quarta-feira, 20 de maio de 2009

Capítulo 44 - A Menina sem Estrela

Nós sabemos que o sujeito mais livre do mundo é o leitor. Nada interfere no pudor, na exclusividade e na inocência de sua relação com a obra de arte. Está só, espantosamente só, com o soneto, o romance ou com o drama. Já o espectador é o mais comprometido, o mais impuro e, por outra, o menos inteligen­te dos seres.
Eu percebi isso, de repente, na estréia de A mulher sem pe­cado. Não foi um texto que me fez autor; nem a representação, nem o décor. Eu não era ainda autor no ensaio geral. Foi preciso que, de repente, o público invadisse o teatro. Lembro-me de uma senhora gorda, de chapéu, e que entrou — comendo pipocas. Naquele momento, eu descobri uma verdade jamais suspeitada: — o teatro é a menos criada das artes, a mais incriada das artes.
Gide tinha horror do teatro, porque este é a síntese de to­das as artes. Nem isso. O teatro não chega a ser arte. E a senho­ra gorda, devoradora de pipocas, tinha um prodigioso valor sim­bólico. Afinal, eu escrevera para ela e pensando nela; e não só eu. Dos gregos a Shakespeare, de Ibsen a O’Neill, todos escre­vem para a senhora gorda. Portanto, eu diria, ainda hoje, que ela é co-autora de cada texto dramático.
Um Shakespeare é apenas co-autor de si mesmo; o outro co-autor é cada sujeito da platéia. Seria válido o público, se ti­vesse uma função estritamente pagante; ou, mesmo sem pagar, se fosse passivo e grave como uma cadeira. Mas o público pen­sa, sente, influi, aplaude e vaia. O autor não tem nada a ver com o sucesso. Quem o faz é o público.
Mas dizia eu que o espectador jamais consegue ser inteli­gente. Está inserido na multidão: é um contra os demais. Essa inferioridade numérica esmaga um gênio. Como se pode ser lú­cido se, ao lado, está a tal senhora gorda comendo pipocas? Nada mais obsessivo do que o movimento de suas mandíbulas. Eu tive essa experiência na primeira noite de A mulher sem peca­do. Estava perdido no meio de umas quinhentas pessoas.
Durante duas horas e meia de representação, nunca se tos­siu tanto. Até hoje, não sei se a tosse geral existiu mesmo ou se foi uma alucinação auditiva do autor. Deu-me a vontade pue­ril, absurda de pedir: — “Não tussam, não tussam!”. De resto, eu vinha do Sanatorinho. Lá, aprendera que só há uma tosse admissível: — a nossa.
De repente, começo a pensar: — “Estou chato! Estou cha­to!”. Essa constatação me devastou. No palco, o paralítico ber­rava: — “A fidelidade devia ser facultativa”. Achava eu que tal frase devia ser um impacto. Mas a platéia não teve uma reação, nada. Novo surto de tosse. Eu me afundei na cadeira, desvairado.
No meio do segundo ato, estava mais do que nunca con­vencido de que é o público que faz do teatro uma arte bastar­da, uma falsa arte. Comecei a imaginar uma representação utó­pica, ideal, para cadeiras vazias. Só seria autor, ou atriz, ou ator aquele que estivesse disposto a trabalhar para ninguém. A peça aproximava-se do fim e eu devaneava, furiosamente. Comecei a achar que também as igrejas vazias são as mais belas. O que comprometia e debilitava a fé eram os fiéis. E, de repente, o paralítico pula da cadeira de rodas.
A surpresa geral deu-me uma satisfação maligna. Houve, no teatro, um momento sem tosse. Alcei a fronte. E o que me hu­milhou é que ninguém, por perto, viu em mim o autor. Imbe­cis, imbecis. Agora estava com medo. Convidara parentes, vizi­nhos, conhecidos. E se não me chamassem à cena? Em outras peças, inclusive chanchadas, três ou quatro sujeitos punham-se de pé, aplaudindo e berrando: — “À cena, o autor! À cena, o autor”. E quem me aplaudiria de pé? Quem me chamaria, quem?
Baixou o pano e subiu. Realmente, não apareceu vivalma chamando o autor. Na saída, um vizinho veio me abraçar. Dis­se: — “Gostei”. Sorri, pálido. Pouco depois, estou numa leiteria próxima, com a família, tomando média. Comendo pão com manteiga, eu pensava: — “O teatro não existe. O que existe é a platéia”. E, depois, enxugando a boca com o guardanapo de papel, concluía: — “O teatro já morreu”.
(Uns vinte anos depois, tenho uma conversa com o Vianinha, ou, por extenso, Oduvaldo Viana Filho. O colega tomava cerveja e eu água da bica. E o Vianinha, depois de lamber a es­puma dos bigodes imaginários, dizia-me, com uma convicção forte: — “Teatro é platéia”. Deixei passar um momento e per­guntei, com a minha timidez de velho: — “Você tem certeza, Vianinha, que teatro é platéia?”. Primeiro, o Vianinha fala com o garçom: — “Traz outra”. Em seguida, vira-se para mim e confirma que teatro é, sim, duzentas senhoras gordas comendo pi­pocas, com um pavoroso trabalho de mandíbulas.)
Ao voltar para casa, de bonde, eu já pensava em Vestido de noiva. Mais dois ou três dias e tinha tudo na cabeça. Ressen­tido com o público, estava disposto a agredi-lo. A dúvida era o título. Véu de noiva? Ou vestido? Preferi “vestido”, porque queria um título sem nenhum ornato. E comecei a escrever a peça. Eu trabalhava, como já disse, no Globo Juvenil. Foi lá que, uma tarde, bati à máquina a primeira tira de Vestido de noiva (tudo em espaço um). E, súbito, vem o secretário da revista, Djalma Sampaio, espiar por cima do meu ombro. Viu que era um texto teatral e pulou: “Fazendo teatro aqui? Aqui?”.
Passei a trabalhar em casa. Eu imaginara, para Vestido de noiva, o processo de ações simultâneas, em tempos diferentes. Uma mulher morta assistia ao próprio velório e dizia do pró­prio cadáver: — “Gente morta como fica”. Morrera, assassinada, em 1905, e contracenava com uma noiva de 1943. Eu acre­ditava no êxito intelectual, mas acreditava ainda mais no fracasso de bilheteria.
“O público não vai entender nada”, era o que eu pensava, numa euforia cruel. Como da vez anterior, saí, de porta em porta, com o original debaixo do braço. Escrevera Vestido de noiva com uma seriedade desesperada, suicida. Mas sonhava com o elogio supremo. O primeiro a ler foi Manuel Bandeira. Dois dias depois, telefonei: — “Leu?”. Ele ia respondendo: — “Li. Achei muito mais interessante do que A mulher sem pecado”. Disse ainda: “O que me agrada é que não tem nenhuma literatice”. Atraquei-me ao telefone: — “Você escreve? Escreve?”. E, ao mesmo tempo, eu sentia asco do meu próprio apelo.

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