sexta-feira, 12 de junho de 2009

Capítulo 66 - A Menina sem Estrela

Ainda outro dia, alguém me perguntava: — “Por que é que você fez o Anjo negro?”. Aí está uma peça que continua me fas­cinando. Tenho, de cor, passagens inteiras. Lembro-me, por exemplo, do coro das solteironas. Uma delas balbucia: — “Num enterro, sempre sobra uma flor”. Outra acrescenta: — “Uma flor fica boiando no assoalho”. Está na rubrica que as solteiro­nas sempre falam num mesmo tom monótono e lascivo.
Quase posso dizer que Anjo negro nasceu comigo. Eu não sabia ler, nem escrever e já percebera uma verdade que até ho­je escapa a Gilberto Freyre: — não gostamos de negro. Nada mais límpido, nítido, inequívoco, do que o nosso racismo. E como é humilhante a relação entre brancos e negros. Os bran­cos não gostam dos negros; e o pior é que os negros não rea­gem. Vejam bem: — não reagem.
Em vez de odiar o branco, o preto brasileiro é um ressenti­do contra o próprio preto. Lembro-me de que, certa vez, escre­vi não sei onde: — “Abdias é o único negro do Brasil, o único”. O que se esconde ou, por outra, o que não se esconde por trás da minha blague é uma verdade desesperada. Zé do Patrocínio não amava a sua cor. Nem Rebouças, nem Filipe Camarão. Esses e outros, milhões de outros, gostariam de ser brancos de armi­nho. Só Abdias do Nascimento não se arrepende de ser retinto. Único preto consentido, exultante e saturado de ódio racial.
A “democracia racial” que nós fingimos é a mais cínica, a mais cruel das mistificações. Quando andou por aqui, Jean-Paul Sartre fez cinco, seis ou dez conferências. E sempre que o gê­nio falava, era um sucesso tremendo. Gente em pé, sentada, pen­durada, trepada etc. etc. Na última palestra, o filósofo perdeu a paciência. Vira-se para dois ou três brasileiros, que o lambiam com a vista, e perguntou: — “E os negros? Onde estão os negros?”.
Perfeitamente justa a irritação do francês. Até então, nas suas conferências, só vira uma platéia loura, alvíssima, de olho azul, caras sardentas. Repetiu: — “E os negros?”. Um brasileiro co­chichou, no ouvido de outro, a graça vil: — “Os negros estão por aí, assaltando algum chauffeur”. Mas ninguém teve o que explicar ao visitante. E Sartre voltou para a Europa sem saber onde é que se metem os negros do Brasil.
Era tão apaixonante, para mim, o nosso problema racial, que Anjo negro ia ser a minha primeira peça. Acabei fazendo A mulher sem pecado. Depois, viria Vestido de noiva. Em se­guida, comecei o Anjo negro. À última hora decidi-me por um outro projeto dramático: — Álbum de família. E não adiei mais: — a seguinte foi a tragédia racial.
No início da minha carreira, conhecera Abdias do Nascimen­to. Que eu saiba, é o único negro que assume, com lúcida fero­cidade, uma posição racista. Até hoje, não mudou. Quando Pelé se casou, dizia-me Abdias, como que ofendido e humilhado: — “Por que não se casou com uma preta? Devia ter se casado com uma preta”. E essa paixão negra do Abdias, esse potencial de ira — deram quase toda a substância do herói Ismael.
Confesso que há muito de Abdias no meu texto. Abdias é doutor e meu personagem também. Mas a grande semelhança está no ódio, o grande, puro, luminoso ódio. É a história do negro Ismael e da branca Virgínia. Começa a peça num velório de anjo. Os filhos do casal morrem, um por um. Não vou con­tar todo o drama. Direi apenas que os anjos, naquela casa, são negros. E é a própria Virgínia, a mãe sem amor, que os afoga. Ela, muito loura e muito linda, tem, pelo marido, pavor e des­lumbramento. Sente-se, no leito conjugal, a esposa “sempre vio­lada”. A peça termina com o vaticínio do coro: “Vosso amor! vosso ódio/ não têm fim neste mundo/ Negro Ismael/ Branca Virgínia”.
Fiz o Anjo negro e distribuí umas seis cópias. Por toda par­te encontrei a mais feroz resistência. Um ator negro de talento, o Agnaldo Camargo, que morreria, mais tarde, atropelado, leu o original com um tédio cruel: — “Mas isso não existe! Não há esse problema no Brasil. Você acha que uma diferença epidér­mica vale alguma coisa?”. Não encontrei um único preto que gostasse de Anjo negro e que o levasse a sério. Como já espe­rasse uma reação parecida, tratei da encenação. Os Comedian­tes iam fazer uma temporada no Municipal e incluíram meu texto no seu repertório.
Fui conversar com a comissão do teatro. Sinto que os seus membros reagem. Um deles quer saber: “Naturalmente, o Is­mael não será um preto”. Não entendo: — “Como?”. Um ou­tro foi mais claro: — “Escuta, Nelson. Não é interessante um negro no Municipal. Não fica bem”. Digo: — “Mas o persona­gem é negro”. Toda a comissão se entreolha. Um dos seus com­ponentes, amassando a brasa do cigarro no cinzeiro, fala pelos outros: — “Faz o seguinte: — põe um branco pintado”.
Aí está: — o Municipal não admitia que o herói negro fosse negro. Tinha que ser um branco pintado. Sim, pintado com ro­lha queimada, carvão, piche. Eu imaginava, para o papel, uma figura plástica, crispada, uma obsessiva presença vital. Sim, um negro belo e voluptuoso, como Paul Robeson. Ismael não ti­nha nada dos moleques gaiatos das burletas domésticas. Creio que foi o primeiro herói negro do teatro brasileiro. Que auten­ticidade racial e cênica se poderia esperar de um branco pin­tado?
Foi Sandro Polônio que encenou a peça, fazendo, se não me engano, a sua primeira produção. Anjo negro seria a estréia dramática de Maria Delia Costa. Itália Fausta, tia de Sandro, en­carnou a Velha. Conversei com Ziembinski, o diretor. Também este preferiu o branco pintado. Talvez achasse que o preto bra­sileiro tem uma estrutura doce demais para viver o ódio mara­vilhoso de Ismael. E, assim, a figura de um Paul Robeson para o papel não passou de uma utopia derrotada.
Cada silêncio, e fala, e gesto de Maria Delia Costa tinha a voluptuosidade assassina da heroína. Ainda a vejo, em cena, como uma possessa, cheirando as próprias mãos, os braços, os lençóis, as fronhas. Sente em tudo, até nos retratos, o suor do negro. E quando Ismael chora os filhos — as suas lágrimas apo­drecem na face escavada.

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