segunda-feira, 8 de junho de 2009

Capítulo 62 - A Menina sem Estrela

Outro dia, passo por um guardador de automóveis. Ao me reconhecer, ele se pôs a berrar: — “Óbvio ululante! Óbvio ulu­lante!”. Volto-me e faço um aceno amigo. E, então, ele pergun­ta, numa luminosa humildade: — “Está certa a pronúncia?”. Fiz que sim com a cabeça. Assim nos separamos: vim para a redação, enquanto o guardador, iluminado, ia passar estopa num pára-lama.
Contei o episódio para completar: — ali estava um admira­dor anônimo e jucundo. Quando um deles se atravessa em meu caminho, me sinto enriquecido, denso; e é como se uma luz súbita pousasse na minha vida. Essas admirações de rua, de es­quina, de boteco dão ao artista uma sensação de plenitude. Já os admiradores literários causam um desgaste homicida.
Volto a 1944. Depois das primeiras representações de Ves­tido de noiva, fui um narciso extremamente maligno, que se dispôs a destruir todas as outras imagens. Para mim, só eu de­via existir. Nada de Joracy Camargo, Magalhães Júnior, Fornari e outros, e outros. Pouco me interessava a qualidade dramática ou poética dos competidores; o que me ofendia, como uma des­feita, direta e crudelíssima, era o sucesso alheio.
Antes de Vestido de noiva, Magalhães Júnior fizera Carlota Joaquina, peça histórica, quase uma ópera. Vi nele ressenti­mento, abominei o autor bem-sucedido. Paulo Magalhães era outro que fazia sucesso. Só me referia a ele assim: — “cretino”, a “besta”, o “cavalo” do Paulo Magalhães.
Ao mesmo tempo, todos os suplementos literários falavam de mim. Álvaro Lins abriu meia página do Correio da Manhã sobre Vestido de noiva. Dizia: — “Nelson Rodrigues ocupa no teatro brasileiro uma posição excepcional e revolucionária como a de Carlos Drummond na poesia”. Só esse paralelo era de causar vertigem. Eu e Carlos Drummond, lado a lado. Pompeu de Sousa lançou toda uma série de artigos. Em São Paulo, ou­tros escreviam e com a mesma exaltação.
“Sou um gênio”, eis o que me dizia, “sou um gênio”. Lembro-me de que Carlos Drummond foi ver a segunda repre­sentação de Vestido de noiva. No final, estava eu à sua espera. Atropelei-o no meio da escada. “Desiludido?”, foi a minha per­gunta. E aquele magro, aquele áspero, teve uma luz na sua ari­dez; respondeu: — “Formidável!”.
Nas minhas atuais crônicas de futebol, digo que certos jo­gadores são carregados na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado. Essa metáfora também me cabia nos tempos de Vestido de noiva. Por vezes, me sentia carregado numa pro­digiosa bandeja. Todas as noites, antes do sono, baixava em mim uma obsessão linda: — “Hollywood vai me descobrir”.
Eu, na Broadway, eu, em Tóquio. Lembro-me de que, cer­ta vez, fui, à tarde, ao Teatro Municipal, fazer não sei o quê. Parei um momento no palco imenso e vazio. E, de repente, uma tensão dionisíaca inundou o teatro deserto. No alto, a cúpula estava ressoante das palmas espectrais. O lustre apagado ardia em cintilações frenéticas. Ouvi de novo a voz de José César Bor­ba chamando: — “O autor!”. Saí do teatro, febril de glória.
Mas não conseguia fazer a minha segunda peça. Comecei e recomecei umas cinqüenta vezes. E não escrevia sem pensar nos meus admiradores. Eis o que me perguntava: — “O que di­rá o Álvaro Lins? E o Manuel Bandeira? E o Pompeu? O César Borba? E o Drummond?”. Um belo dia, descobri que todos os citados, e mais outros, e outros, seriam meus co-autores fatais. Eu era um território ocupado pelos bandeiras, álvaros, pompeus, borbas, prudentes. Cada admiração me comprometia ao infinito.
O heróico da minha descoberta é que o elogio não perde­ra, para mim, a sua graça plena. Ver o meu nome no jornal ain­da me fascinava. Mas e eu? E eu? Eis a verdade que, em tempo, percebi: — o elogio era uma falsa e perversa delícia. Ainda ago­ra, vejo a figura ameaçada de Guimarães Rosa. Não sei se ele fará algo que se pareça ao Grande sertão. Das nossas figuras li­terárias, é, que eu saiba, a mais acuada pela horda bestial dos admiradores. Quando ouço alguém dizer do Rosa que é o “nosso maior prosador”, tenho vontade de pedir, pelo amor de Deus: — “Não o matem antes do tempo”.
O nosso romancista está em crise de solidão, Falta-lhe soli­dão. Tem de sair, de picareta, ceifando, demolindo as admira­ções que hão de corrompê-lo fatalmente. Foi isso, pouco mais ou menos, que fiz, depois da apoteose de Vestido de noiva. O furioso Álbum de família foi, sim, uma tentativa de solidão, de ruptura, de aniquilamento.
Concebi uma peça em que todo mundo era incestuoso. Ve­jam bem: — não um único incesto, mas cinco, seis, sete. Essa “abundância numérica”, como a chamou Álvaro Lins, teria que levantar contra mim a fúria crítica. Eu queria e não queria agre­dir o bom gosto literário. Queria, para sobreviver como poeta dramático; e não queria, porque ainda estava ferido pela nos­talgia de Vestido de noiva.
Uma meia dúzia aceitou Álbum de família. A maioria gritou. Uns acharam “incesto demais”, como se pudesse haver “incesto de menos”. De mais a mais, era uma tragédia “sem linguagem nobre”. Em suma: — a quase unanimidade achou a peça de uma obsessiva, monótona obscenidade. Augusto Frederico Schmidt falou na minha “insistência na torpeza”. O dr. Alceu deu toda razão à polícia, que interditaria a peça; meu texto parecia-lhe da “pior subliteratura”.
Assim comecei a destruir os meus admiradores. Foi uma carnificina literária. Mas não me degradei, eis a verdade, não me degradei.

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