Posso dizer que, durante três ou quatro anos, vivi às expensas de uma fabulosa admiração: — Manuel Bandeira. Sempre que saía uma peça minha, eu mandava alguém entrevistar o poeta. E, no dia seguinte, saía o elogio infalível na primeira página de O Globo. Quando publiquei Álbum de família, não falhou o velho Bandeira. Disse, entre outras coisas, o seguinte: — que eu era, de longe, “o maior poeta dramático que já apareceu em nossa literatura”.
Devia dar-me por satisfeito. Nós sabemos como é a vida literária. Os sujeitos se chamam uns aos outros de “cretinos”, “bestas”, “débeis mentais”. Há pouco tempo, dizia-me certo sociólogo de Gilberto Freyre: — “Um analfabeto”. Somos, realmente, uns impotentes da admiração. Cochichamos o elogio e berramos o insulto.
Dirá alguém que estou exagerando. Paciência. Mas, se é assim, Manuel Bandeira saiu-nos uma cálida e generosa exceção. Admira com abundância, admira com amor. Num belo soneto, Vinicius chamou-o de “áspero irmão”. Pode ser bonito e confesso — o “áspero irmão” soa bonito. Mas a inveracidade salta à vista. Pelo contrário: — ninguém foi, comigo, tão doce e tão irmão.
Chamado de “maior poeta”, devia eu deixar em sossego uma admiração já tão solicitada. Mas estava só, cada vez mais só. Desejava e, ao mesmo tempo, temia a solidão (ainda não lera O inimigo do povo. O que aprendi, lendo o gigantesco drama, é que o artista precisa de solidão para não apodrecer).
Disse que, em todas as minhas estréias, mandava buscar a opinião do poeta. Até que escrevi Senhora dos afogados. Liguei para o Bandeira. Ele quis saber: — “O que é que achou o Prudente?”. Ri, feliz: — “Achou a minha melhor peça”. Fui ao apartamento do poeta levar-lhe a cópia. Três dias depois, voltei. Eu estava apaixonado por Senhora dos afogados. Cuidei que o velho Bandeira diria: — “Formidável”.
Abriu-me a porta, entrei e senti que não era o mesmo. Perguntei, com um princípio de angústia: — “Leu?”. Estava contrafeito: — “Li”. Primeiro hesitou e foi dizendo: — “Desta vez, senti um certo cansaço do processo”. Comecei a sofrer. Senti, imediatamente, que “cansaço” era a palavra inapelável, exata. Falara tanto de mim, de meus textos, de minhas encenações; e o que restava era uma admiração gasta, exausta. Descemos juntos, no elevador. Mas ele teve pouco que acrescentar. Quando me disse adeus, na calçada, falou, novamente, em “cansaço do processo”.
Perdera a admiração que mais queria preservar. O rodapé de Álvaro Lins fora um golpe, sim; não vital, porém. Mais importante do que o crítico era o poeta. E eis que também o poeta me abandonava. Quando o deixei, tive uma sensação de orfandade total. Mais tarde, estreou minha peça Valsa nº 6. Manuel Bandeira assistiu, a meu convite, à primeira representação. No dia seguinte, chamam meu companheiro de Última Hora, Galba Menegale: — “Faz um favor. Entrevista Manuel Bandeira sobre Valsa nº 6”.
Galba telefonou. Pouco depois, vinha a mim, furioso: — “Imagina: — me recebeu com quatro pedras. Tratou mal”. Aterrado, balbuciei: — “Mas vem cá. Tratou mal como? E por quê?”. Menegale contou tudo. Depois de se dizer da Última Hora, pedira, no tom mais delicado, mais reverente, a opinião de Bandeira sobre a minha peça. O outro o destratara, no telefone. E eu, pasmo, não entendia que, a troco de nada, a polidez do poeta se transformasse em súbita truculência.
Certa vez, o meu amigo Vinícius de Moraes contou-me o seu maior desastre literário. Eis o fato: — ainda adolescente, entregara os originais do seu primeiro livro de versos a João Lyra Filho. Este, que era amigo da família, levou o livro. E o Vinícius foi, dias depois, buscar a opinião. João Lyra Filho disse-lhe tudo, à queima-roupa: — “Desista. Você não dá pra isso. Não é poeta, nunca será poeta”. O poeta não disse uma palavra, nada. Apanhou, de volta, os originais; e saiu, dali, com vontade de morrer.
É o próprio Vinícius quem conta: — “Não dormi um segundo. Passei a noite toda chorando”. E, por pouco, o sr .João Lyra Filho não assassinava uma das mais formidáveis vocações da poesia brasileira. Lembrei o episódio para voltar à Valsa nº 6. A recusa do velho Bandeira em opinar, simplesmente opinar, mesmo contra, chegava a ser uma agressão. Eis o que me perguntava: — “Por quê?”. Disse para o Galba: “Obrigado”. E andei, de um lado para outro, desatinado. Horas depois, tomei o ônibus para casa; e me sentia tão órfão de Manuel Bandeira.
Depois disso, o poeta nunca mais conseguiu me elogiar. Quando Manchete pediu-lhe uma opinião sobre meu teatro, pingou escassamente esta opinião: — “Interessante”. Hoje, entendo perfeitamente. Uma admiração não volta; nós a perdemos para sempre. Por outro lado, foi rigorosamente justa a sua exaustão. Um admirador precisa ter férias, fim de semana, dias santos, feriados. Mas o poeta vivia sob um sítio implacável. Falara mil vezes sobre mim em enquetes inumeráveis. E, um belo dia, o que era admiração virou ressentimento. “Basta de Nelson Rodrigues”, há de ter decidido o poeta’
Mas vejam os mistérios da experiência artística. Como órfão de Manuel Bandeira, sofri o diabo. Durante anos, minha vaidade fora gratificada, remunerada pelo seu elogio. Quando tão alto louvor emudeceu, criou-se um espantoso silêncio. Manuel Bandeira povoava, edificava, umedecia o meu deserto. Mas agora a solidão era apenas e cruelmente a solidão. Embora mais velho, mais sofrido, fui um quase assassinado como o Vinícius do João Lyra Filho.
Coincidiu que, naquela ocasião, eu estivesse brigado com Pompeu de Sousa, grande amigo literário; perdera também contato com o Prudente. Tive uma feroz luta comigo mesmo; e venci. Hoje, estou certo de que o silêncio de Bandeira foi muito melhor para mim, e mais exaltante, do que o elogio. (Note-se que o admiro cada vez mais.) Bandeira me ensinou, como Ibsen, que o bom artista é o que está “mais só”.
Ontem, falei na torre de marfim do Guimarães Rosa. Não sei se, ao me ler (se é que me leu), ele gostou de se ver posto na sua formidável solidão. Uma coisa é a torre de marfim, e outra confessá-la, proclamá-la, aos berros. Não importa. Mas quer ele o confesse, ou o desminta, a torre está encravada. Eis a verdade que Guimarães Rosa nos diz com seu exemplo: — o escritor que faz mais do que a própria literatura ou não é escritor ou é um pulha.
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