sábado, 16 de maio de 2009

Capítulo 40 - A Menina sem Estrela

Se me perguntarem quando é que comecei a ser Nelson Rodrigues, eu diria que foi na Escola Prudente de Morais, na Tijuca. Eu estava, se não me engano, no quarto ano primário. A escola ficava perto do Hospital Evangélico. E, um dia, houve, na aula, um concurso de composições.
Geralmente, escrevíamos sobre vacas de estampa. Desta vez, porém, a professora deu-nos liberdade de assunto. E hou­ve, ali, entre meninos e meninas, uma furiosa competição. Era o tempo em que eu me apaixonava, obrigatoriamente, por to­das as professoras. Já disse que fui, por toda a minha infância, um Werther, pequenino e cabeçudo. No dia em que me matri­culava, eu começava a amar minha professora. Ainda não a co­nhecia, não a tinha visto e me crispava de amor.
Houve o concurso e ganharam dois alunos: — eu e outro garoto. Por coincidência, os vencedores eram os dois gênios da classe. O meu rival escrevera sobre um rajá, que passeava num elefante. Não acontecia nada, rigorosamente nada. Ou por ou­tra: — só acontecia o passeio. Mas julguei notar, no texto inimi­go, um lapso grave: — seu rajá não tinha um diamante na testa, o diamante que eu poria se fosse o autor.
Minha composição era todo um gesto de amor desespera­do. Eu escrevia para a professora, isto é, para o ser amado. E me lembro de que começava assim: — “A madrugada raiava san­güínea e fresca”. Confesso que fiz o plágio com um secreto ter­ror. E se a professora gritasse: — “Esse ‘sangüínea e fresca’ é do Raimundo Correia!”? Seria a humilhação feroz, a vergonha total. As meninas já me chamavam de maluco. E que diriam elas se eu fosse pilhado saqueando o pobre soneto?
Eu não sabia que também Raimundo Correia furtara de um outro. E, na verdade, o que eu cometi, aos sete anos, foi o plá­gio de um plágio. Mas a “sangüínea e fresca” madrugada havia de doer, por muitos e muitos anos, na minha consciência lite­rária. Já adolescente, descobri que o poeta patrício metera a mão no pombal de Théophile Gautier. E, mais adiante, verifiquei que o plágio é menos incomum de que imaginavam os meus sete anos.
Falo do nosso Carlos Drummond de Andrade. Quem não conhece os seus “mortos de sobrecasaca”? Versos maravilho­sos, não há dúvida. Mas a imagem final, admirável, suscitou-me uma vaga ou, por outra, uma obsessiva dúvida. De onde a co­nhecia? E quanto mais relia, mais aquele som me parecia fami­liar e comprometedor. Até que, subitamente, baixa uma luz e um nome brota da minha perplexidade: — Victor Hugo.
Eis a verdade: — a imagem do Drummond era uma goiaba que o nosso poeta nacional fora caçar no pomar hugoano. Fei­ta a constatação, eu me aliviei, e para sempre, do sentimento de culpa. Mas a professora não percebeu nada. Parou na primeira frase. Disse, pondo o dedo na imagem: — “A madrugada raiava sangüínea e fresca”. Estava deslumbrada (ainda a vejo. Tinha papada e eu a amava). O menino do rajá olhou para mim com um ódio adulto. E as meninas, que me chamavam de maluco, já sorriam. Se eu quisesse, se não fosse fiel à professora, teria arranjado umas duas namoradas por conta do plágio.
Em seguida, porém, veio o pânico. Eu passava do soneto para a mais deslavada A vida como ela é... E, por isso, escrevi que, ali, comecei a ser Nelson Rodrigues. A vida como ela é... é muito anterior à Última Hora, a Samuel Weiner. Data de 1922; nasceu de um plágio, na sala do quarto ano primário da escola pública. Com oito anos incompletos, eu contava um adultério, com todos os matadouros. O marido saía e a mulher, nas bar­bas indignadas dos vizinhos, chamava o amante.
Eu era um moralista feroz. E não fui, confesso, nada compassivo. Um dia, o marido volta mais cedo. Ao entrar em casa, vê aquele homem saltar da janela, pular o muro e sumir. A mulher caiu-lhe aos pés, soluçando: — “Não me mate! Não me mate!”. O marido agarrou-a pelos cabelos. E o que houve, em seguida, foi uma carnificina. Lembro-me de que a composição termina­va assim: — “Acabou de matá-la a pontapés”.
A professora acabou de ler e olhara para mim, aterrada. De­pois, levantou-se e foi mostrar o texto à diretora. Daí a pouco, apareciam, na porta, a professora e mais duas ou três. Uma de­las perguntou, baixo: — “É aquele? Da cabeça grande?”. Era eu, sim. Fui chamado. Levantei, vermelhíssimo. Todo mundo estava interessado no erotismo e na crueldade da história e dos personagens. No elogio, não. Quase me farejaram como se eu fosse um pequeno tarado.
Mas era ainda um escândalo risonho, um escândalo terno. Riam entre si. Perguntavam: — “Como é que você tem essas idéias?”. Eu baixava a vista, rubro de vergonha. E amei, como nunca, a professora da papada. Depois, veio o resultado: — eu e o garoto do elefante em primeiro lugar. Desprezei o rival, que não tinha posto o diamante na testa do rajá.
E, de repente, comecei a sentir que ninguém me compreen­dia. O plágio me reabilitou, por um momento, aos olhos das meninas. Pouco depois, porém, voltavam a me chamar de ma­luco. E, uma vez, eu escutei uma conversa de professoras. A mi­nha estava dizendo: — “Ele me olha como se. De um jeito que”. E outra baixava a voz: — “Não é normal”. Quando me viram, eu senti o julgamento. Era como se eu estivesse nu e todas me olhando.
E não sabiam de nada. Não imaginavam que eu era de uma pureza desesperadora. É certo que, uma vez, eu vira uma demen­te nua. E a pobre, humilhada e feia nudez fora meu espanto e meu medo. Eu amava a minha professora. Mas não olharia no buraco da fechadura o seu banho. Sempre, sempre, quis um amor eter­no; e que nem a morte fosse a separação.
Aos sete anos e, aos vinte e tantos, no Sanatorinho, eu que­ria amar para sempre e não trair. Mais tarde, eu saberia que trair um amor é uma impossibilidade. Mesmo com outra mulher é o ser amado que estamos possuindo. Ainda na Escola Prudente de Morais, eu li, certa vez, no jornal, o pacto de morte de um rapaz e uma menina. E pensei então, por outras palavras: quem nunca morreu com o ser amado, não sabe o que é amor e é um impotente da alma.

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