domingo, 17 de maio de 2009

Capítulo 41 - A Menina sem Estrela

“Mário Rodrigues era um passional”, disse Carlos Lacerda, acrescentando: — “E morreu de paixão”. Conversávamos na casa do José Luís Magalhães Lins, que fazia anos, ontem. Fomos uns vinte ou trinta amigos abraçar o aniversariante e comer-lhe a feijoada inexcedível. O curioso é que, ao comer a feijoada, eu me sentia abissínio e até agora me pergunto: — por que abissínio?
Cheguei lá, graças à fraterna carona do Otto Lara Resende. E todos, ali, eram meus amigos, desde o Almeida Braga, o doce Braga, até o Miguel Lins, o Armando Nogueira, o Celso Bulhões, o Adolpho Bloch. (Ah, o velho Adolpho da Manchete, com o seu perfil de Nero.) Eis o que eu queria dizer: antes do almoço, Carlos Lacerda começou a falar de Mário Rodrigues, o jornalis­ta que fascinara a sua infância.
Ora, meu pai é, na minha vida, uma figura obsessiva. Eu não seria o que sou, não teria escrito uma frase, uma linha, uma peça, se não fosse seu filho. Estou todo embebido de sua vio­lência e de sua fragilidade. Ainda agora, eu o vejo, doente, na cama, com a face escavada pela agonia. Eu me lembro de sua última noite. Da esquina, já se ouvia a sua dispnéia.
Morreu há 37 anos. Eu direi tanto tempo depois: — Mário Rodrigues foi o maior jornalista brasileiro de todos os tem­pos. Desde os sete anos, eu lia os seus artigos e me crispava de beleza. Ainda hoje, eu os releio: e eles preservam, através das gerações, o verbo fremente de justiça e de procela. E, no entanto, ninguém fala de Mário Rodrigues. Nas histórias jorna­lísticas, o seu nome não aparece. Há um silêncio e repito: — um vil silêncio.
Eu diria que o silêncio iníquo é também a glória. No almo­ço de ontem, Carlos Lacerda lembrou um episódio, que o feriu de espanto, quase de medo. Foi, se bem me lembro, em 1925. Carlos era então um menino de calças curtas e eu também um menino de calças curtas. Ele entra na rua Treze de Maio e vê um espetáculo, desses que ninguém esquece. Sim, a rua Treze de Maio estava transformada num súbito, gigantesco pátio de milagres.
E, então, aconteceu uma cena muito parecida com um pe­sadelo: mutilados largavam as muletas, ou as erguiam, para acla­mar um homem: — Mário Rodrigues. Mas que fizera este ho­mem para que, de repente, os aleijados, os cancerosos, os tísicos se prostrassem diante de sua imagem como de um santo?
O pátio de milagres não se instalara por acaso, debaixo de nossas sacadas. Meu pai premeditara tudo; ele chamara, pelo jor­nal, os pobres da cidade. E por quê? Imaginem vocês que meu pai fazia, na ocasião, uma campanha feroz contra o governo de Pernambuco.
O governador era, então, Sérgio Lorêto. E Mário Rodrigues não escrevia uma linha sem paixão. Hoje, o profissional de im­prensa pode ser um péssimo jornalista, mas é sempre um exí­mio datilógrafo. Naquele tempo, não. Meu pai jamais bateu no teclado de uma máquina. Escreveu milhares de artigos e tudo à pena. Eu o vejo na mesa enchendo tiras e tiras de papel almaço. E era, sempre, um Zola.
Mesmo escrevendo sobre um cano furado, tinha, sim, as iras de um Zola. Dizia horrores de Sérgio Lorêto. Dizia horrores de Sérgio Lorêto e de sua administração. Primeiro, foi ameaçado. A política pernambucana ainda se nutria de ódios shakespearianos. E eu não me esqueci, nunca, do caso de Trajano Chacon.
Durante toda a minha infância, eu ouvira falar de Trajano Chacon. Era um jornalista pernambucano “sem papas na língua”, como se dizia. Desafiou a onipotência de um poderoso local. Uma noite, foi cercado por quatro ou cinco sujeitos. E o mata­ram, ali mesmo, num canto de rua. O pior é que não foi a faca, nem a tiro, nem a navalha. Os assassinos usaram cano de chum­bo. Eu me lembro de alguém contando, lá em casa, o crime. Era um velho, que fazia o cigarro de palha e explicava: — “Tra­jano estava morto e ainda batiam. Os ossos ficaram que nem mingau”.
Durante a campanha contra Sérgio Lorêto, eu só pensava em Trajano Chacon. E se viessem capangas do Recife? E se ma­tassem meu pai a cano de chumbo? Nas minhas fantasias infan­tis, eu imaginava as ruas, as esquinas dizendo: — “Mataram Má­rio Rodrigues!”. E meu pai teria um enterro como nunca se viu no Rio de Janeiro. Quando passasse o carro de penacho o povo havia de chorar em cima do meio-fio.
Mas o governo de Pernambuco não queria matar meu pai. Mandou um conhecido perguntar: — “Quanto você quer?”. Era um Geraldo não me lembro de quê. Meu pai pensa, pensa e co­meça: — “Bem. Depende. Eu paro se”. E acabou pedindo uma quantia que, para a época, era astronômica. O intermediário toma um susto; objetou que “os outros” eram muito mais ba­ratos. Mostrou recibos de altas figuras da imprensa. Meu pai encerrou a discussão: — “Ou isso ou nada”. O sujeito saiu, pro­metendo uma resposta para o dia seguinte.
O fulano não voltou. Quem apareceu foi Souza Filho, esse sim, amigo de meu pai. Fechou o negócio. E meu pai recebia, em seguida, o dinheiro. Não precisaria escrever nada a favor; apenas não seria contra. E, com efeito, não houve, na época, um silêncio tão bem remunerado. No dia seguinte, A Manhã abre, em festa, as suas manchetes, contando todo o processo do suborno; e, ainda, nos cabeçalhos garrafais, meu pai anun­ciava que ia distribuir o dinheiro, até o último tostão, entre os pobres do Rio de Janeiro.
Daí o pátio de milagres que, em 1925, assombrou o meni­no Carlos Lacerda. Alguém que passasse por lá e visse aquela massa apavorante, havia de imaginar que éramos uma popula­ção de mutilados, de entrevados, de cancerosos. Quando meu pai surgiu, lá em cima, ergueu-se da multidão um gemido gros­so, vacum. Eu estava também na sacada. E quando o dinheiro começou a ser distribuído começou um lúgubre alarido. Foi da­do, como já disse, até o último tostão. Eu vi seres incríveis que, em vida, apodreciam em chagas. No fim, meu pai tirava o di­nheiro do próprio bolso e dizia: — “Dá, vai dando”.
E assim, ao cair da noite, desfez-se o pátio de milagres em­baixo das sacadas de A Manhã. Meu pai desceu, então; o Ford, de bigodes, o esperava, na porta. Na calçada, parou, um mo­mento, olhando a rua. E, então, alguém, agachado na treva, pu­la sobre meu pai. Eu me lembro apenas de um olho que era uma chaga. Tudo aconteceu tão depressa. Uma cara baixou e beijou a mão do meu pai. Depois, eu vi a sombra fugir, rente à parede. Não sei por que, mas quando penso nesse beijo ferido, eu acre­dito mais em mim mesmo e nos outros.

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