quinta-feira, 4 de junho de 2009

Capítulo 58 - A Menina sem Estrela

Quando voltamos, no mesmo táxi, começou a chuva. Re-lampejou. No alto, abriu-se um clarão de espanto. Os ventos as­sanhavam as sombras das esquinas. E eu com os outros no tá­xi, sofria e tinha medo. Um de nós andara no quarto da suicida — remexendo gavetas e roubando retratos. Tremi diante da ver­dade súbita, jamais suspeitada: — o suicida não precisa de mo­tivo, nenhum, nenhum.
Inútil perguntar por que uma moça ou um rapaz fere a pró­pria vida. É um gesto de graça plena e nada mais. Continuei pen­sando, pensando. Cada qual tem a sua própria morte ou por outra: — cada qual é o seu próprio cadáver (só o Mário Faustino não foi cadáver, nunca. Ia para a Europa. Europa, não. Ia para os Estados Unidos. Seu jato bateu numa montanha. Tudo se desintegrou, terno, sapatos, obturações, o anel. O poeta, o crítico, o editorialista Mário Faustino morreu e não foi jamais cadáver).
Lembro-me de que, mais tarde, em casa, sonhei a noite to­da com o pacto de morte. Os dois olhando o relógio e morren­do na hora marcada: — ele, tomando formicida, ela, “ateando fogo às vestes”. E, depois, o diálogo de gritos. O rapaz gritou menos, porque morreu antes. Podia ter apenas gemido. Mas uivara para ser ouvido. Foi a noite toda assim. A gordura pinga­va, a gordura deslizava. Banha humana.
Acordei exausto de sonhar. E assim fui me tornando cada vez mais íntimo dos suicidas. Antes de prosseguir, porém, de­vo explicar que justaponho, de propósito, as minhas experiên­cias de Mangue e da reportagem policial. Umas e outras me ensinaram muito e, eu quase dizia, me ensinaram tudo; e, mais tarde, iam influir em todo o meu teatro. Reparem que falo no Man­gue e não na rua Conde Lage. Esta última era uma prostituição aristocrática, melíflua, bem educada, com jardins antigos e caramanchões nostálgicos.
Muitos anos depois, estou presente a um dos ensaios de Ves­tido de noiva. Não sei se vocês se lembram. A tragédia começa num lupanar, digamos lupanar. A heroína fora atropelada na al­tura do relógio da Glória; fratura do crânio, do braço, escoria­ções generalizadas. Quase agonizando, ela se imagina num pros­tíbulo.
E o ambiente é muito mais a rua Conde Lage do que o Man­gue. Antes de morrer, a jovem e exemplar senhora precisava viver o seu momento de prostituta. Eis o que eu queria dizer: — o deslumbramento com que, em todos os tempos, a atriz representa a meretriz. Num dos ensaios do Vestido de noiva, uma das intérpretes gritava: — “Quero um papel de prostituta”. Bem me lembro da paixão com que dizia isso.
A Alaíde de Vestido de noiva precisou morrer para realizar a sua mais doce e secreta utopia. E não há uma atriz que não queira usar o vestido, os modos, as caras, as inflexões, os risos das “filhas da desgraça”. Isso aqui, em toda parte e em todos os idiomas. Deve ter sido assim no tempo dos gregos e antes dos gregos. Não importa que a atriz seja uma mulher fidelíssima, mãe de não sei quantos filhos, dona de casa etc. etc. As me­ninas que apareciam no vestíbulo também tinham, na vida real, um comportamento irretocável, imaculado.
Mas, representando a prostituta, elas se transfiguravam. Bem me lembro dos ensaios, que acompanhei com a pertinácia fa­nática dos estreantes. Percebia-se que estavam crispadas de so­nho, doentes de voluptuosidade. E tinham a naturalidade, e a graça, e o movimento exato, e a inflexão certa. Era como se, naquele momento, cada uma estivesse cumprindo um imortal hábito feminino.
Depois das estréias, uma peça perde muito da sua potên­cia. A presença do público, isto é, a presença de duzentas se­nhoras comedoras de pipocas — compromete o mistério, o sortilégio e a sabedoria de um texto. Já nos ensaios, aparece em seu furioso estado de graça. Eu vi isso durante os meses em que Ziembinski, como um demente, preparava Vestido de noiva.
Era a cena inicial, do prostíbulo, que me fazia tremer. Eu ficava, no meu canto, tecendo inumeráveis fantasias. Eis o que pensava, observando o meu próprio elenco: — não há atriz, por mais inepta, mais incompetente ou medíocre, que represente mal a prostituta. Aí está o papel irresistível. A meretriz do tea­tro é perfeita. Não importa que a intérprete seja uma canastra. De repente, ela se põe a dizer, a inflexionar, a gesticular como uma Duse.
Citei o poeta que falou na mais antiga das profissões. Não sei se será bem assim. Minha experiência de Mangue, de repór­ter e de dramaturgo insinua outra verdade, ou seja: — a primei­ra prostituta não era mercenária. Fazia o que fazia por um dom, por uma graça, quase por uma destinação poética. Talvez seja mais válido falar-se na mais antiga das vocações.
O êxito de Vestido de noiva foi, para mim, outra experiên­cia decisiva. Já expliquei que, até a estréia, achava impossível um sucesso de público. Com seu processo de ações simultâneas, em tempos diferentes — a peça devia ser hermética para o es­pectador médio. E, no entanto, a bilheteria de Vestido de noi­va foi de estarrecer.
Realmente, a multiplicidade de planos estonteava a platéia. Raros conseguiam dar uma ordem ao caos. E, apesar disso, a tragédia fascinava. Lembro-me de senhoras que saíam trêmulas de beleza. E por quê? Em primeiro lugar a pergunta: — o que é Vestido de noivai Um delírio põe a heroína num prostíbulo. Logo se percebe que ela estava ferida pela nostalgia da prosti­tuta. Alaíde procura madame Clessy, a meretriz antiga e feneci­da. E assim o mito da prostituta se irradiava para a platéia e ca­da espectadora ficava tensa de sonho.

Um comentário:

Messias disse...

ahhh que manero seu blog aqui! Vc posta a obra toda, hummm li esse post mas agora só me falta ler os 57 anteriores! rss