segunda-feira, 1 de junho de 2009

Capítulo 55 - A Menina sem Estrela

Bem me lembro do repórter, no ônibus, a caminho do Man­gue. Não parou de falar. Ainda vejo a cara forte, o olho rútilo, o movimento das mandíbulas e a saliva espumando nos dentes. Eu era levado; ele me carregava. E, de repente, começou a falar da própria família. Disse: — “Vou te contar uma, que vais ficar besta”. O cobrador apareceu e ele teve um gesto radiante: — “Deixa que eu pago”. Pagou as duas e embolsava o troco. Riu: — “Sabe o que eu fiz?”.
O cobrador passava adiante. E o repórter continuou: — “Moramos numa casa velha, na Tijuca. Perto de onde morou um almirante. Não me lembro do nome: — um almirante”. A conversa me distraía do medo do Mangue. E ele, baixo, crispado: — “Então, fiz o seguinte. Subi no forro e abri um buraco em cima do banheiro”. Parou, espiando a minha reação; repe­tiu: — “Bem em cima do banheiro”. Limpa um pigarro e conti­nua: — “Se vê tudo, percebeu? Tudo. Subo lá, de manhã, quan­do as minhas irmãs vão tomar banho”.
As irmãs. Foi como se ele me enfiasse o pé no peito. Não primas, ou tias, mas irmãs. Quis duvidar: — “Irmãs?”. E ele, feliz: — “Irmãs. Tenho quatro irmãs. Você se lembra de Zezé Leone? A que foi miss?”. Fiz que sim; prosseguiu: — “A minha irmã mais velha é a cara dela, a cara. Igualzinha”. E, sem transição, agarra o meu braço; pergunta, num apelo: — “Queres ir lá? Olha: — tu vais e eu faço outro buraco no forro. Dormes lá e, de manhã, subimos e já sabe”.
Digo, no meu desespero: “Depois a gente fala”. Tenho von­tade de mudar de banco; e dizia a mim mesmo, crispado: — “Se fossem primas e não irmãs. Primas”. Olho-o, de lado, como se o visse pela primeira vez. Durante a semana, aquele rapaz vaga­va, por entre mesas e cadeiras, como obscuro repórter, transi­do de humildade. Como é que aquele sujeito, ao passar a mão na cara, não sente a própria hediondez?
Só nos sábados é que mudava até fisicamente. Agora eu sa­bia: — sábado era o dia ou a noite do Mangue. Quando salta­mos, perto da Brahma, digo, impulsivamente: — “Com a tua não vou”. O outro pára; parecia um desfeiteado: — “Não vai por quê?”. Respondi, com raiva: — “Escolho uma. Por que a tua?”. Olho, sem pena, o canalha dos sábados.
Ou por outra: — não só dos sábados. Era mais canalha to­das as manhãs, quando as irmãs iam tomar banho, antes do ca­fé. Ainda me convidava para espiar também no buraco do for­ro. Atravessamos a avenida do Mangue, discutindo e, ao mes­mo tempo, fugindo dos automóveis. Ele insistia, indignado; quando entramos na rua Benedito Hipólito, perdeu a fúria. Pe­diu, implorou.
“Você vai primeiro”, repetiu. Parecia um daqueles chefes índios, ou esquimós, que, num arroubo de anfitrião, oferece a própria esposa ao visitante. Mas se eu fosse na tal fulana, teria duas testemunhas: — o próprio repórter e a pequena. Ele trata­ria de saber, com a outra, tudo. E eis a verdade: — estava certo de que ia fracassar outra vez. “Vou fazer feio”, repetia para mim mesmo. Imaginei o repórter, entrando depois e fazendo pergun­tas sobre o menino que acabara de sair. “Não sou besta”, pen­so. Em suma: meu plano era deixar o meu companheiro entrar e, só então, escolher uma qualquer, que não conhecesse nem a mim nem a ele.
Caminhamos, lado a lado, numa das calçadas da rua Bene­dito Hipólito. Ele, mudo, ia numa tristeza total. Sumira toda a sua euforia dos sábados. E, passo a passo, fui me saturando das luzes, das sombras, dos risos, das caras. De repente, me imagi­nei no forro, espiando, pelo buraco, o banho das meninas. A imagem está em mim, e com uma nitidez tão intensa, que o meu coração bate mais rápido. Penso numa ideal nudez molhada, com as gotas estilhaçadas nas costas e no seio.
E sinto uma voluptuosidade cruel e tão vil. Pela primeira vez, no Mangue, o desejo se irradia por todo o meu ser. Falo com uma voz que parece de outro e não de mim mesmo: — “Onde é tua pequena?”. Teve um movimento tão vivo de surpresa, de alegria, que esbarrou num marinheiro que vinha em sentido contrário. Disse, transfigurado: — “É ali. Está vendo? Ali”. Voltava a ser o feliz canalha dos sábados.
Caminhamos mais depressa e mais eufóricos. O banho das meninas não me saía da cabeça. Eu, no forro, espiando (deu-me vontade de perguntar: “E se vê bem?”). Agora era varado pela certeza inversa: — Não ia fracassar. Mas precisava pensar muito no banho. Enquanto pensasse no banho, estaria salvo do medo. De repente, o repórter estaca. Bate em mim com o coto­velo: — “Aquela. Olha. A morena”. E, de fato, era morena, cheia de corpo, as ventas de forte e plebéia volúpia.
Pergunta: — “Que tal?”. Continuo me imaginando no for­ro. Eis a fantasia que me queima: — Uma moça que interrompe o banho para apanhar, no ladrilho, o sabonete que escorregou da mão. Vejo o dorso curvado, o movimento do músculo puro e elástico. O repórter baixa a voz, no apelo: — “Vai, anda, vai”. Ainda vacilo. Ele tem medo que outro se antecipe. As calçadas estão inundadas de gente. Ouço a voz: — “Vou depois. Anda, anda”. Digo: “Calma, calma”. E ele, em ânsias: — “Deixa de ser chato!”.
(Boa época em que “chato” era palavrão.) E, então, tomo coragem. Caminho por entre os que passavam. A morena abre a meia porta. Não há palavras. Vai na frente. Pequenas divisões de madeira. Sigo atrás. Não direi que é a primeira vez, porque ela contaria ao repórter. Entro no pequeno quarto. Ela cantaro­la de costas para mim. Desfaz um laço. Ouço a minha própria voz: — “Te dou dez mil”.
Estou saindo e não penso mais no banho. O repórter me espera, em cima do meio-fio. Assim que me vê, corre ao meu encontro. Balbucia: — “Que tal? Que tal?”. Respondo: — “Sei lá”. E ele, com a boca encharcada: — “Me espera, me espera”. Agora sou eu que estou parado, no meio-fio. Fico lá uns dez minutos, se tanto. Já ia-me embora quando o repórter aparece.
Seguimos, calados, para a avenida do Mangue. Num silêncio torturado, o outro puxou um cigarro. Mais adiante, começou a falar: — “Olha aqui. Aquilo que te disse é mentira. Não olhei ba­nho nenhum das minhas irmãs. Mentira. Só uma vez, quando garotinho, espiei, pelo buraco da fechadura, uma tia. Empregadas, sim. Minhas irmãs, nunca. Juro, nunca”. Pausa. Repete, olhando para mim: — “Eu não faria isso”. E começou a chorar.

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