Um dia, estou escrevendo sobre futebol. O assunto era, se não me engano, Pelé (ou seria Garrincha?). No meio da crônica, escapou-me esta verdade translúcida, perfeita, eterna: — “Só os profetas enxergam o óbvio”. E, desde então, não faço outra coisa senão promover o óbvio como um sabonete. Hoje, verifico, e não sem vaidade, que a minha pertinácia foi bem-sucedida.
Até os lavadores de automóvel sabem, em nossos dias, que o importante é ver o óbvio. Nada mais interessa. Quem o viu pode morrer como Ponce de León, certo de que está mirando “algo de nuevo”. E assim — o novo, o inédito, o nunca visto, o revolucionário, o jamais desconfiado — é o óbvio.
Por isso, diria, sem medo de erro, o seguinte: — Gilberto Amado, o profeta. De vez em quando, vem o óbvio e ilumina o seu verbo. Ainda outro dia, no banquete dos oitenta anos, dizia ele patético: — “Pelo amor de Deus, não acreditem na amizade entre os povos. Nenhum povo é amigo de outro povo”. Ao ouvi-lo, os presentes sentiram toda a embriaguez do óbvio. E, mais uma vez, Gilberto estava sendo profético.
Realmente, os povos não são amigos dos povos. E vou além. De igual modo, os homens, individualmente, não são amigos dos homens. Domingo último, escrevi sobre a nossa questão racial (outro óbvio que ninguém quer ver). Disse então que, no Brasil, os brancos não gostam dos pretos, ao passo que os pretos não gostam dos pretos.
Isso entre brancos e negros. Mas, entre os homens (e já não importando o dado racial), tudo é feio, áspero, cruel desamor. O ódio começou, obviamente, quando, pela primeira vez, um homem viu outro homem. Era o inimigo. E assim tem sido, através de todas as manhãs e de todas as noites: — o “outro” continua sendo o inimigo de cada um de nós e de todos nós.
Daí por que o grande acontecimento é, sempre, o amigo. Bem me lembro do dia em que conheci Hélio Pellegrino. Foi o puro e deslavado milagre. O Hélio é, de um lado, o mineiro; de outro lado, o calabrês. Digo calabrês como diria siciliano. Na verdade, a Itália é toda uma Sicília frenética. Mas como ia dizendo: — de repente, todo o meu horizonte vital se povoou e se tornou mais denso, mais úmido, mais crispado.
E veio, depois, José Lino Grünewald. Claro que dois amigos, dois únicos e escassos amigos formam toda uma multidão inverossímil. Eu poderia citar também o Marcello Soares de Moura, o Claudino Borges Neves, mas paro. Eis o que me importa dizer: — o amigo é a desesperada utopia que todos nós perseguimos até a última golfada de vida.
Lembro-me de certo episódio da minha vida jornalística que me feriu para sempre. Imaginem vocês que tive, no Globo, um companheiro admirável: — Pereira Rêgo. Não me lembro do primeiro nome (talvez Alfredo). Disse “admirável” e preciso explicar. Inteligência mediana, nada brilhante, Pereira Rêgo limitava-se a redigir notas de aniversário, casamento, batizado, missas. Mas era de uma bondade fascinante. Como gostava de servir e repito: — servia como um santo. Tinha o riso mais doce que já vi na Terra.
Uma tarde, Pereira Rêgo vai empenhar uma jóia, ali, na Caixa Econômica da rua Treze de Maio. Foi lá a pé e voltou a pé, para O Globo. Ao atravessar, na altura do “Tabuleiro da Baiana”, foi atropelado. Havia, na época, um tipo de ônibus que o povo batizara como “Arrasta Sandália”. E foi esse, justamente, que apanhou o meu companheiro. Dizem que o “Arrasta Sandália” passou por cima. Não sei. Houve corre-corre na rua. Um crioulo, que chegou antes de todos, apanha a cabeça do atropelado e a pôs no regaço. E, então, veio, com sangue pisado, o apelo de Pereira Rêgo: — “Me beija, me beija”.
