terça-feira, 26 de maio de 2009

Capítulo 50 - A Menina sem Estrela

Quando vi o sangue na saliva, voltei para a redação e avi­sei: — “Vou ao médico”. Saí. Descendo a rampa, comecei a pen­sar: — “Pode ser da úlcera e não do pulmão”. Eu tinha uma úlcera que, por vezes, se torcia e retorcia como uma víbora. Mas a hipótese pulmonar era a mais provável. Sanatorinho, não. To­mei um táxi e fui ver Genésio Pitanga, no sétimo andar do edi­fício Cineac.
Mas não falarei, hoje, da minha visita ao tisiólogo famoso. No momento, o que me interessa é contar a minha primeira ex­periência sexual. Desde que comecei as memórias, penso, e de uma maneira obsessiva: — “Preciso contar a minha primeira ex­periência sexual”. Já falei da demente, filha da lavadeira, que eu vira, por um momento fulminante, nua, encostada na pare­de e nua. Ainda vejo a nudez crispada diante do menino.
Eu tinha meus seis, sete anos. E acreditava, até então, que só os meninos e as meninas ficam nus. A nudez adulta me parecia absurda. Daí o meu espanto quando vi a doida, mulher feita, com­pletamente nua. Lembro-me de que, de noite, no quarto atormen­tado de percevejos, pensava que as senhoras, as tias, as vizinhas, as visitas também ficam nuas. Comecei a ter medo e asco.
Também contei que, aos quatro anos, fui proibido de en­trar na casa da vizinha. Lá havia uma menina da minha idade ou pouco menos. Devo ter feito algo com a garota, de que não me lembro. Portanto, o meu primeiro feito erótico é anterior à memória e à vontade. (Estou repisando certos momentos de vida para chegar à minha primeira experiência sexual.)
Estou, novamente, na rua Alegre. Quando eu queria tecer as minhas fantasias, ia para o fundo do quintal, junto do tanque. Lá, ficava horas, falando sozinho ou calado e sonhando. Lembro-me de que, uma vez, comecei a imaginar uma mulher. Absurda, mas ideal que jamais ficasse nua. Ela poderia tirar to­da a roupa, toda, e ainda assim não estaria nua. Essa mulher, de nudez impossível, tomou as feições e toda a figura da pro­fessora que era, no momento, o meu grande amor.
Depois, tive outra professora e esqueci a anterior. Mas, por vários anos, continuei agarrado à minha utopia da rua Alegre. Queria para mim a nudez impossível. Mas fui crescendo; meus amigos diziam palavrões, meus irmãos diziam palavrões. Che­gou um momento em que tive horror dos outros e de mim mes­mo. Foi então que um moleque da rua falou-me do Mangue.
Eu tinha doze anos, quando um outro, pouco mais velho, me perguntou: — “Vais?”. E eu, branco: — “Aonde?”. Respon­deu: — “Lá”. Eu sabia que era o Mangue. Não sei o que respondi, nem se respondi. Já me lembro; disse: — “Não sou maluco”. No outro dia, perguntei: — “Lá é como?”. O garoto contava as coisas mais espantosas.
Um dia, meu pai trouxe para casa o Crime e castigo, de Dostoievski. Lembro-me de que ele escreveu, sobre Raskolnikov, um artigo chamado “Paradoxos vermelhos”. Fui ler o livro no quarto trancado. Comecei às sete da noite, antes do jantar, e não jantei. Não parei mais. O que me feriu não foi o crime de Raskolnikov. Claro que me assombrou a morte da velha usurária e de sua irmã. O que me doeu mais, porém, foi a figura de Sônia. A princípio, não percebi tudo. O livro falava em “livrinho amarelo”. Não entendi e voltei atrás. Acabei entendendo que era prostituta. Sônia, prostituta! Comecei a sentir uma pe­na absurda, e tão funda, e tão doce, uma pena que nascera co­migo, que existia antes de mim.
Fui um menino capaz de todas as paixões. A revista daque­le tempo, mensal, era Eu Sei Tudo. Amei, como um perdido, retratos de Eu Sei Tudo. E Sônia foi, desde o primeiro momen­to, o meu dilacerado amor. Lendo Dostoievski, eu pensava que ela se despia por dinheiro; e imaginava que devia ter uma nu­dez infeliz e crispada como a da demente. Não, como a da de­mente, não. Eu sonhei uma nudez de menina para Sônia. Bêba­dos, velhos, doentes a possuíam; e ela se entregava por pena dos irmãos e da madrasta tuberculosa.
E, como ela amava Raskolnikov, eu passei a ser assassino da usurária. Tremi de beleza quando os vi no quarto e sem que um desejasse o outro. Era uma ternura desesperada, um querer bem sem esperança nenhuma, nenhuma. Súbito, há o lance de ópera ou pior, pior — de Rádio Nacional. Raskolnikov ajoelha-se aos pés da prostituta e brada: — “Não foi diante de ti que me ajoelhei, mas diante de todo o sofrimento humano”. Cho­rei ao ler isso; e chorava por Sônia, pelo assassino e por mim.
Depois, através dos anos, reli, muitas e muitas vezes, a mes­ma cena. Adulto, e já com um mínimo de lucidez crítica, pude perceber o mau gosto hediondo. Mas aí é que está: — a grande ficção nada tem a ver com o bom gosto. Acabei de ler o Crime e castigo. Eram oito horas da manhã, ou nove, quando os dei­xei na Sibéria. Ou por outra: — era eu que estava na Sibéria, e Sônia comigo. E era um amor sem desejo, nada lascivo, cálido como um martírio.
Vivessem os dois mil anos e jamais se possuiriam. Eu tinha, então, treze anos e começava a freqüentar, de calças curtas, o jornal do meu pai A Manhã. Ia para a redação de manhã e vol­tava à tarde. E comecei a achar que o adulto é um canalha. Via os redatores, os repórteres, os fotógrafos, os revisores em fe­roz e permanente euforia pornográfica. No Glória, teatro do bair­ro Serrador, estava a companhia de Jardel Jercolis, Tro-Ló-Ló. No fim de cada espetáculo, o pessoal da redação ia atropelar as atrizes, coristas e bailarinas.
Eu voltava para casa, ferido pelas gargalhadas, palavrões e ges­tos obscenos. Vejo o fotógrafo Vítor Teófilo, de revólver na cin­ta, perguntando: — “Por que você não usa calças compridas?”. Estava na moda um vício hoje obsoleto, nostálgico: — a cocaína. Dois ou três, na redação, eram cocainômanos. Certa vez, um su­jeito, cara de índio, fumando de piteira, perguntou-me: — “Você é filho do Mário?”. Era o famoso Zeca Patrocínio, filho do aboli­cionista. Uma noite, Zeca cheirou cocaína e deixou-se fotografar, seminu, bêbado de êxtase, e tinha um olhar absurdo de santo.
Até que, um dia, entro, na redação, de calças compridas. Estava de roupa nova, chegada do alfaiate. Foi um sucesso. Al­guém bateu-me nas costas: — “Agora sim. Você está vestido de homem”. Andei algum tempo na redação, falei com um, com outro; e, por fim, disse: — “Vou ao cinema”. Não era cinema; eu ia, pela primeira vez, ao Mangue. Desejo nenhum, não era desejo. Eu procurava o amor.

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