Ainda silêncio. E, de repente, começaram palmas escassas e esparsas. Um aplaudia aqui, outro ali, um terceiro mais adiante. Atracado à minha cadeira, me sentia perdido, perdido. Mas comecei a sentir a progressão. Focos de palmas, em muitos pontos da platéia. E, súbito, todos acordaram do seu espanto. Ergueu-se o uivo unânime.
Os aplausos subiam até a cúpula e multiplicavam as cintilações do lustre. Era como se o grande Caruso tivesse acabado de soltar um dó-de-peito. Os artistas iam e voltavam; veio Ziembinski, arrastado; em mangas de camisa, com o suor do gênio pingando de fronte alta. E, súbito, uma voz (possivelmente de José César Borba) se esganiça: — “O autor, o autor!”. Não foi só um grito. Muitos outros, inclusive mulheres, pediam, exigiam: — “O autor, o autor!”.
Minha irmã Helena veio me puxar. Eu, que me esvaía em suor, gemi: — “Não, não!”. E ela: — “Vem, vem!”. Não podia, ali, explicar que eu entrara no teatro um pobre-diabo; e ainda não me sentia o autor glorioso. Helena, porém, crispada de vontade, arrancou-me da cadeira. Rindo, apareci na varanda do camarote.
Esperava eu, e esperavam minhas irmãs, que a platéia se voltasse para mim e todos gritassem: — “Ele! Ele!”. Mas o que aconteceu foi muito parecido com um pesadelo humorístico e crudelíssimo. Estava o autor, em pé, pronto a receber a apoteose. E ninguém me olhava, ninguém. Era como se eu não existisse, simplesmente não existisse.
A platéia exigia o autor, mas virada para o palco. Senti como se fosse um puro espírito que vagava invisível, inaudível, por entre os vivos. Veio-me a vontade gritar: — “Sou eu! Sou eu!”. E nada. Por todo um minuto sem fim, fui excluído da apoteose e me senti um marginal da própria glória. Recuei novamente para o fundo, dilacerado de vergonha e frustração.
Quando saí do camarote, o primeiro a me abraçar, radiante, foi Roberto Marinho. Em seguida, o maestro Piergile. Todos diziam: — “Formidável! Formidável!”. Mas, fora Roberto e Piergile, ninguém mais viu em mim o autor. Uma senhora ia na minha frente; dizia uma das falas da peça: — “As mulheres só deviam amar meninos de dezessete anos”.
Desço a escadaria e, embaixo, sou envolvido, abraçado, quase beijado. Vejo Álvaro Lins, José César Borba, e outros, e outros. Álvaro Lins puxou-me pelo braço: — “Vem cá, que eu quero te apresentar a Paulo Bittencourt”. Lembro-me, exatamente, das palavras de Paulo: — “Sua peça é extremamente interessante”. Alguém ciciou no meu ouvido: — “Genial!”. Isso, dito baixinho, como se fosse uma obscenidade, deu-me vontade de chorar.
Fui para a caixa. Precisava abraçar Ziembinski, o elenco. Quando entrei, vi uma multidão. Ziembinski berrou: — “O autor! O autor!”. Recebi uma tremenda ovação. Estava exausto, emocionalmente, as pernas bambas, a vista embaciada. Abraço, longa e desesperadamente, Ziembinski. Ah, o polaco dera ao que parecia o caos uma ordem translúcida e implacável. Depois de Ziembinski, saí abraçando os intérpretes, um por um: — Evangelina Guinle Rocha Miranda, uma Alaíde inesquecível; Stella Perry, uma admirável Lúcia; e Carlos Perry, Graça Melo, Expedito Porto, Carlos Mello, Isaac Paschoal.
Da caixa do teatro até a porta dos fundos, não dei um passo sem esbarrar, sem tropeçar numa admiração patética. Uma senhora, enchapelada, me atropelou: — “Parece Pirandello”. Quis saber se eu gostava de Pirandello e eu, que jamais o lera, assumi um ar de pirandelliano nato e hereditário. Passo a passo, ouvi a mesma pergunta: — “É sua primeira peça?”. Só então percebi que A mulher sem pecado era solidamente ignorada. Naquela época, acontecia o seguinte: — qualquer peça de um nível mínimo, que não fosse débil mental, tinha de ser pirandelliana, a muque.
(Eis a verdade: — até a estréia de Vestido de noiva, eu não lera nada de teatro, nada. Ou por outra: — lera, certa vez, como já disse, Maria Cachucha, de Joracy Camargo. Sempre fui, desde garoto, um leitor voracíssimo de romance. Eu me considerava romancista e só o romance me fascinava. Não queria ler, nem ver teatro. Depois de A mulher sem pecado é que passei a usar a pose de quem conhece todos os autores dramáticos passados, presentes e futuros. Na verdade, sempre achei de um tédio sufocante qualquer texto teatral. Só depois de Vestido de noiva é que tratei de me iniciar em alguns dramaturgos obrigatórios, inclusive Shakespeare.)
Finalmente, desvencilhei-me dos admiradores e cheguei à rua. Estou andando pela calçada da Avenida, atravesso a rua Almirante Barroso, caminho na direção da Galeria Cruzeiro. A glória era recente demais. Uma hora antes, eu não passava de um pobre rapaz que ganhava setecentos mil-réis no Globo (quinhentos na folha e duzentos por fora). E as coisas me pareciam de uma irrealidade atroz. Até a Avenida era irreal e os edifícios, os transeuntes, os carros, tudo irreal.
Perto, no próprio edifício do Liceu de Artes e Ofícios, quase ao lado de O Globo, havia uma casa que era, a um só tempo, leiteria e restaurante. Lá, serviam um prato chamado almoço Nevada, típico da classe média. Era um bife, que podia ser acompanhado de batatas fritas ou dois ovos estrelados; e mais: — manteiga, pão e pudim de sobremesa. Tudo ao preço compassivo, generoso, de doze mil-réis. Entrei na leiteria deserta, sentei-me num canto. Disse, sem olhar o menu: — “Traz um almoço Nevada, com batatas fritas”.
O garçom trouxe o pão e a manteiga. Comecei a comer com sombrio élan. Tinha na imaginação o lustre do Municipal, ardendo em cintilações inumeráveis. Eis o que eu pensava: — “Agora o Álvaro Lins escreve o rodapé”. Manuel Bandeira fora o primeiro a entrar e o primeiro a sair. Álvaro Lins estava apaixonado por Vestido de noiva. (Anos depois, quando saiu em livro Álbum de família, o crítico do Correio da Manhã escreveu um rodapé contra. Minha reação foi odiosa. No meu ressentimento, escrevi textos ferozes, e os publiquei, com o nome de amigos meus. Eu nunca assinava, nunca assumia a responsabilidade. Minha vaidade tinha alguma coisa de suicida e de homicida. Simplesmente, queria destruir Álvaro Lins.)
Vinha o garçom. Pôs o prato na mesa. Digo-lhe: — “Traz mais pão, que eu pago por fora. Manteiga também, sim?”. Eu continuava febril de sonho. Mas o prato estava diante de mim. o bife era a vida real.
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