segunda-feira, 25 de maio de 2009

Capítulo 49 - A Menina sem Estrela

Passei a noite em claro. Fechava os olhos e via a cúpula in­candescente do Municipal. Ouvia ainda o grito de José César Borba: — “O autor! O autor!”. E me lembrava de que a apoteo­se começara no uivo da platéia. Eu morava, então, na rua Joa­quim Palhares, entre Paulo de Frontin e o Estácio. Era uma casa de avenida, que dava fundos para uma garagem. E, quando cho­via forte, a água enchia a sala, o quarto, a cozinha. Tínhamos que trepar nas mesas, nas cadeiras; e víamos as caixas de sapa­tos boiando, boiando.
No dia seguinte, vim para a cidade, cedinho. Dei “bom dia” aos vizinhos com uma desesperada euforia. Mas ninguém, na avenida, sabia de nada. E tive uma pena tardia de não ter convi­dado toda a vizinhança. Tomei, na esquina, o bonde: — Lapa-Praça da Bandeira. Veio o condutor e paguei. Era outro que não sabia. E as esquinas, as ruas, os outros bondes estavam cheios de sujeitos que também não sabiam.
Quarenta e oito horas depois, saíram as primeiras notas. Di­zia o Correio da Manhã, num texto não assinado de Álvaro Lins, que, com Vestido de noiva, pela primeira vez o teatro brasileiro entrava na literatura. Também no Correio, embaixo do artigo de fundo, Paulo Bittencourt escrevera um tópico em que celebrava minha estréia ‘‘como o nascimento do moderno teatro brasileiro’’.
E o pior é que a celebridade era, para mim, uma tensão per­manente quase intolerável. Quando saiu o rodapé de Álvaro Lins (rodapé mais esperado do que um messias), eu o li em ânsias, numa dispnéia que me asfixiava. E quando José César Borba fez uma série sobre Vestido de noiva, também senti palpitações, falta de ar.
O tempo passava e a glória não era, na minha vida, um há­bito, uma rotina, quase um tédio. Não. Eu me comovia com os elogios impressos, como se fosse a primeira vez, sempre a pri­meira vez. A verdade é que eu estava muito mais comprometi­do com as velhas renúncias, as antigas humilhações. O Sanatorinho ainda vivia em mim. De vez em quando, na rua Joaquim Palhares, eu sonhava com uma tosse. Acordava e a tosse conti­nuava. Ficava tenso, escutando. Mas ninguém tossia. Era uma alucinação auditiva.
(A minha angústia diante da fama não foi uma reação indi­vidual. O brasileiro não sabe ser glorioso. Aí está o nosso Gui­marães Rosa. Ele inspira, nos suplementos literários, os mais vee­mentes rapapés críticos. É chamado, no mínimo, de “o maior prosador do Brasil”. Se não me engano, Sérgio Milliet jurou que o Grande sertão é o maior romance do século. Se fosse inglês, francês, alemão, o Guimarães Rosa estaria farto de promoção tamanha. Mas é brasileiro. Ainda outro dia eu o vi na rua, com o Otto Lara Resende. De cara empinada, as duas mãos cruzadas nas costas, ele é o Guimarães Rosa em fremente lua-de-mel com Guimarães Rosa. A gente tem vontade de pedir-lhe: — “Seja Gui­marães Rosa com mais naturalidade”.)
Todavia, continuei sofrendo. Meu nome estava em todos os jornais. Por essa época, o Getúlio, impressionado, pergun­tou ao então ministro Capanema: — “O que é que há com o teatro, que os jornais só falam em teatro?”. Capanema respon­deu: — “São os Comediantes e é Vestido de noiva”. Mas eu an­dava na rua e ninguém me conhecia, ninguém me apontava. E aí estava a duplicidade alucinante: — eu era nominalmente cé­lebre e fisicamente desconhecido. Minha cara não significava nada para ninguém.
