domingo, 14 de junho de 2009

Capítulo 68 - A Menina sem Estrela

Um dia, estou escrevendo sobre futebol. O assunto era, se não me engano, Pelé (ou seria Garrincha?). No meio da crôni­ca, escapou-me esta verdade translúcida, perfeita, eterna: — “Só os profetas enxergam o óbvio”. E, desde então, não faço outra coisa senão promover o óbvio como um sabonete. Hoje, veri­fico, e não sem vaidade, que a minha pertinácia foi bem-sucedida.
Até os lavadores de automóvel sabem, em nossos dias, que o importante é ver o óbvio. Nada mais interessa. Quem o viu pode morrer como Ponce de León, certo de que está mirando “algo de nuevo”. E assim — o novo, o inédito, o nunca visto, o revolucionário, o jamais desconfiado — é o óbvio.
Por isso, diria, sem medo de erro, o seguinte: — Gilberto Amado, o profeta. De vez em quando, vem o óbvio e ilumina o seu verbo. Ainda outro dia, no banquete dos oitenta anos, di­zia ele patético: — “Pelo amor de Deus, não acreditem na ami­zade entre os povos. Nenhum povo é amigo de outro povo”. Ao ouvi-lo, os presentes sentiram toda a embriaguez do óbvio. E, mais uma vez, Gilberto estava sendo profético.
Realmente, os povos não são amigos dos povos. E vou além. De igual modo, os homens, individualmente, não são amigos dos homens. Domingo último, escrevi sobre a nossa questão racial (outro óbvio que ninguém quer ver). Disse então que, no Brasil, os brancos não gostam dos pretos, ao passo que os pre­tos não gostam dos pretos.
Isso entre brancos e negros. Mas, entre os homens (e já não importando o dado racial), tudo é feio, áspero, cruel desamor. O ódio começou, obviamente, quando, pela primeira vez, um homem viu outro homem. Era o inimigo. E assim tem sido, atra­vés de todas as manhãs e de todas as noites: — o “outro” con­tinua sendo o inimigo de cada um de nós e de todos nós.
Daí por que o grande acontecimento é, sempre, o amigo. Bem me lembro do dia em que conheci Hélio Pellegrino. Foi o puro e deslavado milagre. O Hélio é, de um lado, o mineiro; de outro lado, o calabrês. Digo calabrês como diria siciliano. Na verdade, a Itália é toda uma Sicília frenética. Mas como ia dizendo: — de repente, todo o meu horizonte vital se povoou e se tornou mais denso, mais úmido, mais crispado.
E veio, depois, José Lino Grünewald. Claro que dois ami­gos, dois únicos e escassos amigos formam toda uma multidão inverossímil. Eu poderia citar também o Marcello Soares de Mou­ra, o Claudino Borges Neves, mas paro. Eis o que me importa dizer: — o amigo é a desesperada utopia que todos nós perse­guimos até a última golfada de vida.
Lembro-me de certo episódio da minha vida jornalística que me feriu para sempre. Imaginem vocês que tive, no Globo, um companheiro admirável: — Pereira Rêgo. Não me lembro do primeiro nome (talvez Alfredo). Disse “admirável” e preciso ex­plicar. Inteligência mediana, nada brilhante, Pereira Rêgo limitava-se a redigir notas de aniversário, casamento, batizado, missas. Mas era de uma bondade fascinante. Como gostava de servir e repito: — servia como um santo. Tinha o riso mais do­ce que já vi na Terra.
Uma tarde, Pereira Rêgo vai empenhar uma jóia, ali, na Cai­xa Econômica da rua Treze de Maio. Foi lá a pé e voltou a pé, para O Globo. Ao atravessar, na altura do “Tabuleiro da Baia­na”, foi atropelado. Havia, na época, um tipo de ônibus que o povo batizara como “Arrasta Sandália”. E foi esse, justamente, que apanhou o meu companheiro. Dizem que o “Arrasta San­dália” passou por cima. Não sei. Houve corre-corre na rua. Um crioulo, que chegou antes de todos, apanha a cabeça do atropelado e a pôs no regaço. E, então, veio, com sangue pisado, o apelo de Pereira Rêgo: — “Me beija, me beija”.
