Nós sabemos que o sujeito mais livre do mundo é o leitor. Nada interfere no pudor, na exclusividade e na inocência de sua relação com a obra de arte. Está só, espantosamente só, com o soneto, o romance ou com o drama. Já o espectador é o mais comprometido, o mais impuro e, por outra, o menos inteligente dos seres.
Eu percebi isso, de repente, na estréia de A mulher sem pecado. Não foi um texto que me fez autor; nem a representação, nem o décor. Eu não era ainda autor no ensaio geral. Foi preciso que, de repente, o público invadisse o teatro. Lembro-me de uma senhora gorda, de chapéu, e que entrou — comendo pipocas. Naquele momento, eu descobri uma verdade jamais suspeitada: — o teatro é a menos criada das artes, a mais incriada das artes.
Gide tinha horror do teatro, porque este é a síntese de todas as artes. Nem isso. O teatro não chega a ser arte. E a senhora gorda, devoradora de pipocas, tinha um prodigioso valor simbólico. Afinal, eu escrevera para ela e pensando nela; e não só eu. Dos gregos a Shakespeare, de Ibsen a O’Neill, todos escrevem para a senhora gorda. Portanto, eu diria, ainda hoje, que ela é co-autora de cada texto dramático.
Um Shakespeare é apenas co-autor de si mesmo; o outro co-autor é cada sujeito da platéia. Seria válido o público, se tivesse uma função estritamente pagante; ou, mesmo sem pagar, se fosse passivo e grave como uma cadeira. Mas o público pensa, sente, influi, aplaude e vaia. O autor não tem nada a ver com o sucesso. Quem o faz é o público.
Mas dizia eu que o espectador jamais consegue ser inteligente. Está inserido na multidão: é um contra os demais. Essa inferioridade numérica esmaga um gênio. Como se pode ser lúcido se, ao lado, está a tal senhora gorda comendo pipocas? Nada mais obsessivo do que o movimento de suas mandíbulas. Eu tive essa experiência na primeira noite de A mulher sem pecado. Estava perdido no meio de umas quinhentas pessoas.
Durante duas horas e meia de representação, nunca se tossiu tanto. Até hoje, não sei se a tosse geral existiu mesmo ou se foi uma alucinação auditiva do autor. Deu-me a vontade pueril, absurda de pedir: — “Não tussam, não tussam!”. De resto, eu vinha do Sanatorinho. Lá, aprendera que só há uma tosse admissível: — a nossa.
De repente, começo a pensar: — “Estou chato! Estou chato!”. Essa constatação me devastou. No palco, o paralítico berrava: — “A fidelidade devia ser facultativa”. Achava eu que tal frase devia ser um impacto. Mas a platéia não teve uma reação, nada. Novo surto de tosse. Eu me afundei na cadeira, desvairado.
No meio do segundo ato, estava mais do que nunca convencido de que é o público que faz do teatro uma arte bastarda, uma falsa arte. Comecei a imaginar uma representação utópica, ideal, para cadeiras vazias. Só seria autor, ou atriz, ou ator aquele que estivesse disposto a trabalhar para ninguém. A peça aproximava-se do fim e eu devaneava, furiosamente. Comecei a achar que também as igrejas vazias são as mais belas. O que comprometia e debilitava a fé eram os fiéis. E, de repente, o paralítico pula da cadeira de rodas.
A surpresa geral deu-me uma satisfação maligna. Houve, no teatro, um momento sem tosse. Alcei a fronte. E o que me humilhou é que ninguém, por perto, viu em mim o autor. Imbecis, imbecis. Agora estava com medo. Convidara parentes, vizinhos, conhecidos. E se não me chamassem à cena? Em outras peças, inclusive chanchadas, três ou quatro sujeitos punham-se de pé, aplaudindo e berrando: — “À cena, o autor! À cena, o autor”. E quem me aplaudiria de pé? Quem me chamaria, quem?
Baixou o pano e subiu. Realmente, não apareceu vivalma chamando o autor. Na saída, um vizinho veio me abraçar. Disse: — “Gostei”. Sorri, pálido. Pouco depois, estou numa leiteria próxima, com a família, tomando média. Comendo pão com manteiga, eu pensava: — “O teatro não existe. O que existe é a platéia”. E, depois, enxugando a boca com o guardanapo de papel, concluía: — “O teatro já morreu”.
(Uns vinte anos depois, tenho uma conversa com o Vianinha, ou, por extenso, Oduvaldo Viana Filho. O colega tomava cerveja e eu água da bica. E o Vianinha, depois de lamber a espuma dos bigodes imaginários, dizia-me, com uma convicção forte: — “Teatro é platéia”. Deixei passar um momento e perguntei, com a minha timidez de velho: — “Você tem certeza, Vianinha, que teatro é platéia?”. Primeiro, o Vianinha fala com o garçom: — “Traz outra”. Em seguida, vira-se para mim e confirma que teatro é, sim, duzentas senhoras gordas comendo pipocas, com um pavoroso trabalho de mandíbulas.)
Ao voltar para casa, de bonde, eu já pensava em Vestido de noiva. Mais dois ou três dias e tinha tudo na cabeça. Ressentido com o público, estava disposto a agredi-lo. A dúvida era o título. Véu de noiva? Ou vestido? Preferi “vestido”, porque queria um título sem nenhum ornato. E comecei a escrever a peça. Eu trabalhava, como já disse, no Globo Juvenil. Foi lá que, uma tarde, bati à máquina a primeira tira de Vestido de noiva (tudo em espaço um). E, súbito, vem o secretário da revista, Djalma Sampaio, espiar por cima do meu ombro. Viu que era um texto teatral e pulou: “Fazendo teatro aqui? Aqui?”.
Passei a trabalhar em casa. Eu imaginara, para Vestido de noiva, o processo de ações simultâneas, em tempos diferentes. Uma mulher morta assistia ao próprio velório e dizia do próprio cadáver: — “Gente morta como fica”. Morrera, assassinada, em 1905, e contracenava com uma noiva de 1943. Eu acreditava no êxito intelectual, mas acreditava ainda mais no fracasso de bilheteria.
“O público não vai entender nada”, era o que eu pensava, numa euforia cruel. Como da vez anterior, saí, de porta em porta, com o original debaixo do braço. Escrevera Vestido de noiva com uma seriedade desesperada, suicida. Mas sonhava com o elogio supremo. O primeiro a ler foi Manuel Bandeira. Dois dias depois, telefonei: — “Leu?”. Ele ia respondendo: — “Li. Achei muito mais interessante do que A mulher sem pecado”. Disse ainda: “O que me agrada é que não tem nenhuma literatice”. Atraquei-me ao telefone: — “Você escreve? Escreve?”. E, ao mesmo tempo, eu sentia asco do meu próprio apelo.
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