morria um doente antigo, a tosse da madrugada vinha mais cedo. Sim, vinha antes do canto dos galos. (Eu não me lembro de nenhum galo e o Sanatorinho não tinha galos. Mas eu ouvia o seu canto subindo na noite.) Simão estava lá ha­via muitos anos; dava-se com todo o Sanatorinho. E, além dis­so, era assassino, o único assassino entre duzentos ou trezentos doentes. Duas, três da manhã, e começou a tosse.
E tossindo o sujeito tinha medo. Ouço um companheiro dizer, numa cama próxima: — “Estou com um gosto horrível de sangue”. Outros sentavam-se na cama para tossir melhor. Al­guém gemia: — “Meu Deus, meu Deus”. Havia um menino na enfermaria, dos seus catorze anos; começou a chorar. Enquan­to os outros tossiam, eu pensava em Roberto Marinho.
Na minha insônia, imaginava as hipóteses mais cruéis. Via Roberto Marinho chamando Mário Filho e dizendo: — “Vou sus­pender o dinheiro do Nelson. O Globo está fazendo economia etc. etc.”. Se Roberto dissesse isso, cortasse meu ordenado, eu estaria morto. Poderia passar para a ala dos indigentes. Nova­mente me imaginei varrendo o chão, mudando a roupa de ca­ma, fazendo pequenos serviços. E o que mais me humilhava era servir à mesa.
“Não faço isso”, eis o que decidia. E, ao mesmo tempo, comecei a imaginar outras e outras cenas. Caso fosse despedido, desceria imediatamente. Desceria e iria falar com Roberto. Eu me via entrando em O Globo. Todos me fariam festa. Na mesa, estaria o Manoelzinho Gonçalves. Mais adiante, o Rafael Bar­bosa reescrevendo a matéria alheia.
Ninguém, ali, imaginaria o meu ódio. E eu diria: — “Ro­berto, você me despediu. Eu vou morrer, mas você vai morrer comigo”. Faria com o Roberto o que o Simão fizera com o chauffeur. E me imaginava, em plena redação, ali no antigo edifício do Liceu, atirando, atirando. Bem me lembro de que, na­quela ocasião, dizia o Sodré Viana: — “Se me despedirem, e se minha família passar fome, mato o patrão. Mato”. E o patrão ou era o Herbert Moses ou era o Roberto Marinho.
Passei a noite em claro. Fiz a minha fantasia homicida com toda a sorte de variações. Se eu desandasse a dar tiros, que fa­riam os redatores? Sim, como reagiria Horácio Cartier, o estilis­ta? Cartier andava pela redação chamando todo mundo de “mi­nha flor”. E que faria ele se eu começasse a dar tiros? Subiria na mesa? E os outros, derrubariam cadeiras?
Depois, eu preso. Alguém berrando: — “Chama a Assistên­cia”. E, de repente, o crime imaginário ficava tão parecido com o assassinato do meu irmão. E quando arrancaram o queixo de Kennedy com um tiro, era o meu irmão que morria. Onde quer que matem alguém, é ainda meu irmão que morre, assassinado, eternamente assassinado.
Fumando no escuro, ouvia agora a voz de Roberto Mari­nho: — “O que me interessa é que o Nelson fique bom”. E, de repente, enquanto o Sanatorinho tossia, começou a minha gratidão. Ali, descobri subitamente tudo: — sou muito mais suicida do que homicida. Ainda hoje, não posso chegar numa janela alta. Basta olhar para baixo. E me vem o apelo doce, persuasivo, da morte. Pergunto: — “E se me atirasse?”. Se me atirasse, começaria para mim o tempo dos mortos: eu seria um deles; e ficaríamos unidos, mortos e unidos, docemente mor­tos e irmãos.
(Trinta e tantos anos depois, Roberto Marinho me chama. Conversamos no seu gabinete da rua Irineu Marinho. E ele me disse: — “Nelson, vou fazer o seguinte. Estive pensando e vou transferir as minhas ações do Jornal dos Sports para o Paulinho”. Ainda conversamos algum tempo. Ali estava, na minha frente, com seus 62 anos, Roberto Marinho, e era menino, tragicamente menino.)
Na manhã seguinte ao enterro do Simão, o diretor de O Glo­bo deixara de ser a “besta do Roberto”, o “cretino do Rober­to”. Ainda hoje, há quem o chame de pulha, de canalha. E eu o vejo inclinar-se para meu irmão Paulo com tanto amor. E co­migo? Passei três anos sem trabalhar. Ele me deu cada tostão do meu tratamento. No fim do segundo ano, eu já estava bom. Mas meu irmão Joffre caiu doente. Joffre era amado por mim como um filho. Quis acompanhá-lo. Roberto Marinho me disse: — “Vai, vai”. Passei sete meses, em Correias, ao lado de Jof­fre. Só desci quando ele morreu. E Roberto Marinho solidário, momento a momento. E quando, muito mais tarde, passou pa­ra Paulinho as suas ações, sai do seu gabinete arrasado. Lembro-me de que alguém, que vinha passando, quis sair comigo. Eu disse: “Vou ali um instantinho”. Fui chorar no mictório.

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