quarta-feira, 27 de maio de 2009

Capítulo 51 - A Menina sem Estrela

Quando o ônibus passou pela praça Onze, começou a mi­nha angústia de menino. Teria que saltar dois postes adiante. A noite já caía sobre a torre da Brahma. Desde a véspera, eu só pensava na demente da rua Alegre e na sua nudez cravada na parede. Mas não queria ter medo. Disse de mim para mim: — “Vou pensar em fulano”.
Fulano era um caricaturista de A Manhã, que se matara no Leblon. Eis como tudo aconteceu: — o rapaz sentou-se na areia, tirou os sapatos, as meias, o paletó; depois, arregaçou a calça até o meio da perna. E, então, caminhou para o mar, descalço, de fronte alta. A minha imaginação o via entrando no mar (e ninguém sabia por que se matara o caricaturista sem talento).
Assim desapareceu, “tragado pelas ondas”, como dizia o jornal. Durante três dias e três noites, o corpo andou perdido. No ônibus que me levava ao Mangue, imaginei a solidão do afo­gado. O cadáver boiando na corrente e só velado pelo grito das gaivotas. E quando o rapaz tornou à praia eu e outros da reda­ção fomos vê-lo. Estava seminu, de calça e cinto. E ainda vejo a sua cara. Muitos anos depois, fiz esta imagem para uma das minhas tragédias: — “O afogado tem os olhos brancos e a boca obscena”. Era o caricaturista morto, na areia.
Saltei no segundo poste. E, como pensava no afogado, já não tinha medo. Atravessei a avenida do Mangue, e era meni­no, tão menino. Na redação falavam muito na rua Benedito Hipólito, que teria as mulheres mais bonitas. “Elas te chamam”, explicavam. Cinco mil-réis. Eu tinha vinte no bolso. E ia olhan­do tudo, dilacerado de curiosidade.
A rua Benedito Hipólito era cheia de janelas feéricas. Vou de uma esquina a outra e volto; tudo incendiado de lâmpadas. E era como se, em cada casa, ardesse a chama dos velórios. Ainda vejo uma prostituta velha, lendo, na janela, um romance da co­leção das moças (se não me engano, de Guy de Chantepleure). Passam caras de nortistas; lembro-me de um português alto, de chapéu, colarinho, gravata. Passeava e baixava os olhos para as mulheres. Seu desejo era triste e humilde.
E, de repente, comecei a pensar no afogado boiando na cor­rente. Imaginei uma gaivota furando os seus olhos. Mas os olhos não estavam feridos: — estavam brancos. Vi o português en­trar, como um suicida, numa porta; ele passou e uma mulata gorda (mulata de Di Cavalcanti, antes do Di Cavalcanti) fechou a porta. Sumiram os dois.
Na esquina, parado, comecei a pensar que deveria escolher uma velha. Numa janela próxima, vi a leitora da coleção das mo­ças. Teria pena de mim; perceberia que era a primeira vez que eu. E se eu fosse embora? Na redação, contavam que um pa­raense, conhecido não sei de quem, fora à rua das mulheres em Belém. Depois viera para o Rio, num navio da Costeira. No últi­mo ou penúltimo dia de viagem, vira, no pescoço, uma espi­nha; no dia seguinte, outra. Desembarca no Rio e as espinhas se multiplicaram. Que é isso, meu Deus? Depois, uma das espi­nhas floresceu; e era triste e lívida como uma gangrena. Aca­bou indo ao médico de pele. Fez exames e foi saber do resulta­do. O médico o recebeu por último e ainda mandou embora a enfermeira. E, então, sozinho com o cliente, tirou o avental. O nortista perguntou: — “E então, doutor?”. O médico respon­deu com outra pergunta: — “Tem família aqui? Onde mora seu pessoal?”. Atônito, ia respondendo. Apanhando o resultado dos exames, o médico começou: — “Está vendo? Positivo”. Silên­cio. Insistiu: — “Positivo”. O paraense custou a perceber que estava morfético.
Só conseguia pensar no paraense. Se eu passasse uma ho­ra com uma daquelas mulheres (inclusive a velha da coleção das moças). Saí da esquina e vim caminhando. Não havia nin­guém mais só, ninguém tão só. A velha do romance me trata­ria como um menino; teria pena de mim; e me chamaria de “meu filho”. Mas, se eu estivesse com uma delas e se, dois dias depois, descobrisse espinhas, muitas espinhas, no meu corpo? Iria ao médico; e este, olhando o resultado dos exames, diria: —”Positivo”.
Meu irmão Roberto falava nas leprosas do Mangue. Entrei num café e pedi uma média. Pão com manteiga. Do outro lado da rua, uma das mulheres se esganiçava na janela: — “José! Traz uma Cascatinha!”. O José vai na geladeira Ruffier, apanha uma garrafa. Vejo o garçom, em mangas de camisa, gravatinha-borboleta, atravessando a rua. Depois da média, pago e saio.
“Essa não tem cara de leprosa”, imagino. Paro, no meio da calçada. Sorriso da mulher (vinte e poucos anos); ela abre a porta; e continua sorrindo. Entro, o coração dando arrancos. Devia ter preferido a velha. Sim, a velha me sentaria no colo; e, depois, tiraria os meus sapatos. Entro por um corredor; divi­sões de madeira. Grito de mulher, ao lado. A minha cochicha: “É a Ariete que está apanhando”. Fecha a porta.
Quando voltasse à redação diria a todo mundo: — “Fui ao Mangue”. Quero tirar o paletó. A mulher ralha: — “Não tira a roupa”. Já me tinham falado do cheiro de sabonete. Mas não é de sabonete. A demente da rua Alegre. Ah, quando ela me im­pediu de tirar o paletó, vi que não era Sônia. Não era cheiro de sabonete, nem de Lysol, nem de nada. No quarto ao lado, o homem está dizendo: — “Engole o choro, engole o choro”. Puxo o dinheiro do bolso: — “Está aqui. Não estou me sentin­do bem”. A mulher apanha a cédula. Fujo.
Estou na rua. Vou depressa, quase correndo e quase gri­tando. Por detrás da torre da Brahma, vi uma constelação erguer-se em todo o seu patético esplendor. E, de repente, rompe em mim uma desesperada alegria. “Não volto mais”, eis o que pen­so. Parado, na esquina do ônibus, sonho com a missa da minha infância. Lá estava o coroinha e, por trás do padre, o sono dos círios nos altares. Imaginei-me velho e vestido de monge, monge para ser enterrado no chão das igrejas.

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