Uma semana depois da estréia de Vestido de noiva, acon­teceu um pequeno e assombroso episódio. Imaginem vocês que entrei na rua Alcino Guanabara. Vinha andando e passei por uma porta de engraxate. Olho e vejo, sentado, engraxando os sapa­tos, alguém que eu conhecia. Era Gustavo Capanema, ministro de Getúlio. Eu ia passar adiante sem nenhuma veleidade de cumprimentá-lo. Mas foi o ministro que tomou a iniciativa: — abria o riso. Estava de chapéu e, se não me engano, tirou o chapéu (mas não afirmo que tenha tirado o chapéu). Por um lapso fulminante, esqueci-me da apoteose recente, do uivo da platéia e do lustre pingando diamantes. Eu me crispei de humildade diante do ministro. Mas Capanema inverteu tudo, impulsivamen­te: — era ele quem fazia questão do cumprimento, questão do riso, questão de ser reconhecido. Fora de mim, vermelhíssimo, acenei. Apressei o passo, como se fugisse. Sentira no ministro toda uma cálida humildade diante do artista.
Fui andando e ia dilacerado de alegria. E, então, comecei a pensar no futuro. O cumprimento de Capanema deu-me uma sensação de plenitude. Imaginei que Vestido de noiva ia ser tra­duzido em não sei quantos idiomas, representado em Tóquio e na Broadway, filmado em Hollywood. Bom sujeito, o Capa­nema. O episódio do engraxate tocou-me como se fosse um mo­mento da bondade humana.
Mas eu era outro. Três ou quatro dias depois da estréia, o telefone me chama no Globo. Era David Nasser: — “Nelson, o Freddy Chateaubriand quer falar contigo”. Ainda perguntei: — “Sobre quê?”. E David: “Só conversando”. Havia um restau­rante na rua Rodrigo Silva. Podíamos almoçar lá, no dia seguin­te. E assim se fez. Almocei com Freddy Chateaubriand, David, Millôr Fernandes e Geraldo de Freitas. Freddy chamou-me pa­ra trabalhar nos Diários Associados. Dava-me um ordenado mui­to maior; e oferecia-me a direção de duas revistas: — Detetive e O Guri. Comendo meu bom bife, que o Freddy ia pagar, sen­ti que, por trás do convite, estava Vestido de noiva, e estava o berro do José César Borba chamando o autor, o autor. E, ali, passando a manteiga no pão, eu era o autor.
Roberto Marinho deixou-me ir e ainda me deu, a título de indenização amiga, dez contos. Quando entrei na antiga reda­ção de O Cruzeiro, a revista começava sua formidável ascen­são. Mais tarde, eu diria que a equipe daquele tempo era uma geração tão brilhante como fora, em Portugal, a dos Vencidos da Vida. Lá estavam David Nasser, Millôr Fernandes, Franklin de Oliveira, Hélio Fernandes, Geraldo de Freitas, todos reuni­dos sob a fraterna e inteligentíssima autoridade de Freddy Chateaubriand. Imediatamente depois da minha chegada, Accioly Netto publicava quatro páginas sobre Vestido de noiva. Se não me engano, David escreveu o texto.
Minha peça teria uma promoção natural. Mas ainda era pou­co para o meu desesperado narcisismo. Lembro-me de que, eu mesmo, escrevi não sei quantas páginas sobre minha própria obra. E pedia ao companheiro mais próximo: — “Posso botar teu nome?”. O outro assinava e a matéria saía em três, quatro páginas. Até que, um dia, sinto um gosto esquisito. Penso: — “Não volto para o Sanatorinho”. Levanto-me, caminho até o fundo do escritório. Repetia a mim mesmo: — “Sanatorinho, não”. Tranco-me e examino: — veio sangue na saliva. Lembrei-me da mocinha que, em Campos ao Jordão, sentiu o mesmo gosto. A princípio, fora uma mancha vermelha ou, nem isso, rósea. Em seguida, começara a hemoptise. No dia seguinte, ao amanhecer, morria a menina, boiando no próprio sangue. Na velha redação de O Cruzeiro, disse para mim mesmo: — “É a hemoptise”.

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