sábado, 13 de junho de 2009

Capítulo 67 - A Menina sem Estrela

Como é antigo o passado recente! — eis a exclamação que não me farto de repetir. E, realmente, como a melindrosa de 1929 é anterior a Sarah Bernhardt. Como o Ford de bigode é mais velho do que a charrete de Ben-Hur. Aí está o óbvio que ninguém enxerga. E, no entanto, qualquer memorialista tem es­crúpulo de fazer a história da véspera. Meu Deus, o que aconte­ceu ontem ou, menos do que ontem, o que aconteceu há quin­ze minutos pertence tanto ao passado defunto como a primeira audição do “Danúbio azul”.
Bem. Fiz este breve reparo para referir uma dura experiên­cia que acabo de sofrer, na carne e na alma. Foi sexta-feira e, portanto, há 72 horas. Saímos os dois casais: — eu e Lúcia, Cel­so Bulhões da Fonseca e Teresa. Eis o nosso destino: — Bruni-Copacabana, íamos ver Terra em transe, de Glauber Rocha. Na própria tarde de sexta-feira, perguntei a um conhecido: — “Bom o filme?”. E o sujeito, que é um legionário da esquerda idiota, respondeu: — “Fascista”. Insisti: — “Rapaz, não perguntei se era fascista. Perguntei se era bom”.
(Singular geração esta que anda por aí. Imaginem rapazes e raparigas — digamos “raparigas”, como Júlio Diniz — que se fingem mais imbecis do que são. E assim desponta nas esquer­das brasileiras um tipo único, inédito, empolgante, de cretino. É o débil mental por simples pose ideológica; e o sujeito se põe a babar na gravata, achando que só assim serve ao socialismo.)
Diga-se de passagem que tivemos, eu e o desafeto de Ter­ra em transe, uma discussão truculenta. Disse-lhe que, para meu gosto, tanto fazia o filme comunista, fascista, espírita, budista, macumbeiro ou jacobino. Eu queria, apenas, com minha feroz simplicidade, que fosse um bom filme e nada mais. O bate-boca não chegou a nenhuma conclusão inteligente. Por fim, perdi a paciência e fiz-lhe o apelo: — “Não me cumprimente mais. É favor. Me negue o cumprimento”.
Largo o falso idiota (realmente, é um rapaz de talento), apa­nho um táxi e passo na casa do Hélio Pellegrino. Lá encontro o Gilberto Santeiro, jovem cineasta patrício. O cinema brasilei­ro tem uma meia dúzia (não mais) de rapazes prodigiosos. São possessos de sua arte. Potencializados de paixão, chegam a me­ter medo. E o nosso Gilberto Santeiro é um dos que matam e morrem por cinema. Pergunto-lhes: — “Que tal Terra em tran­se?”. Deu-me a resposta fanática: — “Genial!”.
A fé sempre me comove, mesmo que o santo ou o deus não a mereça. Duas mãos postas e mais a luz de um círio fazem uma cena irresistível. O Gilberto Santeiro não tinha a vela, mas estava quase de mãos postas. E assim, crispado de uma fé au­têntica, ele me tocou. Levantei-me: — “Gilberto, vou ver o fil­me e depois te falo”.
Confesso que, na casa do Hélio Pellegrino, comecei a gos­tar de Terra em transe. Mais tarde, entrando no Bruni-Copacabana, não tinha mais dúvida: — “Gostei”, eis o que pensava. E já me via dizendo ao Gilberto Santeiro: — “Genial”. Na porta do cinema, paro um momento. Outro rapaz, flor das esquer­das, veio me dizer: — “O elenco não gosta do filme. Está indig­nado. Acha o filme fascista”. O sujeito afirmou-me, quase sob palavra de honra, que Paulo Autran, Danuza, e outros, e outros, estrebuchavam de furor impotente e sagrado. Não sei se é ver­dade. Passo adiante o que me foi dito.
A indignação de um elenco não é um fenômeno novo para mim. A maioria dos meus intérpretes representam os meus tex­tos com o maior desprazer e humilhação. Mas, como ia dizen­do: — entrei no cinema e vi o filme. Entre parênteses, acho co­movente a figura de Glauber Rocha por muitos motivos, inclusive este: — é um neurótico. Está a um passo da loucura; e essa proximidade me parece vital para a obra de arte. Não me ve­nham falar de Goethe, que era um suicida e o mais lúgubre dos suicidas: — o fracassado. E nós sabemos que o brasileiro não tem nenhum motivo para ser neurótico. Cada um de nós há de morrer agarrado à sua angústia.
Fiz, durante Terra em transe, o que fez, tempos atrás, Cyro dos Anjos. Ao lado de Carlos Castelo Branco, o autor de Abdias assistia à minha peça Dorotéia, no já demolido Teatro Phoenix. E o tempo todo Cyro cochichava para o Castelinho: — “Que mistificação! Que mistificação!”. Sexta-feira, sessão de dez a meia-noite, eu repetia: — “Que mistificação! Que mistificação!”. E o Celso Bulhões da Fonseca ouvia e calava. Durante as duas horas de projeção, não gostei de nada. Minto. Fiquei maravi­lhado com uma das cenas finais de Terra em transe.
Refiro-me ao momento em que dão a palavra ao povo. Man­dam o povo falar e este faz uma pausa ensurdecedora. E, de re­pente, o filme esfrega na cara da platéia esta verdade, mansa, translúcida, eterna: — o povo é débil mental. Eu e o filme dize­mos isso sem nenhuma crueldade. Foi sempre assim e será as­sim, eternamente. O povo pare os gênios, e só. Depois de os parir, volta a babar na gravata.
Saio do cinema e, antes de entrar no automóvel do Celso, faço este resumo crítico: — “Terra em transe é um texto chi­nês de cabeça para baixo”. A platéia não entendera nada, mas, coisa curiosa: — suportara as duas horas com uma paciência ou, mais do que isso, com um respeito e um silêncio totais. Era como se estivéssemos, todos, numa igreja. E se por lá aparecesse uma mosca, seu vôo faria um ruído insuportável (súbito, des­cubro que não há moscas na missa). Domingo encontrei-me, no Estádio Mário Filho, com o Luís Carlos Barreto. Desfechei-lhe a piada: — “Um texto chinês de cabeça para baixo”. Cuidei que ele ia revidar, irado. Pelo contrário: — achou uma graça infini­ta. Soube, posteriormente, que anda por toda parte, fazendo uma promoção feroz da graça cruel.
E, no entanto, Terra em transe não morrera para mim. Da madrugada de sexta para sábado e domingo, continuei agarrado ao filme. E sentia por dentro, nas minhas entranhas, o seu rumor. De repente, no telefone, com o Hélio Pellegrino, houve o berro simultâneo: — “Genial!”. Estava certo o Gilberto Santeiro, quase um menino. Sim, pálido de certeza como um fanático. Nós está­vamos cegos, surdos e mudos para o óbvio. Terra em transe era o Brasil. Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas so­mos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um vômito triunfal. Os sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para ter sentido no Brasil, precisa ser esta golfada hedionda.

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