Ainda ouço a minha voz e, sobretudo, o tom insuportável, a humildade transida e infeliz: — “Você escreve? Escreve?”. E se Manuel Bandeira respondesse como o outro: — “Nem te conheço. E não escrevo sob pressão”. Imaginei o poeta batendo com o telefone. Mas ele foi amigo, solidário, quase terno. Primeiro, suspirou: — “Caso sério, caso sério”. E foi acrescentando: — “Ainda bem que você tem talento. A gente pode escrever sobre você”. Eu disse, trêmulo de gratidão: — “Muito obrigado, ouviu? E um grande abraço”.
Saí do telefone varado de luz. Com o lançamento de A mulher sem pecado, fora marcado por duas crônicas: — uma de Álvaro Lins, em Diretrizes, outra de Santa Rosa, no Diário Carioca. Ambas altamente elogiosas. Mas era pouco para minha fome. Eu ainda me sentia fora, marginal da vida literária. Lúcio Cardoso, que fora meu vizinho e era meu amigo de infância, merecera todo um rodapé de Álvaro Lins no Correio da Manhã.
Doeu-me que Álvaro Lins escrevesse sobre mim em Diretrizes e não no Correio da Manhã. Antes isso do que nada, claro. Mas era óbvio que o crítico não valorizara, não dramatizara minha estréia. “Um rodapé, todo o rodapé de Álvaro Lins”, eis a utopia que comecei a cultivar na minha angústia. Entre A mulher sem pecado e Vestido de noiva, vivi todo um período de frustração e ressentimento.
Qualquer êxito literário me agredia e me humilhava. Não perdia um rodapé de Álvaro Lins. De véspera, eu me perguntava: — “Vai escrever sobre quem?”. Se elogiava, havia em mim todo um surto de inveja. Inveja mesmo, sem nenhum disfarce, nenhum pudor. Eu não aprendera ainda a posar para mim mesmo, a retocar ou a idealizar meus sentimentos.
Entre as duas estréias, de A mulher sem pecado e Vestido de noiva, escrevi, certa vez, uma croniqueta que marcou a minha vida. Era Edmundo Lys que tomava conta da coluna de rádio de O Globo. Coincidiu que Joracy Camargo escrevesse elançasse, com grande élan promocional, uma novela radiofônica. Eu odiava Joracy Camargo.
Claro que era um sentimento, ou ressentimento, de origem estritamente literária. Joracy escrevera Deus lhe pague, que eu não vira, nem lera; e eu não perdoava o sucesso tremendo. Deus lhe pague era uma espécie de Dama das camélias do teatro brasileiro. Onde quer que a levassem, no Municipal ou no Circo Dudu, as pessoas aplaudiam de pé e só faltavam pedir bis como na ópera.
Eu desculparia, talvez, a bilheteria prodigiosa. E, com efeito, Deus lhe pague era representado, sempre, para casas lotadas. Mas vá lá. O que me ofendia, me desfeiteava, era a consagração intelectual. Não me esquecia de um almoço de literatos ao autor. E, lá, Gilberto Amado teria dito que Deus lhe pague era “a única peça universal do teatro brasileiro”. Esse elogio causou-me um intolerável dano físico.
A novela caía do céu. E cometi, então, sem a menor dúvida, uma pequena vileza. Confesso que o elogio de Gilberto Amado, mais que o sucesso de Deus lhe pague, serviu-me de maligno afrodisíaco. E saiu uma nota extremamente eficaz na sua perversidade inexcedível. Ao redigi-la, eu tinha um ressentimento de Raskolnikov.
Pergunto: — assinei a torpeza? Não. A minha assinatura teria sido, sim, uma atenuante. Mas usei um pseudônimo. Para todos os efeitos, era um vago leitor, um Zezinho dos Anzóis Carapuça. Fui falar com Edmundo Lys e o convenci a publicar aquela miséria. Quando a croniqueta saiu foi um espanto, um escândalo na redação. No dia seguinte, apareceu lá o Vadeco, o genro da vítima. Vinha falar com Edmundo Lys, com Roberto Marinho. Estava arrasado.
Ninguém entendeu a gratuidade da agressão. Mas Joracy Camargo não foi o único. Contra o autor de Deus lhe pague, escrevi; e, contra os outros, falava nas esquinas, nos cafés e nas redações. Eu não admitia um nome do teatro brasileiro, fosse do passado, fosse do presente. Lembro-me de que Renato Viana era outro. Tinha uns restos de prestígio intelectual; uma meia dúzia de fiéis ainda o adulava. Certa vez, disse-me o Schmidt: — “Ninguém consegue ser nada no Brasil se não acreditou, um dia, em Renato Viana”.
Todas as manhãs, eu saía de casa, furioso, como se fosse destruir o teatro brasileiro e os grandes nomes literários. Não deixava em pé um único autor dramático: — Raymundo Magalhães Júnior era uma besta; Joracy Camargo, outra; Roberto Gomes, já morto, uma terceira besta. E assim os outros, todos os outros.
E só respeitava os que tinham gostado ou de A mulher sem pecado ou de Vestido de noiva ou de ambas, Bandeira era o maior poeta brasileiro, porque admirava as minhas duas peças; outro “maior poeta brasileiro” era Carlos Drummond de Andrade, que me dizia: — “Vestido de noiva é mais complexo do que A mulher sem pecado”. Ou o sujeito gostava do meu teatro ou era uma besta, um cretino.
Naquele tempo, A Manhã anunciava, de véspera, o artigo assinado do dia seguinte. Estou me lembrando do telefonema do irmão Augusto: — “O Manuel Bandeira vai escrevei amanhã sobre Vestido de noiva”. Saí do telefone, desatinado, para o jornaleiro. Na primeira página de A Manhã, vinha anunciado — “Amanhã: — Vestido de noiva, de Manuel Bandeira”. Branco ou vermelho, não sei, o coração em arrancos, eu vivia um dos maiores momentos da minha vida.
Parecia pouco, mas era muito, era demais. Comecei a me sentir, fisicamente, com febre. E não dormi, nessa noite, não dormi. E o pior, ou melhor, é que se tratava de uma frase, de uma referência. Não. Manuel Bandeira escrevia todo um artigo sobre mim, sobre a minha peça. No dia seguinte, antes do padeiro, antes do leiteiro, comprei o jornal. Lá estava o artigo, grande, sobre Vestido de noiva. Perto do jornaleiro, em cima do meio-fio, li o artigo. Não encontrei uma restrição. O “maior poeta brasileiro” — e mais do que nunca “o maior poeta brasileiro” — fazia um elogio total. Ofegante, vim caminhando. E sentia que Manuel Bandeira estava abrindo para mim as portas, as paredes, os muros da vida literária
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