sexta-feira, 29 de maio de 2009

Capítulo 53 - A Menina sem Estrela

A morte do caricaturista me persegue até hoje. Como es­quecer esse rapaz doce e apavorante que podia desejar qualquer uma, menos a mulher amada? E tão comovente como o suicida é o médico que o atendeu. Médico que jamais conheci, nem de vista, nem de nome, nem de nada. Por uma leviandade de ficcionista, eu o descrevi de avental e óculos. O avental é pro­vável. Mas não sei se usava os óculos.
Realmente, é fascinante um médico que justifica e promo­ve uma impotência, dizendo: — “É amor”. O caricaturista ou­viu, numa euforia total. Saiu purificado, reabilitado de toda a vergonha, de toda a humilhação. Só ele estava certo, os outros estavam errados. Do consultório, partiu para o suicídio.
E assim morreu, certo de que o mundo não é a casa do amor. Mas como eu ia dizendo: — a história do caricaturista es­tá encravada em mim, para sempre. Ouvi o Valdemar e saí, nu­ma perplexidade que me dilacerava. Desci as escadas da reda­ção e fui tomar sorvete de creme no Ponto Chic (na pequena rua Bethencourt da Silva). A sorveteria tinha um delicado e evocativo clima de belle époque.
Eu pensava que o amor não é o amor. Ou por outra: — o amor, como o imaginamos e como o fazemos, é tão falso, tão vil e, pior, tão sem amor. “Não possuir o ser amado”, dizia o médico do suicida. E não desejar o ser amado, nunca. Eu ouvia falar muito nos instintos. Não me lembro se cheguei a concluir, aos treze anos, que o amor começa depois dos instintos e con­tra os instintos.
(A natureza nos dotou de instintos por lapso, engano, le­viandade ou sei lá. Ainda me pergunto por que os temos e por que os suportamos.) Quarenta e um anos depois, estou eu, na casa de um amigo comum, conversando com Antônio Galotti e Aloísio Salles. E os dois me contaram um episódio que me en­sinou, que me ensinou tudo. Imaginem vocês um grande escri­tor brasileiro, ensaísta, romancista, poeta, jurista, o diabo.
E, um dia, no Velho Mundo, ele conhece o amor. Normal­mente, o brasileiro vive atolado em cavas depressões. Não esse. Esse vive de paroxismo em paroxismo. Tem, a qualquer hora, uma luminosidade de sátiro vadio. E, além disso, tinha o ambiente ilustre. Na Europa, ama-se com paisagem. Por trás do homem e da mulher, tudo tem mil anos: — as pontes fluviais, as igrejas, os telhados, as flores e os pombos.
O nosso patrício tremia de beleza como se cada momento fosse o último e o primeiro. Não dava um bom-dia à mulher ama­da sem lhe pingar gênio. Até que, um dia, marcam um encon­tro num interior secretíssimo. E o brasileiro queria amar aquela mulher como o D’Annunzio dos bons tempos, isto é, dos tem­pos em que era uma honra ser amante de D’Annunzio.
Ora, para o brasileiro não há nada mais solene do que o primeiro momento da intimidade carnal. E outra verdade deci­siva: — podemos ter todas as modéstias, menos a sexual. O bra­sileiro finge um desejo indiscriminado e voraz por todas as mu­lheres, vivas ou mortas. E o grande escritor foi para o encon­tro, ébrio de si mesmo; e jamais houve, na Terra, um ser exa­lando tamanha luminosidade.
Há o encontro. Estão sós, maravilhosamente sós, como se fossem o primeiro e último casal da Terra. Ela espera, com ar­dente paciência; e nada. O brasileiro usa todo o seu gênio ver­bal. Palavras, palavras e mais palavras. Mas eis a verdade: — ele tem amor e não desejo. Duas horas, três, toda uma tarde. Diga-se que, depois dos primeiros quinze minutos, ela percebe tu­do; ama-o mais por isso, porque sente todas as fragilidades lu­minosas do homem amado.
Durante um mês, repetiu-se, todas as tardes, o insucesso nítido, límpido, inequívoco. Chegou um momento em que ele foi apenas o espectador atônito. Era ela, com sábia obstinação, quem ousava tudo o que nenhuma outra mulher imaginaria. Por trinta vezes, o brasileiro foi a humilhação mais violenta, a ver­gonha mais crispada do mundo.
Terá pensado no suicídio? Não sei. Em ocasiões semelhan­tes, a primeira idéia do brasileiro é meter uma bala na cabeça. Até que, uma tarde, vai o grande escritor a um médico da Itália. Ele estava não sei se em Roma ou Florença ou Veneza (prefiro Florença). Entra no consultório, conta tudo e pergunta: — “O que é isso, doutor?”. Disse o outro: — “Amor”. Simplesmente amor. Apenas amor.
A história acaba aqui. O que houve depois interessa pou­co. E o que importa é a semelhança entre as duas histórias, do caricaturista e do escritor. Com o suicida dos meus treze anos aprendi para sempre. Aprendi, entre outras, esta verdade tão evidente e jamais suspeitada: — pode-se amar sem posse, e amar até a última lágrima de paixão e de vida. Lembro-me de uma jovem senhora que me dizia: — “Meu amor acabou na primei­ra noite do casamento”.
Engano. O amor que acaba não era amor. Todo amor é eter­no. Eu diria que a nossa tragédia começa quando separamos o sexo do amor. Vejam as doenças da carne e da alma, do câncer no seio às angústias sem consolo. Os nossos males têm quase sempre esta origem fatal: — o sexo sem amor.
Mas estou divagando, e desculpem. Quero contar, em se­guida, a minha grande viagem pelo Mangue. Eu ia conhecer uma figura que não morrerá jamais: — a prostituta, que, segundo um poeta, “pertence à mais antiga das profissões”. A mulher de um homem só é recente na história do coração humano.

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