(O episódio me tocou tanto que, anos depois, escrevi O bei­jo no asfalto, encenado pelo Teatro dos Sete. Todo o núcleo lírico e dramático da peça é um beijo pedido por um atropela­do.) No instante de morrer, Pereira Rêgo pediu o amigo, sonhou com o amigo. Eis o que eu queria dizer: — desde garotinho eu quis o amigo como um atropelado.
Pereira Rêgo foi, para mim, uma dilacerada experiência de vida. Outra experiência, e também extremamente dramática, eu teria, muitos anos depois, e com quem? Vejam vocês: — com o dr. Alceu Amoroso Lima. Quis ser seu amigo e Deus sabe que, para isso, fiz o diabo. Já contei, e repisei nas minhas memórias, a posição do dr. Alceu diante do meu teatro. Sua única conces­são foi chamar Vestido de noiva de “obra-prima”. De Álbum de família disse: — “pior subliteratura”. Anjo negro pareceu-lhe de uma torpeza inexcedível. De Perdoa-me por me traíres afirmou que “a abjeção começava no título”. E fez mais a se­guinte síntese do meu teatro: — “peças trágicas, mas obscenas”.
(Falei de meus amigos e me esquecia de citar o Luís Eduar­do Borgerth; e ainda, ainda, o Gustavo Corção, o meu mais re­cente amigo de infância.) Eu podia me doer. Mas ai de mim, ai de mim. Nunca, em momento nenhum, deixei de ser o atrope­lado que morre pedindo um amigo. Quis ser amigo do dr. Al­ceu. Ele me atacava com a maior veemência e sempre acreditei que os veementes são portadores de verdades totais.
Fui levar-lhe, em mãos, uma cópia de Senhora dos afoga­dos. Dias depois, deu-me sua opinião em forma de carta. De­vastou o meu texto, não deixando pedra sobre pedra. E, por fim, sugeriu que eu seguisse o exemplo de d. Marcos Barbosa. Minha vontade foi replicar-lhe: — “Eu já quis ser até coroinha”. Tudo o que ele dizia, em tal documento, encontrou em mim uma acústica de catedral.
Outro qualquer teria desistido de uma amizade esbravejante como o abade anatoliano de Thais. Mas sou, repito, o atropela­do faminto de amor. Fui de uma paciência a um só tempo obtu­sa e terna. Ano após ano, em toda véspera de Natal, ligava para o dr. Alceu. A cena se repetia, quase textualmente: — “Aqui fa­la o Nelson Rodrigues. O senhor vai bem? Não vai bem? Dr. Al­ceu, vim lhe desejar um feliz Natal, um grande Ano Novo. Para si e para os seus”. Mas isso eu dizia em parcelas, porque ele me interrompia: — “Ah, Nelson, estava rezando por você”. Eu acha­va linda, se bem que suspeita, a coincidência. E se ele dizia que rezava por mim, a minha vontade era retrucar: — “Da mesma forma, da mesma forma”.
Um Natal, dois, três, quatro. Sempre a mesma coisa. E co­mecei a notar que era uma relação inteiramente desigual: — ele, um santo; eu, um fauno, desses que atropelam as ninfas nos ter­renos baldios. Saía eu desses telefonemas natalinos me sentin­do um canalha total. E não passava a mão na cara para não sen­tir a minha própria hediondez. Até que, um Natal, dr. Alceu sus­pira, não sei se do alto ou do fundo de sua bondade: — “Ah, Nelson. Você aí na sua lama”. Tomei um baque: — lama, eu? O respeito me travou, mas quase dizia-lhe: “Um momento, dr. Alceu. Não lhe ocorre que o senhor também tem sua cota de lama, a sua lamazinha, o seu pântano, os seus sapos, as suas rãs, os seus marrecos, hein, dr. Alceu?”. Não disse nada. E as­sim os dois, ele, um puro, eu, um obsceno, perdemos cada qual um amigo maravilhoso.

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