quinta-feira, 28 de maio de 2009

Capítulo 52 - A Menina sem Estrela

Tomo o ônibus, de volta. Sento-me no último banco. Nu­ma felicidade absurda, pago a passagem. Não vira ninguém pa­recido com Sônia. A mulher não me tocou, não me passou ne­nhuma doença. O meu corpo está puro, limpo, branco, sem uma mácula. E foi ao dobrar a Avenida que, de repente, nasceu o desejo — tardio, cruel, desesperado.
E veio também, com a volúpia fora de hora, a humilhação de ter falhado. Se soubessem na redação? Ninguém podia sa­ber, nem eu diria a ninguém. Podia ter ido para casa, mas saltei na Galeria Cruzeiro. Entrei no jornal e vi o Pimentel, chefe da revisão. “Vem cá, vem cá”, chamei-o. Fomos para a sacada. Bai­xo a voz: — “Fui ao Mangue”.
Pimentel chama os outros. Fui cercado por uns quatro ou cinco. Menti. Disse que era francesa. Uma beleza. Um corpo, que corpo. Já não pensava em Sônia, nem nos monges enterra­dos no chão das igrejas. Voltaria no dia seguinte. E, num instante, a notícia foi de mesa em mesa, chegou à revisão, às ofici­nas. Bem me lembro de um redator velho, míope, que tinha uma dilatação da aorta. Disse: — “Mas cuidado”. Um outro sabia de um remédio, uma bisnaga, a última palavra.
Pouco depois, tomo um ônibus para Copacabana; e ia pen­sando: — “Amanhã, volto”. Desta vez, não precisava escolher; seria a mesma da véspera. E, ao mesmo tempo, eu pensava na velha que lia, na janela, o romance da coleção das moças. Além de velha, era feia. Eu achava que a feia é mais doce, paciente, compassiva. E tinha medo das bonitas. No ônibus, me sentia com uma vontade áspera, forte, de adulto. Saltei na avenida Atlânti­ca, esquina de Joaquim Nabuco. E mudei de opinião: — “A velha, não; a moça”. A moça talvez viesse a gostar de mim. E me deitei com aquilo na cabeça: — ser amado por uma mulher do Mangue.
Minto. Não me deitei imediatamente. Quando chegava tar­de, fazia a volta na casa e olhava, por fora, o banheiro das cria­das. Se havia luz, subia na árvore, em frente. Os galhos fortes pendiam sobre o banheiro. Lá em cima, eu ficava olhando o ba­nho de uma criada qualquer. E, ao mesmo tempo, sabia que ia me arrepender, ia ter nojo de mim mesmo. Passei pelo banhei­ro das empregadas: — apagado. Só então subi para o quarto.
Dormi até o meio da madrugada; e, de repente, acordei. Minha cabeça estava cheia de imagens de uma voluptuosidade triste e vil. Apanhei um cigarro; fumava no escuro e pensava: — “Chego lá e digo a ela que é a primeira vez”. Se ela soubesse que era a primeira vez, talvez não cobrasse nada. E me imagina­va, na redação, dizendo aos outros: — “Ela não cobra. Comigo faz de graça”. Se ela começasse a gostar de mim, eu diria: — “Você vai ter de deixar essa vida”. Estava na janela. Joguei fora o cigarro e voltei para a cama.
Todas as manhãs, eu fazia um pequeno saque nos bolsos do meu pai. Ele acordava tarde; geralmente, saía dez e meia, on­ze. E eu podia apanhar, no bolso da calça, dez mil-réis, quinze, até vinte. Desta vez, tirei vinte. Se a mulher tiver pressa, direi: “Te dou dez mil-réis”. Não, quinze — dez. Ou oito. É melhor dez. A pressa me dava uma sensação aguda de orfandade.
Saí de casa depois do almoço, com os vinte mil-réis furta­dos. E pensava: — “Podia ter tirado cinqüenta”. A moça esta­va escolhida definitivamente. Eu imaginava a velha, na janela, lendo o mesmo livro, eternamente. Não olhava para os ho­mens, não os chamava, nem lhes dizia mon chéri. Pois bem. Comecei a imaginar as minhas longas conversas com a moça. “Você tem que sair dessa vida! Tem que sair!” E ela choran­do. Depois, talvez eu arranjasse um emprego de datilógrafa no jornal do meu pai.
Mas, quando o ônibus entra na Avenida, tive a certeza sú­bita e inapelável: — ia falhar como na véspera; e se voltasse no dia seguinte, a mesma coisa de sempre. Em seguida, passei a ou­tra certeza: — eu iria fracassar até com uma namorada. O medo bateu em mim. Passei pela torre da Brahma e não saltei. Fui até a Praça da Bandeira. Os redatores de A Manhã não tinham a minha angústia. E comigo acontecia sempre a mesma coisa: — o desejo ia morrendo à medida que me aproximava do Man­gue. Da praça da Bandeira, voltei para a redação.
E foi aí que vi, ou melhor dizendo, ouvi uma história que me feriu tão fundo. Na redação, estava o Valdemar, no meio de um grupo, falando do caricaturista sem talento. A princípio, nin­guém entendera o suicídio. Dizia-se: — “Um homem cheio de mulheres”. E, de fato, antes de ficar noivo, o caricaturista pare­cia ter uma amante em cada esquina. O Valdemar, confidente do morto, explicava tudo.
Simplesmente, o caricaturista estava amando. Amando de verdade e amando para sempre. Ele desabafava com o Valde­mar: — “Pela primeira vez, amo”. Pediu a mão da menina; e deixava o tempo passar, como se a solução fosse um noivado eterno. O futuro sogro começou a fazer a pressão. E, um dia, o caricaturista agarra o Valdemar, que, por sinal, era também investigador. Disse: — “Quando amo, não desejo. Até hoje, não dei um beijo na boca da pequena”. Ele não entendia que alguém pudesse desejar o ser amado. Pensava, por outras palavras: — “Todo desejo é vil”. Agarrou o investigador pelos dois braços e o sacudia: — “Desejo qualquer vagabunda, menos a minha noiva”.
A conselho do próprio Valdemar, foi ao médico. Contou todo o problema. O médico olhou, impressionado com aquela face escavada de angústia. Em arrancos, o caricaturista pergun­tava: — “Isso é doença, doutor? O que é que é isso?”. O médi­co não dizia nada; por fim, o desgraçado fez o apelo: — “Pelo menos, doutor, receite uma injeção, uma pastilha. Alguma coi­sa pra eu tomar na noite de núpcias. Pelo amor de Deus!”. O outro tirava os óculos e passava nas lentes o lenço fino. Suspi­ra: “Meu filho, não vou receitar nada”. Atônito, o caricaturista sentiu-se num abandono total. O médico repôs os óculos e com­pletou: — “Isso é amor! O amor é assim”.
O caricaturista saiu de lá, numa dilacerada euforia. Estava agora certo de que ninguém deve possuir o ser amado. Uma tar­de, procurou o Valdemar. Falou num tom de folhetim antigo: — “Acabei de assinar a minha sentença de morte. Estou morto. Morri”. O outro não entendia: “Como? Como?”. E o caricatu­rista, pálido como um santo: — “Marquei a data do casamen­to”. Espanto do Valdemar: — “E daí?”. Explodiu: — “O que é que eu vou dizer à menina na noite do casamento? Ela não vai entender, ninguém vai entender”. No dia seguinte, o pobre-diabo entrava no mar, com a calça arregaçada até o meio da per­na. E morreu. Eu ouvia, mudo e atônito. E, naquele momento, achei, como o afogado, que nenhum homem deve possuir a bem-amada.

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