quinta-feira, 11 de junho de 2009

Capítulo 65 - A Menina sem Estrela

Dizia eu, num dos meus últimos capítulos, que passou a épo­ca dos diretores de jornal. Eles não existem ou, por outra, só existem nominalmente. Figuram no cabeçalho porque a lei exi­ge um responsável. E mandam cada vez menos (uns dois, ou três, como Roberto Marinho, ainda preservam o antigo absolu­tismo. O Globo é Roberto e ponto final. Lá, as esquerdas an­dam pelos cantos, exalando impotência e frustração).
Fiz o comentário acima pensando em J. E. Macedo Soares. Ontem, abro o jornal e, ao ler a notícia de sua morte, quase ex­clamei: — “Outra vez?”. E, de fato, tive a sensação de que não morria pela primeira vez. Há tanto tempo não via o seu nome nem no poste-jornal. Reli a notícia. Fora escrita entre dois bo­cejos, sem dramatizar o fato e sem lhe conceder um ponto de exclamação.
E, de repente, o nosso J. E. Macedo Soares perde toda a importância, passada, presente e futura — torna-se ninguém. Ca­be então a pergunta: — e por quê? A explicação me parece sim­ples. Não há ninguém mais obscuro, mais anônimo, mais invá­lido do que o diretor de jornal — sem jornal. J. E. devia morrer em vida do Diário Carioca.
Imagino o fúnebre alarido se, por acaso, o Diário Carioca ainda circulasse. Toda a primeira página estaria chorando. As manchetes vestiriam um luto desgrenhado e siciliano. Por sua vez, os outros jornais fariam necrológios menos sóbrios e mais exaltados. E toda a pátria estaria pranteando o gênio.
Mas o nosso J. E. cometeu a gafe realmente indesculpável de morrer sem jornal. Ousarei afirmar que o seu atestado de óbi­to tem a data errada. Em verdade, faleceu com o Diário Carioca (lembro-me do que me dizia Gilberto Freyre: — “Como es­creve bem o Macedo Soares!”. Pausa e acrescentou: — “Escre­ve cada vez melhor”).
E assim morreu, outra vez, o Senador (os íntimos o chama­vam assim), sem um jornal próprio que lhe promovesse à pos­teridade. (Mesmo que não mande nada, um diretor tem, sem­pre, um necrológio deslumbrante.) Lendo a nova morte de J. E., acabei pensando no meu próprio caso. Até o meio de minha carreira, tive a obsessão da posteridade.
Ser ou não ser esquecido. Vimos que J. E. foi esquecido antes de morrer. Eu corria o mesmo risco. Os admiradores es­tavam desaparecendo. Lembro-me de alguém que ousou o vaticínio: — “Daqui a cinco anos ninguém falará mais em Nelson Rodrigues”. Em pânico, olhava em volta. A maioria dos cole­gas já fazia pose para a posteridade.
Um dia, escutei de Marques Rebelo: — “Daqui a vinte anos, todo mundo falará da Estrela sobe”. Fazia-se, então, sobre o seu romance, um silêncio que lhe parecia, a um só tempo, injusto e burro. Ele contava com as gerações seguintes. Já se esgotou o prazo de vinte anos (ou quase). Ninguém se lembra, ninguém fala da Estrela sobe. E quem sabe se o nosso Marques não tem uma forte, uma taxativa vocação, para o esquecimento? Bem. Citei o episódio para caracterizar o artista e a sua pueril e ob­sessiva vontade de sobreviver.
Durante largo período, também tive a nostalgia da posteri­dade. Li, um dia, uma crônica antiga do Zeca Patrocínio sobre a morte do Tigre da Abolição. E o filho concluía que o pai mor­rera no momento errado. Devia ter morrido antes, muito an­tes, em plena glória tribunícia. Num discurso famoso, o aboli­cionista berrara: — “Deus deu-me sangue de Otelo para ter ciú­mes da minha pátria”. Eis o que pensava o Zeca: — aí estava a grande hora de morrer. Se o Tigre caísse fulminado de apoplexia após tal frase, teria arranjado um enterro maior ou igual ao do barão do Rio Banco. Mas como sobrevivera à própria re­tórica, morrera numa solidão de indigente. Por muito favor, apa­recera, lá, o Coelho Neto. Só.
A crônica de Patrocínio Filho deu-me uma angústia feroz. Comecei a pensar que também passara a minha hora de mor­rer, o momento ideal fora a estréia de Vestido de noiva. Por toda uma noite, em casa, teci as fantasias mais absurdas. E me via morrendo na caixa, durante a representação. Ou por outra: — não durante a representação, mas depois da apoteose. Ou ainda: — em plena apoteose. Enquanto José César Borba e outros exi­giam a presença do autor, eu, nos bastidores, no sofá de mada­me Clessy, expirava nos braços de alguém, de preferência uma atriz.
E viria um sujeito, ao palco, chorando. Pediria silêncio à platéia alucinada. Quando passassem as palmas, os vivas, a pes­soa diria: — “Nelson Rodrigues, o autor de Vestido de noiva, acaba de morrer”. Ou melhor: — não “de morrer”, mas “de falecer”. Seria um corre-corre no palco e na platéia. O elenco, aos soluços. Morreu como? De quê? Eu próprio, na cama, fan­tasiando a minha morte, repetia a pergunta: — “De quê?”. E não me ocorria uma doença, nada. Talvez uma lesão cardíaca, jamais suspeitada.
A rigor, não precisaria morrer na própria noite da estréia. Podia ser no dia seguinte. Seria um pavoroso impacto no Bra­sil. Eis o que queria dizer: — se eu morresse naquele momento ninguém me esqueceria, jamais. Era a posteridade tranqüila. E o morto seria o gênio absoluto. Os críticos escreveriam bateladas, não sobre Vestido de noiva, mas sobre todas as peças futu­ras e que o defunto jamais escreveria.
Passei uma semana, dez dias, quinze dias, com aquilo na cabeça. Se tivesse morrido na estréia de Vestido de noiva ou no dia seguinte. Até que, um dia, acordei com uma furiosa co­ragem. Pouco depois, estava diante do espelho, fazendo a bar­ba; e pensava: — “Dane-se a posteridade. Não faz mal que eu seja esquecido”. Mais um pouco e digo para mim mesmo: — “Quero ser esquecido”. Naquele momento, eu percebia, com implacável lucidez, que essa disposição era vital. Tinha que re­ceber o fracasso com desesperada alegria suicida. Um dia, o Pau­lo Francis veio me entrevistar. Dei as minhas respostas por es­crito; e terminava assim: — “Quero ser esquecido para sempre”.

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