terça-feira, 9 de junho de 2009

Capítulo 63 - A Menina sem Estrela

Sim, a partir de Álbum de família, a minha vida teatral tem sido uma batalha entre um autor e seus admiradores. É uma fú­ria recíproca e total. Os admiradores querem me destruir, com a sua incompreensão apoteótica e homicida; e eu reagindo, co­mo um possesso. Claro que, por vezes, me venha a funda e inconsolável nostalgia do sucesso.
Parece que minha resistência tem sido bem-sucedida. Olho o meu chão literário; está juncado de admirações abatidas. Por exemplo: — como mudou o dr. Alceu Amoroso Lima. Saudou Vestido de noiva como “a obra-prima do moderno teatro bra­sileiro”; e entende que Álbum de família é da pior subliteratu­ra. Álvaro Lins ousara um paralelo entre mim e o Carlos Drummond. E quando viu as minhas peças interditadas, declarou que eu saíra da literatura; era agora “um caso de polícia”.
Se quisesse, faria com os nomes dos meus ex-admiradores uma lista telefônica. E eu não movia uma palha para reconquistá-los. Pelo contrário: — antes, delirara com o sucesso; e, agora, agia e reagia como se preferisse, inversamente, o fracasso. Ál­varo Lins lançou, contra Álbum de família, um rodapé escan­daloso: — “Tragédia ou farsa?”.
A pergunta era realmente uma afirmação: — farsa. Dois ou três dias depois, apanhamos o mesmo bonde, 33, Lapa — Praça da Bandeira. O crítico sentou-se no banco da frente e foi, co­migo, de uma cordialidade risonha e exemplar. Disse, entre ou­tras coisas, o seguinte: — esperava que o tal rodapé não modi­ficasse, em nada, as nossas relações; ele continuava o mesmo amigo etc. etc. Respondi, com a mais cínica efusão: — “claro, claro, evidente”.
Ele ia para a redação do Correio, na Gomes Freire. E, até lá, a ternura foi de uma reciprocidade deslavada. Não sei o que poderia ele pensar de mim naquele momento. É possível que tivesse um certo remorso e havia, na sua efusão, algo de apiedado, sim, algo de compassivo. Mas não podia nem imaginar que eu era, ali, um monstro de perfídia e ressentimento.
Eis o que me passava pela cabeça: — “Cretino. Oswaldo Teixeira da crítica. Não entende nada de teatro. Dengoso do es­tilo”. E o pior é que ia sair na página de livros de O Cruzeiro um artigo redigido por mim, e assinado por outro, arrasando o crítico. Rimos um para o outro, até a Gomes Freire. Antes de saltar, Álvaro Lins ainda perguntou: — “Continuamos amigos?”. Respondi lívido com descaro: — “Sempre”.
Durante anos, porém, o seu rodapé foi, em mim, um res­sentimento literário altamente vingativo. Eis a minha duplici­dade: — de um lado, a fome de solidão; de outro, uma vaidade militante e, não raro, vil. Os jornais começaram a publicar artigos contra Álvaro Lins. Era eu que os escrevia e outros que os assinavam. Muitos anos mais tarde, ele foi, primeiro, chefe da Casa Civil de Juscelino e, depois, nosso embaixador em Portu­gal. Quando os dois brigaram, ou, melhor dizendo, quando o antigo crítico brigou com o presidente, exultei.
Álvaro escreveu, se bem me lembro, vários artigos, nos quais explicava o incidente e justificava o rompimento. E eu, por onde andava, dizia o diabo de sua atitude: — “Não tem di­reito de romper. Romper por quê? Não existia politicamente. Juscelino o inventou. E, antes de Juscelino, o Correio da Ma­nhã foi seu Frankenstein. Diz que apoiou, apoiou. Que apoio tinha para dar? Seu apoio era o Correio”. Assim me encarniça­va nas redações, nos cafés.
(Paro aqui. Eis a verdade: — estou exausto de tal assunto e uma náusea me interrompe. Eis o que me pergunto: — se o simples fato de estar aqui, repetindo o que então dizia, se não será o último vômito de um ressentimento mal curado? Seja co­mo for, quero dizer que a minha opinião sobre a briga de Álva­ro com Juscelino não foi uma posição ética ou política. Era ain­da o rodapé a origem da minha ira.)
O número de ex-admiradores aumentava. E, pouco a pou­co, ia fundando a minha solidão. Fora proibida a representação de Álbum de família. Em seguida, houve a interdição de Anjo negro. De peça para peça, me tornava, e cada vez mais, um ca­so de polícia. Escândalo nos jornais. E, um dia, encontro-me com Carlos Lacerda. Pediu o meu novo texto: — “Você me dá, que eu escrevo contra a censura”. Ótimo. No dia seguinte, fui levar-lhe uma cópia.
Carlos Lacerda era um admirador de Vestido de noiva e, sobretudo, de sua linguagem. Fazendo uma conferência, no an­tigo Teatro Phoenix, chamou-me de “o maior autor dramático brasileiro de todos os tempos”. Eu estava certo, não sei por que, de que ele ia se apaixonar pelo meu Anjo negro. Três dias de­pois, fui buscar sua opinião. Ele me devolveu a cópia sem uma palavra. Exatamente: — sem uma palavra. Não me deu nem bom-dia. Ainda fiquei, um momento, rondando sua mesa. Não me disse nada e repito: nada. Estendi-lhe a mão: — “Até logo”. Res­pondeu: — “Até logo”.
Uma meia dúzia gostou de Anjo negro: — Pompeu de Sou­sa, Prudente, Manuel Bandeira, José Lins de Rego, Rachel de Queiroz, Rubem Navarra. Tristão de Athayde (sempre o dr. Al­ceu!) achou que o autor se divertia com a abjeção. Seja como for, ia me tornando cada vez mais solitário. Mas ainda não estava com o coração bastante amadurecido para a solidão.
Desde aquela época, cada um, na vida literária, tinha que ser um engajado. Ninguém ia à rua sem a sua pose ideológica. Lembro-me de Isaac Paschoal me perguntando, depois de um discurso de Prestes: — “E você? Qual é a sua contribuição?”. Baixei a vista, rubro de vergonha. E, como ainda não contri­buíra, senti-me um fracassado nato e hereditário.
Daí por que não posso ver, hoje, o Guimarães Rosa, sem uma sensação de deslumbramento. Durante anos, pratiquei a solidão com certo pânico e certa vergonha. E eis que vem o au­tor de Sagarana e ergue a sua torre de marfim, assim como um cigano põe a sua barraca. Nada existe: — só a sua obra. Estão brigando no Vietnã? Pois o nosso Rosa escreve. Há a guerra nu­clear, o fim do mundo? Guimarães Rosa funda outro idioma. A torre de marfim fez dele o maior artista brasileiro do século.

Nenhum comentário: