Bem me lembro do repórter, no ônibus, a caminho do Mangue. Não parou de falar. Ainda vejo a cara forte, o olho rútilo, o movimento das mandíbulas e a saliva espumando nos dentes. Eu era levado; ele me carregava. E, de repente, começou a falar da própria família. Disse: — “Vou te contar uma, que vais ficar besta”. O cobrador apareceu e ele teve um gesto radiante: — “Deixa que eu pago”. Pagou as duas e embolsava o troco. Riu: — “Sabe o que eu fiz?”.
O cobrador passava adiante. E o repórter continuou: — “Moramos numa casa velha, na Tijuca. Perto de onde morou um almirante. Não me lembro do nome: — um almirante”. A conversa me distraía do medo do Mangue. E ele, baixo, crispado: — “Então, fiz o seguinte. Subi no forro e abri um buraco em cima do banheiro”. Parou, espiando a minha reação; repetiu: — “Bem em cima do banheiro”. Limpa um pigarro e continua: — “Se vê tudo, percebeu? Tudo. Subo lá, de manhã, quando as minhas irmãs vão tomar banho”.
As irmãs. Foi como se ele me enfiasse o pé no peito. Não primas, ou tias, mas irmãs. Quis duvidar: — “Irmãs?”. E ele, feliz: — “Irmãs. Tenho quatro irmãs. Você se lembra de Zezé Leone? A que foi miss?”. Fiz que sim; prosseguiu: — “A minha irmã mais velha é a cara dela, a cara. Igualzinha”. E, sem transição, agarra o meu braço; pergunta, num apelo: — “Queres ir lá? Olha: — tu vais e eu faço outro buraco no forro. Dormes lá e, de manhã, subimos e já sabe”.
Digo, no meu desespero: “Depois a gente fala”. Tenho vontade de mudar de banco; e dizia a mim mesmo, crispado: — “Se fossem primas e não irmãs. Primas”. Olho-o, de lado, como se o visse pela primeira vez. Durante a semana, aquele rapaz vagava, por entre mesas e cadeiras, como obscuro repórter, transido de humildade. Como é que aquele sujeito, ao passar a mão na cara, não sente a própria hediondez?
Só nos sábados é que mudava até fisicamente. Agora eu sabia: — sábado era o dia ou a noite do Mangue. Quando saltamos, perto da Brahma, digo, impulsivamente: — “Com a tua não vou”. O outro pára; parecia um desfeiteado: — “Não vai por quê?”. Respondi, com raiva: — “Escolho uma. Por que a tua?”. Olho, sem pena, o canalha dos sábados.
Ou por outra: — não só dos sábados. Era mais canalha todas as manhãs, quando as irmãs iam tomar banho, antes do café. Ainda me convidava para espiar também no buraco do forro. Atravessamos a avenida do Mangue, discutindo e, ao mesmo tempo, fugindo dos automóveis. Ele insistia, indignado; quando entramos na rua Benedito Hipólito, perdeu a fúria. Pediu, implorou.
“Você vai primeiro”, repetiu. Parecia um daqueles chefes índios, ou esquimós, que, num arroubo de anfitrião, oferece a própria esposa ao visitante. Mas se eu fosse na tal fulana, teria duas testemunhas: — o próprio repórter e a pequena. Ele trataria de saber, com a outra, tudo. E eis a verdade: — estava certo de que ia fracassar outra vez. “Vou fazer feio”, repetia para mim mesmo. Imaginei o repórter, entrando depois e fazendo perguntas sobre o menino que acabara de sair. “Não sou besta”, penso. Em suma: meu plano era deixar o meu companheiro entrar e, só então, escolher uma qualquer, que não conhecesse nem a mim nem a ele.
Caminhamos, lado a lado, numa das calçadas da rua Benedito Hipólito. Ele, mudo, ia numa tristeza total. Sumira toda a sua euforia dos sábados. E, passo a passo, fui me saturando das luzes, das sombras, dos risos, das caras. De repente, me imaginei no forro, espiando, pelo buraco, o banho das meninas. A imagem está em mim, e com uma nitidez tão intensa, que o meu coração bate mais rápido. Penso numa ideal nudez molhada, com as gotas estilhaçadas nas costas e no seio.
E sinto uma voluptuosidade cruel e tão vil. Pela primeira vez, no Mangue, o desejo se irradia por todo o meu ser. Falo com uma voz que parece de outro e não de mim mesmo: — “Onde é tua pequena?”. Teve um movimento tão vivo de surpresa, de alegria, que esbarrou num marinheiro que vinha em sentido contrário. Disse, transfigurado: — “É ali. Está vendo? Ali”. Voltava a ser o feliz canalha dos sábados.
Caminhamos mais depressa e mais eufóricos. O banho das meninas não me saía da cabeça. Eu, no forro, espiando (deu-me vontade de perguntar: “E se vê bem?”). Agora era varado pela certeza inversa: — Não ia fracassar. Mas precisava pensar muito no banho. Enquanto pensasse no banho, estaria salvo do medo. De repente, o repórter estaca. Bate em mim com o cotovelo: — “Aquela. Olha. A morena”. E, de fato, era morena, cheia de corpo, as ventas de forte e plebéia volúpia.
Pergunta: — “Que tal?”. Continuo me imaginando no forro. Eis a fantasia que me queima: — Uma moça que interrompe o banho para apanhar, no ladrilho, o sabonete que escorregou da mão. Vejo o dorso curvado, o movimento do músculo puro e elástico. O repórter baixa a voz, no apelo: — “Vai, anda, vai”. Ainda vacilo. Ele tem medo que outro se antecipe. As calçadas estão inundadas de gente. Ouço a voz: — “Vou depois. Anda, anda”. Digo: “Calma, calma”. E ele, em ânsias: — “Deixa de ser chato!”.
(Boa época em que “chato” era palavrão.) E, então, tomo coragem. Caminho por entre os que passavam. A morena abre a meia porta. Não há palavras. Vai na frente. Pequenas divisões de madeira. Sigo atrás. Não direi que é a primeira vez, porque ela contaria ao repórter. Entro no pequeno quarto. Ela cantarola de costas para mim. Desfaz um laço. Ouço a minha própria voz: — “Te dou dez mil”.
Estou saindo e não penso mais no banho. O repórter me espera, em cima do meio-fio. Assim que me vê, corre ao meu encontro. Balbucia: — “Que tal? Que tal?”. Respondo: — “Sei lá”. E ele, com a boca encharcada: — “Me espera, me espera”. Agora sou eu que estou parado, no meio-fio. Fico lá uns dez minutos, se tanto. Já ia-me embora quando o repórter aparece.
Seguimos, calados, para a avenida do Mangue. Num silêncio torturado, o outro puxou um cigarro. Mais adiante, começou a falar: — “Olha aqui. Aquilo que te disse é mentira. Não olhei banho nenhum das minhas irmãs. Mentira. Só uma vez, quando garotinho, espiei, pelo buraco da fechadura, uma tia. Empregadas, sim. Minhas irmãs, nunca. Juro, nunca”. Pausa. Repete, olhando para mim: — “Eu não faria isso”. E começou a chorar.
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