quarta-feira, 10 de junho de 2009

Capítulo 64 - A Menina sem Estrela

Posso dizer que, durante três ou quatro anos, vivi às ex­pensas de uma fabulosa admiração: — Manuel Bandeira. Sem­pre que saía uma peça minha, eu mandava alguém entrevistar o poeta. E, no dia seguinte, saía o elogio infalível na primeira página de O Globo. Quando publiquei Álbum de família, não falhou o velho Bandeira. Disse, entre outras coisas, o seguinte: — que eu era, de longe, “o maior poeta dramático que já apa­receu em nossa literatura”.
Devia dar-me por satisfeito. Nós sabemos como é a vida li­terária. Os sujeitos se chamam uns aos outros de “cretinos”, “bestas”, “débeis mentais”. Há pouco tempo, dizia-me certo sociólogo de Gilberto Freyre: — “Um analfabeto”. Somos, real­mente, uns impotentes da admiração. Cochichamos o elogio e berramos o insulto.
Dirá alguém que estou exagerando. Paciência. Mas, se é as­sim, Manuel Bandeira saiu-nos uma cálida e generosa exceção. Admira com abundância, admira com amor. Num belo soneto, Vinicius chamou-o de “áspero irmão”. Pode ser bonito e con­fesso — o “áspero irmão” soa bonito. Mas a inveracidade salta à vista. Pelo contrário: — ninguém foi, comigo, tão doce e tão irmão.
Chamado de “maior poeta”, devia eu deixar em sossego uma admiração já tão solicitada. Mas estava só, cada vez mais só. Desejava e, ao mesmo tempo, temia a solidão (ainda não le­ra O inimigo do povo. O que aprendi, lendo o gigantesco dra­ma, é que o artista precisa de solidão para não apodrecer).
Disse que, em todas as minhas estréias, mandava buscar a opinião do poeta. Até que escrevi Senhora dos afogados. Liguei para o Bandeira. Ele quis saber: — “O que é que achou o Prudente?”. Ri, feliz: — “Achou a minha melhor peça”. Fui ao apartamento do poeta levar-lhe a cópia. Três dias depois, vol­tei. Eu estava apaixonado por Senhora dos afogados. Cuidei que o velho Bandeira diria: — “Formidável”.
Abriu-me a porta, entrei e senti que não era o mesmo. Per­guntei, com um princípio de angústia: — “Leu?”. Estava contrafeito: — “Li”. Primeiro hesitou e foi dizendo: — “Desta vez, senti um certo cansaço do processo”. Comecei a sofrer. Senti, imediatamente, que “cansaço” era a palavra inapelável, exata. Falara tanto de mim, de meus textos, de minhas encenações; e o que restava era uma admiração gasta, exausta. Descemos jun­tos, no elevador. Mas ele teve pouco que acrescentar. Quando me disse adeus, na calçada, falou, novamente, em “cansaço do processo”.
Perdera a admiração que mais queria preservar. O rodapé de Álvaro Lins fora um golpe, sim; não vital, porém. Mais im­portante do que o crítico era o poeta. E eis que também o poeta me abandonava. Quando o deixei, tive uma sensação de orfandade total. Mais tarde, estreou minha peça Valsa nº 6. Manuel Bandeira assistiu, a meu convite, à primeira representação. No dia seguinte, chamam meu companheiro de Última Hora, Galba Menegale: — “Faz um favor. Entrevista Manuel Bandeira sobre Valsa nº 6”.
Galba telefonou. Pouco depois, vinha a mim, furioso: — “Imagina: — me recebeu com quatro pedras. Tratou mal”. Ater­rado, balbuciei: — “Mas vem cá. Tratou mal como? E por quê?”. Menegale contou tudo. Depois de se dizer da Última Hora, pe­dira, no tom mais delicado, mais reverente, a opinião de Ban­deira sobre a minha peça. O outro o destratara, no telefone. E eu, pasmo, não entendia que, a troco de nada, a polidez do poeta se transformasse em súbita truculência.
Certa vez, o meu amigo Vinícius de Moraes contou-me o seu maior desastre literário. Eis o fato: — ainda adolescente, entre­gara os originais do seu primeiro livro de versos a João Lyra Fi­lho. Este, que era amigo da família, levou o livro. E o Vinícius foi, dias depois, buscar a opinião. João Lyra Filho disse-lhe tudo, à queima-roupa: — “Desista. Você não dá pra isso. Não é poeta, nunca será poeta”. O poeta não disse uma palavra, nada. Apa­nhou, de volta, os originais; e saiu, dali, com vontade de morrer.
É o próprio Vinícius quem conta: — “Não dormi um segun­do. Passei a noite toda chorando”. E, por pouco, o sr .João Lyra Filho não assassinava uma das mais formidáveis vocações da poe­sia brasileira. Lembrei o episódio para voltar à Valsa nº 6. A re­cusa do velho Bandeira em opinar, simplesmente opinar, mes­mo contra, chegava a ser uma agressão. Eis o que me pergunta­va: — “Por quê?”. Disse para o Galba: “Obrigado”. E andei, de um lado para outro, desatinado. Horas depois, tomei o ônibus para casa; e me sentia tão órfão de Manuel Bandeira.
Depois disso, o poeta nunca mais conseguiu me elogiar. Quando Manchete pediu-lhe uma opinião sobre meu teatro, pin­gou escassamente esta opinião: — “Interessante”. Hoje, enten­do perfeitamente. Uma admiração não volta; nós a perdemos para sempre. Por outro lado, foi rigorosamente justa a sua exaus­tão. Um admirador precisa ter férias, fim de semana, dias san­tos, feriados. Mas o poeta vivia sob um sítio implacável. Falara mil vezes sobre mim em enquetes inumeráveis. E, um belo dia, o que era admiração virou ressentimento. “Basta de Nelson Rodrigues”, há de ter decidido o poeta’
Mas vejam os mistérios da experiência artística. Como ór­fão de Manuel Bandeira, sofri o diabo. Durante anos, minha vai­dade fora gratificada, remunerada pelo seu elogio. Quando tão alto louvor emudeceu, criou-se um espantoso silêncio. Manuel Bandeira povoava, edificava, umedecia o meu deserto. Mas agora a solidão era apenas e cruelmente a solidão. Embora mais ve­lho, mais sofrido, fui um quase assassinado como o Vinícius do João Lyra Filho.
Coincidiu que, naquela ocasião, eu estivesse brigado com Pompeu de Sousa, grande amigo literário; perdera também con­tato com o Prudente. Tive uma feroz luta comigo mesmo; e ven­ci. Hoje, estou certo de que o silêncio de Bandeira foi muito melhor para mim, e mais exaltante, do que o elogio. (Note-se que o admiro cada vez mais.) Bandeira me ensinou, como Ibsen, que o bom artista é o que está “mais só”.
Ontem, falei na torre de marfim do Guimarães Rosa. Não sei se, ao me ler (se é que me leu), ele gostou de se ver posto na sua formidável solidão. Uma coisa é a torre de marfim, e ou­tra confessá-la, proclamá-la, aos berros. Não importa. Mas quer ele o confesse, ou o desminta, a torre está encravada. Eis a ver­dade que Guimarães Rosa nos diz com seu exemplo: — o escri­tor que faz mais do que a própria literatura ou não é escritor ou é um pulha.

Nenhum comentário: