Já falei do cantor de tango que foi parar no Sanatorinho. Era, em Santos, uma espécie de Gardel ou, mais modernamente, de Hugo del Carril. E cantava por esmolas, como um cego. Anos depois, vim a conhecer os falsos cegos da vida literária. Eles faziam o seu romance, o seu poema, o seu conto, a sua peça. Em seguida, corriam o pires, recolhendo e embolsando os elogios.
Por exemplo: o doce e formidável Jorge de Lima. Era um cego, meu Deus, docemente cego, como um que toca acordeão, na rua do Ouvidor. Outro dia, fui ver o Zé Luís, no Banco Nacional de Minas Gerais. O ceguinho tocava, na sanfona, a “La cumparsita”. E Jorge de Lima era exatamente assim. Quando saiu Invenção de Orfeu, ele andava de pires, esperando que cada qual pingasse o seu ditirambo.
A meu ver, ele era, e é, o maior poeta brasileiro. E, no entanto, comportou-se na vida literária como o ceguinho da rua do Ouvidor ou o falso cego do Sanatorinho. Quando percebi que ele estava de pires na mão, fiz-lhe os elogios mais alucinados. Lembro-me de que, certa vez, respondendo a uma enquete de Paulinho Mendes Campos, disse: — “Depois de Invenção de Orfeu, o Brasil está cheio de ex-grandes poetas”. E Jorge de Lima retribuiu logo, crispado de gratidão. Mandou-me um livro e me chamou, na impulsiva dedicatória, de “o grande” Nelson Rodrigues.
Eis o que eu queria dizer: — eu também andei de chapéu, ou de pires na mão, pedindo pelo amor de Deus que me elogiassem. Se me perguntarem se eu fiz os papéis mais humilhantes, eu direi que fiz, sim, os papéis mais humilhantes. Tudo o que eu escrevia saía mostrando, de porta em porta. Eu me lembro de minha primeira peça, A mulher sem pecado. Minha intenção inicial, e estritamente mercenária, era fazer uma chanchada e, repito, uma cínica e corajosa chanchada caça-níqueis.
Todavia, no meio do primeiro ato, começou a minha ambição literária. E o curioso é que, até então, eu me sentia romancista e não teatrólogo. Era a história de um paralítico que, nos seus delírios eróticos, induzia a mulher ao adultério. No fim, apelei para uma solução dramática que não estava nos meus cálculos: — o paralítico não era paralítico. Simplesmente, testava a fidelidade da mulher. E quando, finalmente, ergue-se da cadeira de rodas, era tarde, tarde demais. A mulher fugira com o chofer.
Com o texto debaixo do braço, eu pensei menos nos direitos autorais. Pouco importava que o meu texto fosse ou não remunerado. Eu queria o elogio, não simplesmente falado, cochichado. Queria o elogio impresso. Certa vez, eu vira o Marques Rebelo entrar no Globo com o volume de Três caminhos. Ofereceu não sei a quem e lá deixou um retrato. Eu também queria ver a minha cara no jornal.
Eu me vejo entregando o original a Henrique Pongetti ali no Palácio Tiradentes. Dois dias depois, voltei. Ia desesperado. Pensava: — “Pongetti não vai gostar. Vai achar uma porcaria”. Eu me imagino trêmulo (e abjeto) de humildade. Pongetti me devolveu a cópia, dizendo: — “É uma peça universal”. Essa opinião, sucinta, taxativa, inapelável, me assombrou. Senti as faces em fogo como um esbofeteado. Minha úlcera crispou-se como uma víbora (ou por outra: — eu ainda não tinha úlcera). Saí de lá borracho, como se dizia nos velhos tangos. Desci a rua São José e me sentia um Ibsen.
Eu era, então, cronista esportivo. E me humilhava, e me ofendia estar escrevendo sobre futebol. Saíram vários retratos meus, mas ao lado de nadadores, de jogadores e do Homem-Peixe. Sodré Viana me dizia: — “Você tem que deixar o esporte, rapaz.” Uma tarde, levei o Roberto Marinho para a sacada e pedi-lhe para ser crítico literário de O Globo. Ele achou, no meu pedido, uma graça compassiva. E eu continuei fazendo futebol.
Minto. Já trabalhava, então, no Globo Juvenil. Era uma revista de história em quadrinhos, que estava fazendo um impressionante sucesso. E eu me sentia mais seguro de mim mesmo, porque escrevera uma peça e porque saíra do futebol. O problema agora era a representação. Foi meu irmão Mário quem me disse: — “O Vargas Netto manda no Abadie”. Abadie era diretor do Serviço Nacional de Teatro, que subvencionava uma companhia oficial: — a Comédia Brasileira.
Corri ao Vargas Netto. Ele não conhecia nem o autor, nem a peça. Mas gostava do Mário e escreveu ao Abadie com uma larga e cálida efusão. Entregou-me a carta e dizia: — “Fui eu que dei o emprego ao Abadie”. Estávamos em pleno Estado Novo. Ao nome de Vargas abriam-se as paredes, assanhavam-se as cadeiras. Pobre Abadie. Sem ler uma vírgula de A Mulher sem pecado, incluiu-a no repertório e ainda datou a estréia. O êxito fulminante deu-me uma dispnéia: eu arquejava, ouvindo o diretor do snt.
E, então, comecei a apelar para as minhas relações jornalísticas. Agredia os conhecidos no meio da rua: — “Escreve, escreve”. Esse impudor voraz irritava alguns. Um redator do Correio da Noite, que então circulava, reagiu: — “Não te conheço!”. E quando saía uma notícia, eu ia, pela redação de O Globo, mostrando de mesa em mesa. No ensaio geral de A mulher sem pecado, eu pensava muito em Gilberto Amado.
Por que em Gilberto Amado, se ele não tinha nenhuma relação com o teatro? Eu explico: — aos doze anos de idade, eu lia de José do Telhado a Dumas pai, de Xavier de Montepin a Zola. E, um dia, apanhei A chave de Salomão. Na terceira, quarta página, descobri esta imagem: — “O Pão de Açúcar tinha qualquer coisa de humoristicamente nu dentro da luz”. Reli, atônito de beleza. E aquilo não me saía dos ouvidos. O Pão de Açúcar, humoristicamente nu, e dentro da luz, foi meu espanto e meu deslumbramento.
Mais adiante, outra imagem: — “A luz tremia como uma pétala sensível”. E voltei à pedra colossal e à sua nudez humorística. Repeti, a meia voz, fascinado pelo som: — “O Pão de Açúcar”. Posso dizer que a frase de Gilberto Amado, lida aos doze anos, foi o afrodisíaco auditivo que me potencializou para a vida literária. Ali, eu quis ser escritor, bom, péssimo, medíocre ou formidável, mas escritor.
Eu me lembro do grande dia. A mulher sem pecado ia estrear. Lembro-me de que, às seis, seis e pouco da tarde, eu fiquei um momento, só, na platéia. Os artistas estavam no camarim comendo sanduíches. No palco, o décor feito. E, então, baixou a mim o medo. Eu senti que só é sagrado o teatro de cadeiras vazias. A mulher sem pecado era ainda uma leve, ágil, diáfana pirueta. O grande salto mortal seria Vestido de noiva.
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