terça-feira, 19 de maio de 2009

Capítulo 43 - A Menina sem Estrela

Já falei do cantor de tango que foi parar no Sanatorinho. Era, em Santos, uma espécie de Gardel ou, mais modernamen­te, de Hugo del Carril. E cantava por esmolas, como um cego. Anos depois, vim a conhecer os falsos cegos da vida literária. Eles faziam o seu romance, o seu poema, o seu conto, a sua pe­ça. Em seguida, corriam o pires, recolhendo e embolsando os elogios.
Por exemplo: o doce e formidável Jorge de Lima. Era um cego, meu Deus, docemente cego, como um que toca acordeão, na rua do Ouvidor. Outro dia, fui ver o Zé Luís, no Banco Na­cional de Minas Gerais. O ceguinho tocava, na sanfona, a “La cumparsita”. E Jorge de Lima era exatamente assim. Quando saiu Invenção de Orfeu, ele andava de pires, esperando que cada qual pingasse o seu ditirambo.
A meu ver, ele era, e é, o maior poeta brasileiro. E, no en­tanto, comportou-se na vida literária como o ceguinho da rua do Ouvidor ou o falso cego do Sanatorinho. Quando percebi que ele estava de pires na mão, fiz-lhe os elogios mais alucina­dos. Lembro-me de que, certa vez, respondendo a uma enquete de Paulinho Mendes Campos, disse: — “Depois de Invenção de Orfeu, o Brasil está cheio de ex-grandes poetas”. E Jorge de Lima retribuiu logo, crispado de gratidão. Mandou-me um livro e me chamou, na impulsiva dedicatória, de “o grande” Nelson Rodrigues.
Eis o que eu queria dizer: — eu também andei de chapéu, ou de pires na mão, pedindo pelo amor de Deus que me elo­giassem. Se me perguntarem se eu fiz os papéis mais humilhan­tes, eu direi que fiz, sim, os papéis mais humilhantes. Tudo o que eu escrevia saía mostrando, de porta em porta. Eu me lem­bro de minha primeira peça, A mulher sem pecado. Minha in­tenção inicial, e estritamente mercenária, era fazer uma chan­chada e, repito, uma cínica e corajosa chanchada caça-níqueis.
Todavia, no meio do primeiro ato, começou a minha am­bição literária. E o curioso é que, até então, eu me sentia ro­mancista e não teatrólogo. Era a história de um paralítico que, nos seus delírios eróticos, induzia a mulher ao adultério. No fim, apelei para uma solução dramática que não estava nos meus cál­culos: — o paralítico não era paralítico. Simplesmente, testava a fidelidade da mulher. E quando, finalmente, ergue-se da ca­deira de rodas, era tarde, tarde demais. A mulher fugira com o chofer.
Com o texto debaixo do braço, eu pensei menos nos direi­tos autorais. Pouco importava que o meu texto fosse ou não remunerado. Eu queria o elogio, não simplesmente falado, co­chichado. Queria o elogio impresso. Certa vez, eu vira o Marques Rebelo entrar no Globo com o volume de Três caminhos. Ofereceu não sei a quem e lá deixou um retrato. Eu também queria ver a minha cara no jornal.
Eu me vejo entregando o original a Henrique Pongetti ali no Palácio Tiradentes. Dois dias depois, voltei. Ia desesperado. Pensava: — “Pongetti não vai gostar. Vai achar uma porcaria”. Eu me imagino trêmulo (e abjeto) de humildade. Pongetti me devolveu a cópia, dizendo: — “É uma peça universal”. Essa opi­nião, sucinta, taxativa, inapelável, me assombrou. Senti as fa­ces em fogo como um esbofeteado. Minha úlcera crispou-se co­mo uma víbora (ou por outra: — eu ainda não tinha úlcera). Saí de lá borracho, como se dizia nos velhos tangos. Desci a rua São José e me sentia um Ibsen.
Eu era, então, cronista esportivo. E me humilhava, e me ofendia estar escrevendo sobre futebol. Saíram vários retratos meus, mas ao lado de nadadores, de jogadores e do Homem-Peixe. Sodré Viana me dizia: — “Você tem que deixar o esporte, rapaz.” Uma tarde, levei o Roberto Marinho para a sacada e pedi-lhe para ser crítico literário de O Globo. Ele achou, no meu pe­dido, uma graça compassiva. E eu continuei fazendo futebol.
Minto. Já trabalhava, então, no Globo Juvenil. Era uma re­vista de história em quadrinhos, que estava fazendo um impres­sionante sucesso. E eu me sentia mais seguro de mim mesmo, porque escrevera uma peça e porque saíra do futebol. O problema agora era a representação. Foi meu irmão Mário quem me disse: — “O Vargas Netto manda no Abadie”. Abadie era diretor do Serviço Nacional de Teatro, que subvencionava uma companhia oficial: — a Comédia Brasileira.
Corri ao Vargas Netto. Ele não conhecia nem o autor, nem a peça. Mas gostava do Mário e escreveu ao Abadie com uma larga e cálida efusão. Entregou-me a carta e dizia: — “Fui eu que dei o emprego ao Abadie”. Estávamos em pleno Estado Novo. Ao nome de Vargas abriam-se as paredes, assanhavam-se as ca­deiras. Pobre Abadie. Sem ler uma vírgula de A Mulher sem pe­cado, incluiu-a no repertório e ainda datou a estréia. O êxito fulminante deu-me uma dispnéia: eu arquejava, ouvindo o di­retor do snt.
E, então, comecei a apelar para as minhas relações jorna­lísticas. Agredia os conhecidos no meio da rua: — “Escreve, escreve”. Esse impudor voraz irritava alguns. Um redator do Correio da Noite, que então circulava, reagiu: — “Não te conheço!”. E quando saía uma notícia, eu ia, pela redação de O Globo, mostrando de mesa em mesa. No ensaio geral de A mulher sem pecado, eu pensava muito em Gilberto Amado.
Por que em Gilberto Amado, se ele não tinha nenhuma relação com o teatro? Eu explico: — aos doze anos de idade, eu lia de José do Telhado a Dumas pai, de Xavier de Montepin a Zola. E, um dia, apanhei A chave de Salomão. Na terceira, quarta página, descobri esta imagem: — “O Pão de Açúcar tinha qualquer coisa de humoristicamente nu dentro da luz”. Reli, atônito de beleza. E aquilo não me saía dos ouvidos. O Pão de Açúcar, humoristicamente nu, e dentro da luz, foi meu espanto e meu deslumbramento.
Mais adiante, outra imagem: — “A luz tremia como uma pétala sensível”. E voltei à pedra colossal e à sua nudez hu­morística. Repeti, a meia voz, fascinado pelo som: — “O Pão de Açúcar”. Posso dizer que a frase de Gilberto Amado, lida aos doze anos, foi o afrodisíaco auditivo que me potenciali­zou para a vida literária. Ali, eu quis ser escritor, bom, péssi­mo, medíocre ou formidável, mas escritor.
Eu me lembro do grande dia. A mulher sem pecado ia estrear. Lembro-me de que, às seis, seis e pouco da tarde, eu fiquei um momento, só, na platéia. Os artistas estavam no camarim comendo sanduíches. No palco, o décor feito. E, então, baixou a mim o medo. Eu senti que só é sagrado o tea­tro de cadeiras vazias. A mulher sem pecado era ainda uma le­ve, ágil, diáfana pirueta. O grande salto mortal seria Vestido de noiva.

Nenhum comentário: