Por vício de velho, vivo eu a fazer comparações entre a imprensa antiga e a nova. Sou do tempo em que o diretor do jornal era tudo e o resto paisagem. Bem me lembro do meu pai, na Manhã e na Crítica. Quando ele estava presente, o riso era escasso e os redatores cochichavam os palavrões.
Ninguém ousaria uma gargalhada plena, livre, deslavada. E meu pai era tratado de “dr. Mário” as 24 horas do dia. Quando um redator o chamava pelo nome, eu me sentia duramente ultrajado. Daí o meu horror a Danton Jobim. Danton era, na época, um rapazola de vinte, vinte e poucos anos. Chamava meu pai de “Mário”, de “você”. E essa intimidade soava para mim como uma desfeita. (Só depois é que me tornei seu amigo fraterno.)
Já o José Jobim, atual embaixador, dizia: — “Dr. Mário”. E assim a maioria dos funcionários. Hoje, não. Hoje, não há mais doutores na direção dos jornais. Minto: — há o Britto. Certa vez, estava eu no terceiro andar do Jornal do Brasil, quando ouvi o Mário Faustino falar em “dr. Britto”. E como o simples som me pareceu antigo, obsoleto, espectral.
Tive a curiosa sensação de que o “dr.” Britto era um contemporâneo de Evaristo da Veiga, Zé do Pato e Quintino Bocaiúva. Imaginei-me a espanar, na sua figura, o pó de velhas gerações. Mas eis o que eu queria dizer: — o antigo diretor era como as imagens santas que os barcos levavam esculpidas na proa. Diante dele, até as procelas se prostravam para lamber-lhe as botas.
Ao passo que, em nossos dias, todos mandam num jornal, inclusive o diretor. A figura deste perdeu o halo intenso; vaga por entre as mesas e cadeiras como um qualquer. Mas citei o dr. Britto e volto a ele. Certo dia, um anunciante forte dirigiu-se ao Jornal do Brasil. Chegou e foi recebido na diretoria, se não me engano, no oitavo andar, com larga e cálida efusão.
Sim, envolveram-no em rapapés, os mais encomiásticos. Ofereceram-lhe água gelada, cafezinho, o diabo. E, então, o homem tirou do bolso um recorte. Era um artigo anticomunista, publicado não sei onde, nem importa. Lá se dizia que os poetas russos eram laçados, no meio da rua, pela carrocinha de cachorro.
E o anunciante tivera a idéia de republicar aquilo nas colunas do Jornal do Brasil. A reação do dr. Britto foi esplêndida. Desmanchou-se: — “Pois não, pois não, claro”. O outro, radiante, achou que escolhera o jornal certo. Nenhum outro mais apropriado para apresentar, em forte e crespo relevo, uma matéria anti-soviética. O visitante levantou-se; tinha que sair, pois a sua senhora o esperava (disse senhôra, com acento circunflexo). O dr. Britto o acompanhou ao elevador.
O anunciante desceu achando um lindo jornal, onde uma condessa entra na redação como num jardim. E ficou o dr. Britto com o recorte na mão. Agora era publicá-lo. Aqui, começa uma página de Os Matas ou uma carta que o Fradique teria assinado, sem lhe tirar ou acrescentar uma vírgula.
Na velha imprensa, nada mais intranscendente do que a publicação de uma notícia, fosse ela sublime ou vil. Bastava o visto do diretor. A casa não pagava, mas havia respeito, hierarquia, subserviência. Mal remunerado, o funcionário vergava os ombros até os sapatos. Agora, tudo mudou.
E o dr. Britto começou a se perder no labirinto de sua própria organização. O leitor, que é um simples, não pode imaginar a sombria complexidade de uma redação. O Jornal do Brasil tem uma antologia de editorialistas, uma frota de copy desks, um Departamento de Pesquisas, um Departamento Feminino, uma suntuária seção esportiva, uma indescritível seção de polícia. Só falta ter psicanalista próprio, bombeiro particular, cascata artificial (com filhote de jacaré).
O dr. Britto, para publicar a nota, precisou enfrentar essa tremenda, complexa e implacável estrutura. Eu não estava lá e só conheço de ouvido o abominável episódio. Mas eis como me contaram os fatos: — o itinerário da matéria anticomunista começou no editor geral, se não me engano o Dines; deste passou para não sei quem; e a coisa foi rolando, de escalão em escalão.
Todos os dias, o dr. Britto, ainda em casa, abria o Jornal do Brasil e lia, de fio a pavio. Nada. E mal sabia ele que a matéria caminhava, de mão em mão. Foi lida pela equipe de copy desks, essa mesma equipe que é capaz de reescrever o Proust, se por lá aparecer o Proust. Também foi repassada pelo Departamento de Pesquisas, o mesmo que descobriu alface na Hungria, o mesmo que afirmou, fremente de certeza: — Lisboa é a capital portuguesa!
Todo mundo leu a matéria e ninguém a publicou. Eis a verdade deprimente: — ninguém a publicou. Todo santo dia, o dr. Britto reclamava do Dines; o Dines reclamava do chefe de redação; e este de não sei quem e, assim, sucessivamente, até o último dos últimos. Assim os dias e as semanas iam passando, rumo à eternidade. As manhãs do dr. Britto eram amarguradas pela mesma frustração. Lia o seu jornal (e agora descobria que era falsamente seu) e não encontrava nada.
O anunciante estava furioso; a mulher do anunciante, idem; e o dr. Britto, não furioso, mas humilhadíssimo. De repente, começou a baixar nele uma humildade total; já se considerava contínuo de si mesmo. Os menos informados poderão achar uma graça cruel no episódio. Mas aí está a dessemelhança entre o velho jornal e o novo: — antigamente, o redator não pensava. Morria de fome e simplesmente não pensava. Se vendessem a hiléia amazônica, ele havia de bocejar, num tédio cesariano. Na redação moderna, todo mundo pensa; a menina estagiária pensa; o faxineiro pensa; e todo sujeito tem no bolso a sua ideologia feroz.
Dizia eu que a condessa entra na redação como num jardim. E cada um é uma flor das esquerdas; os reacionários formam uma minoria acuada e impotente. Resultado: — não saiu a nota anticomunista. Aquela estrutura suntuária rosnou para o dr. Britto e o devorou.
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