sexta-feira, 22 de maio de 2009

Capítulo 46 - A Menina sem Estrela

No primeiro momento, a glória é casta. Desde garotinho, a minha vida fora a desesperada busca da mulher primeira, úni­ca e última. No período da fome, o amor passara a um plano secundário ou nulo. Mas a glória é ainda mais obsessiva, mais devoradora do que a fome. Eis o que eu queria dizer: — com o artigo de Manuel Bandeira, só eu existia para mim mesmo. Tudo o mais era paisagem.
Saí, mostrando a opinião de Manuel Bandeira. Todo O Glo­bo a leu. Antes, mostrara em casa, à minha mãe, meus irmãos. A encenação de A mulher sem pecado não bastara. E Vestido de noi­va, ainda inédita, era a glória fulminante e jamais sonhada (se Ál­varo Lins tivesse publicado o seu artigo no Correio da Manhã, e não em Diretrizes, eu tremeria de igual deslumbramento).
Sim, ainda me lembro do primeiro dia do artigo de Manuel Bandeira. Depois do trabalho, fui para casa. Tranquei-me no quarto como se fosse praticar um ato solitário e obsceno. Co­mecei a reler o poeta. Primeiro, repassei todo o artigo, da pri­meiro à última linha. Depois, reli certos trechos. O final dizia assim: — “Vestido de noiva, em outro país, consagraria um au­tor. No Brasil, consagrará o público”. Antes de mais nada, o poe­ta influiu na minha auto-estima.
Se eu morresse naqueles dias, alguém poderia gravar no meu túmulo: — “Aqui jaz Nelson Rodrigues, assassinado por um artigo de Manuel Bandeira”. No dia seguinte, saí de casa, com o recorte do poeta no bolso. E ninguém poderia imaginar que eu estava prodigiosamente embriagado de mim mesmo. Eu, eu, eu, eu. Se a mulher amada me aparecesse, não a reconhece­ria; e, se a reconhecesse, passaria adiante.
Agora era tratar da encenação. Corri à Dulcina e, depois, a Jayme Costa; outro: — Odilon Azevedo. Dulcina não quis; nem Odilon, nem Jayme Costa. Alguém, irritado com a estrutura da peça, esbravejou: — “Perca essa mania de ser gênio incompreen­dido” . Já Abadie Faria Rosa foi mais generoso. Ou porque o au­tor fosse amigo de um Vargas, ou porque, realmente, gostasse da tragédia, disse: — “Muito interessante, muito interessante”.
Quanto a Pongetti, o descobridor de A mulher sem peca­do, abominou Vestido de noiva. Via, no meu texto, o puro e desvairado caos. Ninguém podia pôr de pé semelhante espetá­culo. Fui ao Schmidt. Este não lia nada, ou por outra: — passa­va a vista numa frase aqui, outra frase ali, e pronto. Mas era de uma leviandade fascinante. Vira o artigo de Manuel Bandeira, falou-me em Proust, achou a peça proustiana. Comecei: — “Schmidt, é o seguinte: — eu estou fazendo um teatro difícil. Sabe como é: — preciso de apoio. Você podia escrever um ne­gócio sobre Vestido de noiva”.
Excelente Schmidt! Escreveu-me uma carta, na qual me cha­mava de “inovador e renovador”. E mais adiante: — “Vestido de noiva é mais que uma peça: — é um processo e uma revolu­ção”. José César Borba escreveu, no suplemento literário de O Jornal, um fremente artigo. E cada elogio que pingava no meu pires estendido me pagava de velhas e santas frustrações. Mi­nha vida era um território só ocupado por mim mesmo.
E, de repente, eu me encontro com Os Comediantes, o gru­po de Brutus Pedreira e Santa Rosa. Vestido de noiva estava com­prometido com a Comédia Brasileira do Abadie. Mas Brutus Pe­dreira leu a tragédia e me procurou: — “Te pago dois contos e você dá a peça aos Comediantes”. Dois contos eram, na épo­ca, uma dessas quantias utópicas, estarrecedoras. Todavia, um escrúpulo me travou: — “Preciso falar antes com o Abadie”. Para Brutus, Abadie era um cretino e o próprio teatro brasileiro uma massa de imbecis de ambos os sexos.
