sábado, 30 de maio de 2009
Capítulo 54 - A Menina sem Estrela
E, de repente, descobri a prostituta vocacional. Ou por outra: — não foi de repente. Primeiro, tive de passar por uma série de experiências, de tentativas, de agonias, de espantos. Queria encontrar Sônia. Três vezes por semana, estava eu na rua Benedito Hipólito. Via um entrar e, depois, outro, mais outro. Só eu não tinha coragem. Certa vez, houve um tiroteio. Eu passava pela porta de um café, quando um sujeito puxou o revólver. Descarregou a arma. Tiro quase à queima-roupa. E tudo isso dentro do café. O outro, ágil, elástico, acrobático, saltava por cima das mesas, das cadeiras, do balcão. Corri alucinado de medo. E, já na Avenida do Mangue, parei um momento junto à palmeira. Naquele momento, me senti perdidamente menino. “Não volto mais”, decidi. Comecei a pensar no banho noturno das criadas. Não havia o perigo de uma bala perdida, ou de uma doença, e eu não sentia nem a vergonha, nem o medo. Nessa mesma noite, chego em casa e passo pelo banheiro das empregadas: — iluminado. Subo na árvore, instalo-me e fico de olhar parado como um cego. Dias depois, começo a trabalhar no jornal de meu pai. Se bem me lembro, foi o meu irmão Milton que me mandou para a reportagem policial. A Manhã saíra da rua Treze de Maio, passara para a Avenida, em frente à Galeria Cruzeiro. Ainda me vejo, na redação, com os meus treze anos, nome na folha e ordenado de trezentos mil-réis, escrevendo a minha primeira nota. Não vou me esquecer nunca: — era uma notícia de atropelamento. Um rapaz, ao atravessar a rua São Francisco Xavier, fora apanhado por um automóvel. Eu me torturei como Flaubert fazendo uma linha de Salambô. E a prosa saiu-me concisa, precisa, objetiva, como a atual. Comecei pelo nome, claro. Escrevia à mão. E procurei, inclusive, trabalhar a caligrafia. “Fulano de tal, de 27 anos” (não sei se era essa a idade). O morto era preto. Muito bem: — preto. Mas a reportagem policial tinha, então, certos achados estilísticos. Por exemplo: — preto era pardo. E eu continuei: — “Pardo, solteiro”. Realmente, o estado civil do atropelado está na minha memória. Não há a menor dúvida: — solteiro. E fui adiante: — “Pardo, solteiro, foi colhido”. Ninguém era simples e crassamente atropelado, e sim “colhido”. “Colhido e morto”, parei. Tinha uma dúvida: — “Colhido e morto por um automóvel” parecia-me escasso e frouxo. Penso, penso e não me ocorre nada. Sim, é pouco “colhido e morto por um automóvel”. Faltava algo. Desde que me destinaram à reportagem policial, eu andava lendo, relendo e meditando as notas de atropelamento. Puxo pela memória. E, de repente, baixa uma luz e completo a frase: — “Colhido e morto por um automóvel em disparada”. Para o repórter de polícia, era sempre um automóvel “em disparada” que atropelava o brasileiro. E o resto. Desde a primeira audição de “Danúbio azul” que a nota de atropelamento é espantosamente igual a si mesma. Muda a vítima e nunca as palavras. Todavia, o “disparada” lisonjeou-me como se fosse uma criação minha. Estou parado. “Como é que acabo a nota?”, é o que me pergunto. E, súbito, brota uma idéia que a mim próprio surpreendeu. No Brasil, quando alguém morre na rua, aparece uma vela acesa, ao lado do cadáver. Ninguém sabe, e jamais saberá, quem a pôs ali, quem riscou o fósforo, quem deixou aquela chama que vento nenhum apagará. É um uso brasileiro, que as gerações preservam, piedosamente. E eu me lembro de terminar com uma menção à vela. Primeiro, eram só a vela e a respectiva luz. Em seguida, comecei a enriquecer a idéia. Podia dizer que uma senhora, vestida de preto, acendera uma vela etc. etc. “Senhora de preto” era bom. Ou, em vez de “senhora”, mulher de preto? Mulher, mulher. Fosse como fosse, era a primeira vez, absolutamente a primeira vez, em que se punha uma vela numa nota de atropelamento. Faltava muito pouco para concluir a notícia. Bastava um empurrão e pronto. Mas comecei a duvidar de mim mesmo. Mais tarde, fazendo meus textos teatrais, sentiria, por vezes, o mesmíssimo medo de trair uma rotina sagrada. E terminei limpa e honradamente assim: — “O chauffeur fugiu”. Foi esta a minha primeira pusilanimidade de ficcionista. A coisa parecia estar concluída. Não. Faltava o título. E, então, sofri, na carne e na alma, um tédio cruel, quase o asco do trabalho jornalístico. O título era uma outra batalha. Já me sentia até fisicamente cansado. Imagino: — ponho “Atropelado e morto”. O som era bom: — “Atropelado e morto”. Mas quem? Alguém seria o “atropelado e morto”. Por um instante, entrego-me a uma meditação ardente e vazia. E tenho uma idéia: — Por que não simplesmente “Atropelamento”? Só. Escrevi, com um novo e triunfal élan: — “Atropelamento”. Isso mesmo. É a solução. (Anos depois, fiz Vestido de noiva, a minha primeira tragédia carioca. A princípio, em vez de “carioca”, pensei em defini-la como “tragédia de costumes”. E o mesmo medo que me impediu de incorporar uma vela, uma pobre vela, ao meu primeiro texto jornalístico — o mesmo medo, dizia eu, impediu-me de inaugurar um gênero dramático. Precisei de vários anos para, com Perdoa-me por me traíres, lançar a primeira “tragédia de costumes”. Voltando a Vestido de noiva: — o ponto de partida da peça é, justamente, uma notícia de atropelamento. Aliás, em toda a minha obra teatral, o repórter de polícia é uma presença obsessiva.) Entreguei a notícia ao Costa Ramos, que substituía o Costa Soares na chefia da polícia, Ainda perguntei: — “Que tal?”. Respondeu: — “Bom”. Saí feliz, realizado; o atropelamento soou-me como a minha estréia literária. Foi nesse momento que um repórter me puxa pelo braço; pergunta: — “Vamos ao Mangue?”. Minha alegria morreu ali. Digo, com um princípio de angústia: — “Não tenho dinheiro”. E o outro, rápido: — “Te empresto”. Começo: — “Vamos fazer o seguinte”. Interrompe: — “Ou tens medo?”. Reajo: — “Já fui lá umas cinqüenta vezes”. Odiei aquele sujeito. Das outras vezes, eu era o único espectador da minha própria humilhação. Ninguém me vira fugir sem ser tocado. E, agora, teria uma testemunha. No ônibus, o repórter me dizia: — “Vamos numa que eu vou te mostrar. Corpo formidável. Te deixo ir primeiro. Depois vou eu”. Eu ouço e calo. E o outro tirando a mão do bolso: — “Toma. Dez mil-réis. Dá dez mil-réis”.
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