(O episódio me tocou tanto que, anos depois, escrevi O beijo no asfalto, encenado pelo Teatro dos Sete. Todo o núcleo lírico e dramático da peça é um beijo pedido por um atropelado.) No instante de morrer, Pereira Rêgo pediu o amigo, sonhou com o amigo. Eis o que eu queria dizer: — desde garotinho eu quis o amigo como um atropelado.
Pereira Rêgo foi, para mim, uma dilacerada experiência de vida. Outra experiência, e também extremamente dramática, eu teria, muitos anos depois, e com quem? Vejam vocês: — com o dr. Alceu Amoroso Lima. Quis ser seu amigo e Deus sabe que, para isso, fiz o diabo. Já contei, e repisei nas minhas memórias, a posição do dr. Alceu diante do meu teatro. Sua única concessão foi chamar Vestido de noiva de “obra-prima”. De Álbum de família disse: — “pior subliteratura”. Anjo negro pareceu-lhe de uma torpeza inexcedível. De Perdoa-me por me traíres afirmou que “a abjeção começava no título”. E fez mais a seguinte síntese do meu teatro: — “peças trágicas, mas obscenas”.
(Falei de meus amigos e me esquecia de citar o Luís Eduardo Borgerth; e ainda, ainda, o Gustavo Corção, o meu mais recente amigo de infância.) Eu podia me doer. Mas ai de mim, ai de mim. Nunca, em momento nenhum, deixei de ser o atropelado que morre pedindo um amigo. Quis ser amigo do dr. Alceu. Ele me atacava com a maior veemência e sempre acreditei que os veementes são portadores de verdades totais.
Fui levar-lhe, em mãos, uma cópia de Senhora dos afogados. Dias depois, deu-me sua opinião em forma de carta. Devastou o meu texto, não deixando pedra sobre pedra. E, por fim, sugeriu que eu seguisse o exemplo de d. Marcos Barbosa. Minha vontade foi replicar-lhe: — “Eu já quis ser até coroinha”. Tudo o que ele dizia, em tal documento, encontrou em mim uma acústica de catedral.
Outro qualquer teria desistido de uma amizade esbravejante como o abade anatoliano de Thais. Mas sou, repito, o atropelado faminto de amor. Fui de uma paciência a um só tempo obtusa e terna. Ano após ano, em toda véspera de Natal, ligava para o dr. Alceu. A cena se repetia, quase textualmente: — “Aqui fala o Nelson Rodrigues. O senhor vai bem? Não vai bem? Dr. Alceu, vim lhe desejar um feliz Natal, um grande Ano Novo. Para si e para os seus”. Mas isso eu dizia em parcelas, porque ele me interrompia: — “Ah, Nelson, estava rezando por você”. Eu achava linda, se bem que suspeita, a coincidência. E se ele dizia que rezava por mim, a minha vontade era retrucar: — “Da mesma forma, da mesma forma”.
Um Natal, dois, três, quatro. Sempre a mesma coisa. E comecei a notar que era uma relação inteiramente desigual: — ele, um santo; eu, um fauno, desses que atropelam as ninfas nos terrenos baldios. Saía eu desses telefonemas natalinos me sentindo um canalha total. E não passava a mão na cara para não sentir a minha própria hediondez. Até que, um Natal, dr. Alceu suspira, não sei se do alto ou do fundo de sua bondade: — “Ah, Nelson. Você aí na sua lama”. Tomei um baque: — lama, eu? O respeito me travou, mas quase dizia-lhe: “Um momento, dr. Alceu. Não lhe ocorre que o senhor também tem sua cota de lama, a sua lamazinha, o seu pântano, os seus sapos, as suas rãs, os seus marrecos, hein, dr. Alceu?”. Não disse nada. E assim os dois, ele, um puro, eu, um obsceno, perdemos cada qual um amigo maravilhoso.
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