Quando eu ia ao Serviço Nacional de Teatro, Abadie pu­nha em mim um olho enorme de terror. O que via ele, por trás de mim, era a onipotência dos Vargas. Mas, quando pedi para tirar a peça da Comédia Brasileira, o bom velho, transido de alegria, balbuciou: — “Nelson, por mim, não há dúvida. Eu faço o que você quiser”. Só então percebi que Vestido de noiva era a sua abominação secretíssima. E, assim, o texto foi salvo (a Co­média Brasileira seria a perdição da minha peça).
Dois dias depois, conheci Ziembinski, o diretor polonês. Viera para o Brasil fugido da guerra. E era um outro Ziembins­ki, quase louco. O público o vê, hoje, fazendo o velho mágico da novela da tv Globo. Mas, em 1943, era um ensaiador em furioso estado de graça. Quantas vezes o vi, nos botecos, ber­rando, na sua ferocidade jucunda: — “Jouvet é uma besta”.
Quanto ao teatro brasileiro, Ziembinski não deixava um nome de pé. Derrubava tudo e ainda sapateava em cima dos cacos. Percebeu, instantaneamente, o potencial plástico de Vestido de noiva. Ele sonhava com um grande espetáculo; e a minha tragédia deu-lhe espaço para soltar todas as suas fantasias cênicas. Durante os seis, oito meses de trabalho, Ziembinski ardeu em mil e uma danações.
(Ah, foi uma luta arrancar os dois contos de Carlos Perry, então tesoureiro dos Comediantes. Por vício da função, ele chorava cada vintém. Sua posição era o seguinte: — eu de­via dar o texto de graça. Os Comediantes eram amadores etc. etc. Mas Brutus e Santa Rosa queriam me pagar; e o primeiro havia empenhado sua palavra. Perry, embora furioso, aca­bou dando o dinheiro.)
Ninguém entendia como eu, sem nenhuma obra ante­rior, e num país sem tradição dramática — pudesse ousar a experiência formal de Vestido de noiva. Queriam saber quais os meus autores preferidos. Eu falava por alto: — “Gosto dos gregos”. Lembro-me de que alguém me perguntou: — “Vo­cê lê muito Shakespeare?”. Bocejei e fiz um gesto de quem leu todo Shakespeare. Se me falavam dos modernos, eu res­pondia: — “Gosto” ou “Gostei”. Certa vez, pediram a mi­nha opinião sobre Giraudoux. Disse: “Perfumaria”.
Minha experiência teatral começou a criar deveres pe­nosos. Vinha uma companhia francesa e eu precisava ser visto no Municipal. Nos intervalos, era interrogado por um, por outro: — “Estás gostando?”. Olhava para outro lado: — “Mais ou menos”. Um dia, sentou-se ao meu lado uma ve­lha de nariz adunco. Era outra companhia francesa. Começa a representação e a velha me pergunta: — “O que ele dis­se?”. Vacilo: — “Não ouvi direito”. Daí a pouco, nova per­gunta: — “E agora? O que é que ele disse?”. Desesperado, reajo: — “A senhora não sabe francês?”. Retruca: — “E o se­nhor, sabe?”. Apelei para o desaforo: — “Não é da sua conta”. A velha desinteressou-se do palco. Não tirava o olho de mim. Por fim, aderna para o meu lado e sussurra: — “Analfabeto”.
Isso foi em 1943, princípio do ano. Vinte e quatro anos de­pois, o meu amigo Luís Eduardo Borgerth me pergunta: — “Vo­cê lê francês, não lê?”. Respondi, num escândalo risonho: — “Mas claro”. E, ao mesmo tempo, pensava na velha do Munici­pal. No dia seguinte, Borgerth ofereceu-me, num maravilhoso volume branco, a obra completa de Camus. Agradeci e não tive coragem de confessar que não sei francês, não falo, não leio fran­cês. Lá está o presente do caro Luís Eduardo na minha estante. Não será jamais lido por mim.

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