Outro dia, passo por um guardador de automóveis. Ao me reconhecer, ele se pôs a berrar: — “Óbvio ululante! Óbvio ululante!”. Volto-me e faço um aceno amigo. E, então, ele pergunta, numa luminosa humildade: — “Está certa a pronúncia?”. Fiz que sim com a cabeça. Assim nos separamos: vim para a redação, enquanto o guardador, iluminado, ia passar estopa num pára-lama.
Contei o episódio para completar: — ali estava um admirador anônimo e jucundo. Quando um deles se atravessa em meu caminho, me sinto enriquecido, denso; e é como se uma luz súbita pousasse na minha vida. Essas admirações de rua, de esquina, de boteco dão ao artista uma sensação de plenitude. Já os admiradores literários causam um desgaste homicida.
Volto a 1944. Depois das primeiras representações de Vestido de noiva, fui um narciso extremamente maligno, que se dispôs a destruir todas as outras imagens. Para mim, só eu devia existir. Nada de Joracy Camargo, Magalhães Júnior, Fornari e outros, e outros. Pouco me interessava a qualidade dramática ou poética dos competidores; o que me ofendia, como uma desfeita, direta e crudelíssima, era o sucesso alheio.
Antes de Vestido de noiva, Magalhães Júnior fizera Carlota Joaquina, peça histórica, quase uma ópera. Vi nele ressentimento, abominei o autor bem-sucedido. Paulo Magalhães era outro que fazia sucesso. Só me referia a ele assim: — “cretino”, a “besta”, o “cavalo” do Paulo Magalhães.
Ao mesmo tempo, todos os suplementos literários falavam de mim. Álvaro Lins abriu meia página do Correio da Manhã sobre Vestido de noiva. Dizia: — “Nelson Rodrigues ocupa no teatro brasileiro uma posição excepcional e revolucionária como a de Carlos Drummond na poesia”. Só esse paralelo era de causar vertigem. Eu e Carlos Drummond, lado a lado. Pompeu de Sousa lançou toda uma série de artigos. Em São Paulo, outros escreviam e com a mesma exaltação.
“Sou um gênio”, eis o que me dizia, “sou um gênio”. Lembro-me de que Carlos Drummond foi ver a segunda representação de Vestido de noiva. No final, estava eu à sua espera. Atropelei-o no meio da escada. “Desiludido?”, foi a minha pergunta. E aquele magro, aquele áspero, teve uma luz na sua aridez; respondeu: — “Formidável!”.
Nas minhas atuais crônicas de futebol, digo que certos jogadores são carregados na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado. Essa metáfora também me cabia nos tempos de Vestido de noiva. Por vezes, me sentia carregado numa prodigiosa bandeja. Todas as noites, antes do sono, baixava em mim uma obsessão linda: — “Hollywood vai me descobrir”.
Eu, na Broadway, eu, em Tóquio. Lembro-me de que, certa vez, fui, à tarde, ao Teatro Municipal, fazer não sei o quê. Parei um momento no palco imenso e vazio. E, de repente, uma tensão dionisíaca inundou o teatro deserto. No alto, a cúpula estava ressoante das palmas espectrais. O lustre apagado ardia em cintilações frenéticas. Ouvi de novo a voz de José César Borba chamando: — “O autor!”. Saí do teatro, febril de glória.
Mas não conseguia fazer a minha segunda peça. Comecei e recomecei umas cinqüenta vezes. E não escrevia sem pensar nos meus admiradores. Eis o que me perguntava: — “O que dirá o Álvaro Lins? E o Manuel Bandeira? E o Pompeu? O César Borba? E o Drummond?”. Um belo dia, descobri que todos os citados, e mais outros, e outros, seriam meus co-autores fatais. Eu era um território ocupado pelos bandeiras, álvaros, pompeus, borbas, prudentes. Cada admiração me comprometia ao infinito.
O heróico da minha descoberta é que o elogio não perdera, para mim, a sua graça plena. Ver o meu nome no jornal ainda me fascinava. Mas e eu? E eu? Eis a verdade que, em tempo, percebi: — o elogio era uma falsa e perversa delícia. Ainda agora, vejo a figura ameaçada de Guimarães Rosa. Não sei se ele fará algo que se pareça ao Grande sertão. Das nossas figuras literárias, é, que eu saiba, a mais acuada pela horda bestial dos admiradores. Quando ouço alguém dizer do Rosa que é o “nosso maior prosador”, tenho vontade de pedir, pelo amor de Deus: — “Não o matem antes do tempo”.
O nosso romancista está em crise de solidão, Falta-lhe solidão. Tem de sair, de picareta, ceifando, demolindo as admirações que hão de corrompê-lo fatalmente. Foi isso, pouco mais ou menos, que fiz, depois da apoteose de Vestido de noiva. O furioso Álbum de família foi, sim, uma tentativa de solidão, de ruptura, de aniquilamento.
Concebi uma peça em que todo mundo era incestuoso. Vejam bem: — não um único incesto, mas cinco, seis, sete. Essa “abundância numérica”, como a chamou Álvaro Lins, teria que levantar contra mim a fúria crítica. Eu queria e não queria agredir o bom gosto literário. Queria, para sobreviver como poeta dramático; e não queria, porque ainda estava ferido pela nostalgia de Vestido de noiva.
Uma meia dúzia aceitou Álbum de família. A maioria gritou. Uns acharam “incesto demais”, como se pudesse haver “incesto de menos”. De mais a mais, era uma tragédia “sem linguagem nobre”. Em suma: — a quase unanimidade achou a peça de uma obsessiva, monótona obscenidade. Augusto Frederico Schmidt falou na minha “insistência na torpeza”. O dr. Alceu deu toda razão à polícia, que interditaria a peça; meu texto parecia-lhe da “pior subliteratura”.
Assim comecei a destruir os meus admiradores. Foi uma carnificina literária. Mas não me degradei, eis a verdade, não me degradei.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário