segunda-feira, 18 de maio de 2009

Capítulo 42 - A Menina sem Estrela

Bem. Vamos falar de teatro. Começarei perguntando: o que é reputação? Eis a verdade: — o que nós chamamos de reputa­ção é a soma de palavrões que inspiramos através dos tempos. Não sei se em toda parte será assim. No Brasil, é. Nada mais por­nográfico, no Brasil, do que o ódio ou a admiração. E uma das minhas experiências dramáticas mais consideráveis foi a seguinte.
Era ali, no antigo Teatro Serrador. A companhia da minha irmã Dulce Rodrigues estava levando a minha peça A mulher sem pecado, remontada por Rodolfo Mayer (A mulher sem pe­cado fora o meu primeiro texto teatral). Silêncio total na platéia. A peça vivia esse ponto de crise, que um poeta chamou de tensão dionisíaca. Eis o que acontecera no palco: — o per­sonagem central, que passara, até então, por paralítico, ergue-se da cadeira de rodas. “Não sou paralítico, nunca fui paralíti­co”, é ele próprio quem o diz.
Pois quando o mistificador se levanta, e confessa, ele pró­prio, a farsa crudelíssima, acontece o absurdo. Uma senhora da platéia — e que comia pipocas na primeira fila — deixa escapar um palavrão. E não em surdina. Foi, realmente, um palavrão ní­tido, límpido, inequívoco. Como havia um silêncio de morte, o som torpe ocupou todo o espaço acústico do teatro. Foi ou­vido da primeira à última fila, inclusive no palco.
Todo o elenco olhou a espectadora, gorda como uma viú­va machadiana. E como fazia calor, alguém julgou perceber, no seu pescoço, um colar de brotoejas. O falso paralítico, que se mata no final, ao encostar na fronte o cano do revólver, ainda a olhava, num mudo escândalo desolado. Eis o que eu queria dizer: — a obscenidade não foi, de modo algum, um protesto.
Pelo contrário: — era a adesão mais frenética ao espetáculo. Há um momento, numa peça, em que rompe, das profundezas da platéia, um êxtase cálido, irresistível. E o palavrão da gorda marcou, justamente, o instante de graça plena. Na minha perple­xidade, quis parecer-me que só a admiração pornográfica é válida.
Muito tempo depois do espetáculo, e com o teatro já va­zio, ainda estava no ar o palavrão em flor. Contei o episódio para concluir: — fora montado, na cidade, e no resto do país, todo um folclore pornográfico em torno do meu nome e de mi­nha obra. Sim, durante muito tempo a minha glória foi a soma de todos os palavrões que eu merecia das salas, esquinas e bo­tecos.
Tudo começou quando? A partir de Álbum de família, con­tinuando em Anjo negro, Senhora dos afogados, até meu texto mais recente, Toda nudez será castigada. Diziam de mim o dia­bo. Lembro-me de uma senhora que afirmou o seguinte: — eu dormia, vejam vocês, eu fazia a minha sesta num caixão de de­funto. E se o ouvinte fazia um esgar de dúvida, logo a santa se­nhora jurava: — “Pela vida dos meus filhos!”. Uma outra des­cobriu que eu sou necrófilo.
Eu me imaginava pulando o muro do cemitério e violando túmulos recentes. Ou, então, de mãos entrelaçadas, num cai­xão, ensaiando a minha própria morte. Tudo, rigorosamente tu­do, eu devo ao meu teatro. Sim, a imagem que as minhas peças vendem do autor é a de um sujeito agarrado às abjeções mais tenebrosas. Certa vez, um garoto perguntou festivamente ao meu filho Joffre: — “Teu pai é pederasta?”. Joffre, ainda adolescen­te, teve de agredir, fisicamente, o amigo ingênuo.
Lembro-me também da estréia da minha peça Perdoa-me por me traíres, no Municipal (foi produtor do espetáculo, e um dos intérpretes, o ator Gláucio Gil, que morreria, anos depois, diante das câmaras e microfones, fuzilado por um enfarte). Me­tade da platéia aplaudia, outra metade vaiava. E, súbito, num dos camarotes, ergue-se o então vereador Wilson Leite Passos. Empunhava um revólver como um Tom Mix. Simplesmente, queria caçar meu texto a bala.
Não creio que haja, no drama, desde os gregos, outro exem­plo de um original dramático quase fuzilado. Aos 54 anos de vida, eu paro um momento e penso nos amigos e inimigos dos meus textos. Sempre os tive, uns e outros, em generosa abundância. E ainda não sei, francamente não sei, qual o mais perni­cioso para o artista, se o que admira, se o que nega. Ou por ou­tra: — sei.
Eu devo muito e, quase dizia, eu devo tudo aos que me cha­mam, por exemplo, de “cérebro doentio”. Quando o vereador puxou o revólver, eu me senti justificado, teatral e humanamen­te. Eu estava no palco, representando (embora sabendo que sou o pior ator do mundo, quis me unir à sorte de uma peça que eu sabia polêmica). Eu me lembro de que, a propósito de Perdoa-me por me traíres, o dr. Alceu Amoroso Lima escreveu: — “Uma peça cuja abjeção começa pelo título”.
Quando li isso no dr. Alceu, fui possuído por uma certeza feroz: — “Estou certo”. Certo, moral, social, dramaticamente certo. E mais certo ainda como cristão. O Tristão, que anda es­casso de Jesus, indigente de Cristo, disse isso. Eu me lembrei de meu pai, que, na sua justiça muito mais lúcida e mais compassiva, escrevia: — “Quantas mulheres existem sem o direito de se conservarem fiéis?”.
Mas dizia eu que devo muito aos inimigos e muito pouco, ou quase nada, aos admiradores. Os meus admiradores quase me perderam. Quando escrevi Álbum de família, Manuel Ban­deira declarou, em entrevista a O Globo, entre outras coisas, que eu era, “de longe, o maior poeta dramático que já apareceu em nossa literatura”. É, como se vê, um elogio de ardente serieda­de. E quem o assina é um dos maiores poetas da língua.
Mas não sei se, hoje, Manuel Bandeira diria o mesmo. Há anos e anos que deixei de merecer o seu louvor. E é maravilhoso que assim seja. Os admiradores, inclusive o poeta, quase provo­caram a minha morte artística. Eis a amarga verdade: — durante algum tempo, eu só escrevia para o Bandeira, o Drummond, o Pompeu, o Santa Rosa, o Prudente, o Tristão, o Gilberto Freyre, o Schmidt. Não fazia uma linha sem pensar neles. Eu, a minha obra, o meu sofrimento, a minha visão do amor e da morte. Tudo, tudo passou para um plano secundário ou nulo. Só os admiradores existiam. Só me interessava o elogio; e o elogio era o tóxico, o vício muito doce e muito vil. Pouco a pouco, os que me admiravam se tornaram meus irresistíveis co-autores. E quando percebi o perigo, o aviltamento, comecei a destruir, com feroz humildade, todas as admirações do meu caminho.

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