Sim, a partir de Álbum de família, a minha vida teatral tem sido uma batalha entre um autor e seus admiradores. É uma fúria recíproca e total. Os admiradores querem me destruir, com a sua incompreensão apoteótica e homicida; e eu reagindo, como um possesso. Claro que, por vezes, me venha a funda e inconsolável nostalgia do sucesso.
Parece que minha resistência tem sido bem-sucedida. Olho o meu chão literário; está juncado de admirações abatidas. Por exemplo: — como mudou o dr. Alceu Amoroso Lima. Saudou Vestido de noiva como “a obra-prima do moderno teatro brasileiro”; e entende que Álbum de família é da pior subliteratura. Álvaro Lins ousara um paralelo entre mim e o Carlos Drummond. E quando viu as minhas peças interditadas, declarou que eu saíra da literatura; era agora “um caso de polícia”.
Se quisesse, faria com os nomes dos meus ex-admiradores uma lista telefônica. E eu não movia uma palha para reconquistá-los. Pelo contrário: — antes, delirara com o sucesso; e, agora, agia e reagia como se preferisse, inversamente, o fracasso. Álvaro Lins lançou, contra Álbum de família, um rodapé escandaloso: — “Tragédia ou farsa?”.
A pergunta era realmente uma afirmação: — farsa. Dois ou três dias depois, apanhamos o mesmo bonde, 33, Lapa — Praça da Bandeira. O crítico sentou-se no banco da frente e foi, comigo, de uma cordialidade risonha e exemplar. Disse, entre outras coisas, o seguinte: — esperava que o tal rodapé não modificasse, em nada, as nossas relações; ele continuava o mesmo amigo etc. etc. Respondi, com a mais cínica efusão: — “claro, claro, evidente”.
Ele ia para a redação do Correio, na Gomes Freire. E, até lá, a ternura foi de uma reciprocidade deslavada. Não sei o que poderia ele pensar de mim naquele momento. É possível que tivesse um certo remorso e havia, na sua efusão, algo de apiedado, sim, algo de compassivo. Mas não podia nem imaginar que eu era, ali, um monstro de perfídia e ressentimento.
Eis o que me passava pela cabeça: — “Cretino. Oswaldo Teixeira da crítica. Não entende nada de teatro. Dengoso do estilo”. E o pior é que ia sair na página de livros de O Cruzeiro um artigo redigido por mim, e assinado por outro, arrasando o crítico. Rimos um para o outro, até a Gomes Freire. Antes de saltar, Álvaro Lins ainda perguntou: — “Continuamos amigos?”. Respondi lívido com descaro: — “Sempre”.
Durante anos, porém, o seu rodapé foi, em mim, um ressentimento literário altamente vingativo. Eis a minha duplicidade: — de um lado, a fome de solidão; de outro, uma vaidade militante e, não raro, vil. Os jornais começaram a publicar artigos contra Álvaro Lins. Era eu que os escrevia e outros que os assinavam. Muitos anos mais tarde, ele foi, primeiro, chefe da Casa Civil de Juscelino e, depois, nosso embaixador em Portugal. Quando os dois brigaram, ou, melhor dizendo, quando o antigo crítico brigou com o presidente, exultei.
Álvaro escreveu, se bem me lembro, vários artigos, nos quais explicava o incidente e justificava o rompimento. E eu, por onde andava, dizia o diabo de sua atitude: — “Não tem direito de romper. Romper por quê? Não existia politicamente. Juscelino o inventou. E, antes de Juscelino, o Correio da Manhã foi seu Frankenstein. Diz que apoiou, apoiou. Que apoio tinha para dar? Seu apoio era o Correio”. Assim me encarniçava nas redações, nos cafés.
(Paro aqui. Eis a verdade: — estou exausto de tal assunto e uma náusea me interrompe. Eis o que me pergunto: — se o simples fato de estar aqui, repetindo o que então dizia, se não será o último vômito de um ressentimento mal curado? Seja como for, quero dizer que a minha opinião sobre a briga de Álvaro com Juscelino não foi uma posição ética ou política. Era ainda o rodapé a origem da minha ira.)
O número de ex-admiradores aumentava. E, pouco a pouco, ia fundando a minha solidão. Fora proibida a representação de Álbum de família. Em seguida, houve a interdição de Anjo negro. De peça para peça, me tornava, e cada vez mais, um caso de polícia. Escândalo nos jornais. E, um dia, encontro-me com Carlos Lacerda. Pediu o meu novo texto: — “Você me dá, que eu escrevo contra a censura”. Ótimo. No dia seguinte, fui levar-lhe uma cópia.
Carlos Lacerda era um admirador de Vestido de noiva e, sobretudo, de sua linguagem. Fazendo uma conferência, no antigo Teatro Phoenix, chamou-me de “o maior autor dramático brasileiro de todos os tempos”. Eu estava certo, não sei por que, de que ele ia se apaixonar pelo meu Anjo negro. Três dias depois, fui buscar sua opinião. Ele me devolveu a cópia sem uma palavra. Exatamente: — sem uma palavra. Não me deu nem bom-dia. Ainda fiquei, um momento, rondando sua mesa. Não me disse nada e repito: nada. Estendi-lhe a mão: — “Até logo”. Respondeu: — “Até logo”.
Uma meia dúzia gostou de Anjo negro: — Pompeu de Sousa, Prudente, Manuel Bandeira, José Lins de Rego, Rachel de Queiroz, Rubem Navarra. Tristão de Athayde (sempre o dr. Alceu!) achou que o autor se divertia com a abjeção. Seja como for, ia me tornando cada vez mais solitário. Mas ainda não estava com o coração bastante amadurecido para a solidão.
Desde aquela época, cada um, na vida literária, tinha que ser um engajado. Ninguém ia à rua sem a sua pose ideológica. Lembro-me de Isaac Paschoal me perguntando, depois de um discurso de Prestes: — “E você? Qual é a sua contribuição?”. Baixei a vista, rubro de vergonha. E, como ainda não contribuíra, senti-me um fracassado nato e hereditário.
Daí por que não posso ver, hoje, o Guimarães Rosa, sem uma sensação de deslumbramento. Durante anos, pratiquei a solidão com certo pânico e certa vergonha. E eis que vem o autor de Sagarana e ergue a sua torre de marfim, assim como um cigano põe a sua barraca. Nada existe: — só a sua obra. Estão brigando no Vietnã? Pois o nosso Rosa escreve. Há a guerra nuclear, o fim do mundo? Guimarães Rosa funda outro idioma. A torre de marfim fez dele o maior artista brasileiro do século.
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