sábado, 23 de maio de 2009

Capítulo 47 - A Menina sem Estrela

O ensaio geral de Vestido de noiva foi o próprio inferno. Ziembinski tinha, então, uma resistência quase infinita. Os in­térpretes sabiam o texto, as inflexões e cada movimento. Du­rante oito meses, à tarde e à noite, a peça fora repisada até o extremo limite da saturação. Mas faltava ainda a luz.
Não posso falar da luz sem lhe acrescentar um ponto de exclamação. E, com efeito, o velho teatro não era iluminado artisticamente. Havia, no palco, uma lâmpada de sala de vi­sitas, e só. E a luz fixa, imutável — e burríssima — nada tinha a ver com o texto e com os sonhos da carne e da alma. Ziem­binski era o primeiro a iluminar poética e dramaticamente uma peça.
Bem me lembro de Alaíde, quando apareceu, pela primei­ra vez, de noiva. Ficamos atônitos com a beleza. Dentro da luz, era um maravilhoso e diáfano pavão branco. Ziembinski exigi­ra dez ensaios gerais. Era pedir demais ao nosso Municipal. Os dez foram reduzidos a três. Por três dias e por três noites, o bár­baro polonês esganiçou-se no palco.
Ninguém faz uma idéia da paciência e martírio do elenco. A 27 de dezembro de 1943 e, portanto, véspera da estréia, atri­zes e atores tinham, em cada olho, um halo negro. Alguém que, de repente, entrasse ali havia de imaginar que os intérpretes le­vavam olheiras de rolha queimada. Ziembinski tinha a obses­são da luz exata.
Meia-noite e todos presentes. Eu me lembro de um figu­rante que, de repente, começou a chorar. Perguntaram: — “Que é isso? Não faça isso”. E ele, num gemido maior: — “Estou can­sado! Estou cansado!”. De fato, a exaustão enfurecia e desumanizava os presentes. Os intérpretes passaram a se detestar uns aos outros.
E, por fim. às cinco da manhã, houve entre Ziembinski e Carlos Perry um bate-boca quase homicida. Não lembro qual foi o motivo, nem sei se houve motivo. Já amanhecendo, o sim­ples cansaço enlouquecia autor, diretor, artistas, contra-regra, eletricistas. E Ziembinski e Carlos Perry andaram por um fio. Quando subi ao palco, estava certo de que não ia haver estréia, não ia haver nada.
Vejo Ziembinski saindo do teatro e jurando que não volta­ria para o espetáculo. Fui para casa, desatinado. Já me parecia que Pongetti tinha razão: — Vestido de noiva ia se perder no puro e irresponsável caos. A caminho de casa, uma súbita cer­teza instalou-se em mim: “Vestido de noiva vai ser vaiada!”. A peça estava dividida em três planos: — em cima, realidade; em­baixo, memória e alucinação.
O meu processo — de ações simultâneas, em tempos dife­rentes — não tinha função no Brasil. O nosso teatro era ainda Leopoldo Froes. Sim, ainda usava o colete, as polainas e o sota­que lisboeta do velho ator. E ninguém perdoaria a desfaçatez de uma tragédia sem “linguagem nobre”. Ao entrar em casa, eu não acreditava mais em mim mesmo. E me perguntava: — “Como é que fui meter gíria numa tragédia?”.
Dormi pouco. Depois do almoço, corri para a cidade. Mas era um ex-Narciso, que tinha agora horror da própria imagem. Eis o que eu pensava: — “Foi por isso que o Álvaro Lins escre­veu em Diretrizes e não no Correio da Manhã”. Baixou em mim a certeza de que jamais teria o rodapé de Álvaro Lins. Deus lhe pague já ia para três mil representações.
Quanto a Ziembinski e Carlos Perry, fui encontrá-los mais unidos, mais solidários do que nunca. Ainda me vejo no Muni­cipal, andando sozinho pelos corredores ainda vazios, mas já iluminados. O teatro ia abrir as portas às oito horas. E eu estava presente quando os porteiros, ainda com o uniforme do prin­cípio do século, olharam o relógio. Por fim, um deles, de bigodões espectrais, abriu o primeiro portão. Ninguém para entrar.
Minto. Alguém vinha subindo, lentamente, a escadaria. Crispei-me ao reconhecê-lo, e numa emoção tão doce e tão fun­da. Era Manuel Bandeira. Vim para ele, transido de felicidade: — “Ah, Manuel! Grande figura, grande figura”. No hall, conversando com o poeta, eu tiritava. Um súbito otimismo dava-me febre como a maleita. Voltei a acreditar num rodapé sobre mim, mas todo um rodapé. Sim, um rodapé com o mesmo títu­lo do artigo de Manuel Bandeira: — “Vestido de noiva”.
O poeta foi comigo até à porta da caixa. Lá, apertou a mão de José Sanz, que, vestido de médico, faria uma ponta. Mas o público começava a entrar; despedia-me de Manuel Bandeira; ele ainda me perguntou: — “Animado?”. Rangi os dentes de ter­ror: — “Mais ou menos”. E o poeta saiu para sentar-se na se­gunda fila (enxergava bem, mas ouvia mal.)
E começou a peça. Nove e meia, se bem me lembro. Fi­quei eu no fundo de um camarote. Platéia, balcões nobres, fri­sas e camarotes lotados (Carlos Drummond viria no segundo dia; Schmidt, meses depois). Eu não via, nem queria ver nada. Estava desvairado de pusilanimidade. E o pior foi o silêncio do público durante todo o primeiro ato. Ninguém ria, ninguém tos­sia. E havia qualquer coisa de apavorante nessa presença nume­rosa e muda.
Termina o primeiro ato. Três palmas, se tanto, ou quatro ou cinco, no máximo. Gelado, imaginei que seriam aplausos das minhas irmãs, de meus irmãos. Continuei, no fundo do cama­rote, agarrado à cadeira. Repetia para mim mesmo: — “Fracasso, fracasso”. Comecei a me lembrar do almoço que André Romero me pagara, num restaurante da Lapa. Era a época da fome. Bem que eu queria bifes com batatas fritas; qualquer brasileiro ama o bife com batatas fritas. Mas Romero, com a autoridade de quem paga, pediu fígado, com cebolada, para dois. E, na mi­nha estréia de Municipal, eu me sentia aquele mesmo sujeito comendo numa casa de pasto abjeta.
Termina o segundo ato. Menos palmas. “Até minhas irmãs têm vergonha de aplaudir.” Pongetti tinha razão. Vestido de noi­va era o caos. A platéia estava furiosa com o caos. Até que bai­xa o pano sobre o terceiro ato. Silêncio. Ninguém bate palmas, nem minhas irmãs.

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