domingo, 7 de junho de 2009

Capítulo 61 - A Menina sem Estrela

Por vício de velho, vivo eu a fazer comparações entre a im­prensa antiga e a nova. Sou do tempo em que o diretor do jor­nal era tudo e o resto paisagem. Bem me lembro do meu pai, na Manhã e na Crítica. Quando ele estava presente, o riso era escasso e os redatores cochichavam os palavrões.
Ninguém ousaria uma gargalhada plena, livre, deslavada. E meu pai era tratado de “dr. Mário” as 24 horas do dia. Quando um redator o chamava pelo nome, eu me sentia duramente ul­trajado. Daí o meu horror a Danton Jobim. Danton era, na época, um rapazola de vinte, vinte e poucos anos. Chamava meu pai de “Mário”, de “você”. E essa intimidade soava para mim como uma desfeita. (Só depois é que me tornei seu amigo fra­terno.)
Já o José Jobim, atual embaixador, dizia: — “Dr. Mário”. E assim a maioria dos funcionários. Hoje, não. Hoje, não há mais doutores na direção dos jornais. Minto: — há o Britto. Certa vez, estava eu no terceiro andar do Jornal do Brasil, quando ouvi o Mário Faustino falar em “dr. Britto”. E como o simples som me pareceu antigo, obsoleto, espectral.
Tive a curiosa sensação de que o “dr.” Britto era um con­temporâneo de Evaristo da Veiga, Zé do Pato e Quintino Bo­caiúva. Imaginei-me a espanar, na sua figura, o pó de velhas ge­rações. Mas eis o que eu queria dizer: — o antigo diretor era como as imagens santas que os barcos levavam esculpidas na proa. Diante dele, até as procelas se prostravam para lamber-lhe as botas.
Ao passo que, em nossos dias, todos mandam num jornal, inclusive o diretor. A figura deste perdeu o halo intenso; vaga por entre as mesas e cadeiras como um qualquer. Mas citei o dr. Britto e volto a ele. Certo dia, um anunciante forte dirigiu-se ao Jornal do Brasil. Chegou e foi recebido na diretoria, se não me engano, no oitavo andar, com larga e cálida efusão.
Sim, envolveram-no em rapapés, os mais encomiásticos. Ofe­receram-lhe água gelada, cafezinho, o diabo. E, então, o homem tirou do bolso um recorte. Era um artigo anticomunista, publi­cado não sei onde, nem importa. Lá se dizia que os poetas russos eram laçados, no meio da rua, pela carrocinha de cachorro.
E o anunciante tivera a idéia de republicar aquilo nas colu­nas do Jornal do Brasil. A reação do dr. Britto foi esplêndida. Desmanchou-se: — “Pois não, pois não, claro”. O outro, radian­te, achou que escolhera o jornal certo. Nenhum outro mais apro­priado para apresentar, em forte e crespo relevo, uma matéria anti-soviética. O visitante levantou-se; tinha que sair, pois a sua senhora o esperava (disse senhôra, com acento circunflexo). O dr. Britto o acompanhou ao elevador.
O anunciante desceu achando um lindo jornal, onde uma condessa entra na redação como num jardim. E ficou o dr. Britto com o recorte na mão. Agora era publicá-lo. Aqui, começa uma página de Os Matas ou uma carta que o Fradique teria assina­do, sem lhe tirar ou acrescentar uma vírgula.
Na velha imprensa, nada mais intranscendente do que a pu­blicação de uma notícia, fosse ela sublime ou vil. Bastava o vis­to do diretor. A casa não pagava, mas havia respeito, hierarquia, subserviência. Mal remunerado, o funcionário vergava os om­bros até os sapatos. Agora, tudo mudou.
E o dr. Britto começou a se perder no labirinto de sua pró­pria organização. O leitor, que é um simples, não pode imagi­nar a sombria complexidade de uma redação. O Jornal do Bra­sil tem uma antologia de editorialistas, uma frota de copy desks, um Departamento de Pesquisas, um Departamento Feminino, uma suntuária seção esportiva, uma indescritível seção de polí­cia. Só falta ter psicanalista próprio, bombeiro particular, cas­cata artificial (com filhote de jacaré).
O dr. Britto, para publicar a nota, precisou enfrentar essa tre­menda, complexa e implacável estrutura. Eu não estava lá e só conheço de ouvido o abominável episódio. Mas eis como me con­taram os fatos: — o itinerário da matéria anticomunista começou no editor geral, se não me engano o Dines; deste passou para não sei quem; e a coisa foi rolando, de escalão em escalão.
Todos os dias, o dr. Britto, ainda em casa, abria o Jornal do Brasil e lia, de fio a pavio. Nada. E mal sabia ele que a maté­ria caminhava, de mão em mão. Foi lida pela equipe de copy desks, essa mesma equipe que é capaz de reescrever o Proust, se por lá aparecer o Proust. Também foi repassada pelo Depar­tamento de Pesquisas, o mesmo que descobriu alface na Hun­gria, o mesmo que afirmou, fremente de certeza: — Lisboa é a capital portuguesa!
Todo mundo leu a matéria e ninguém a publicou. Eis a ver­dade deprimente: — ninguém a publicou. Todo santo dia, o dr. Britto reclamava do Dines; o Dines reclamava do chefe de redação; e este de não sei quem e, assim, sucessivamente, até o último dos últimos. Assim os dias e as semanas iam passando, rumo à eternidade. As manhãs do dr. Britto eram amarguradas pela mesma frustração. Lia o seu jornal (e agora descobria que era falsamente seu) e não encontrava nada.
O anunciante estava furioso; a mulher do anunciante, idem; e o dr. Britto, não furioso, mas humilhadíssimo. De repente, co­meçou a baixar nele uma humildade total; já se considerava con­tínuo de si mesmo. Os menos informados poderão achar uma graça cruel no episódio. Mas aí está a dessemelhança entre o velho jornal e o novo: — antigamente, o redator não pensava. Morria de fome e simplesmente não pensava. Se vendessem a hiléia amazônica, ele havia de bocejar, num tédio cesariano. Na redação moderna, todo mundo pensa; a menina estagiária pen­sa; o faxineiro pensa; e todo sujeito tem no bolso a sua ideolo­gia feroz.
Dizia eu que a condessa entra na redação como num jar­dim. E cada um é uma flor das esquerdas; os reacionários for­mam uma minoria acuada e impotente. Resultado: — não saiu a nota anticomunista. Aquela estrutura suntuária rosnou para o dr. Britto e o devorou.

Nenhum comentário: