quarta-feira, 17 de junho de 2009

Capítulo 71 - A Menina sem Estrela

Se me perguntarem qual é o grande e irredutível abismo entre a velha imprensa e a nova, direi: — a linguagem. Claro que existem outras dessemelhanças, além da estilística. Tudo o mais, porém, é irrelevante. Basta a redação de uma e outra para datá-las. Examinem duas manchetes: — uma de 1908 e ou­tra de 1967.
Dos fatos que, em 1908, deram manchete, o mais patético foi o assassinato do rei de Portugal e do príncipe herdeiro. Muito bem. Um dia, fui à Biblioteca Nacional repassar os jornais da época. Eis o que quero dizer: — não sei o que comovia mais o leitor, se o furor da carnificina, se o alarido dos cabeçalhos.
A primeira manchete era de um tremendo impacto visual, um soco no olho. E, depois de contar, sempre em oito colunas, a iniqüidade, o jornal, não satisfeito, punha uma derradeira man­chete: — “horrível emoção!”. Quando e onde o atual copy desk do Jornal do Brasil admitiria esse apavorante uivo im­presso?
(Boa figura, o rei de Portugal, d. Carlos I tinha olho azul e cabelos de fogo, não vermelhos, mas de fogo intenso ou dourado. Vinha na carruagem ao lado da rainha, d. Amélia, e do príncipe herdeiro Luiz Filipe. E, de repente, pularam os assassinos. Eram Buiça e Costa, ambos de capa preta. Ati­raram à queima-roupa e assim morreram pai e filho, o peito, o ventre furados. Em pé, a rainha gritava. Ali mesmo, a guar­da matou os assassinos. Os dois, o rei e o príncipe, tiveram uma breve, fulminante agonia. E d. Carlos ficou quieto co­mo se aquilo fosse, não um crime, mas a morte consentida e desejada.)
Vejam vocês: — diante da catástrofe, a primeira medida da velha imprensa era cair nos braços do adjetivo ululante. Hoje, não. Quando Kennedy morreu (quando uma bala arrancou o seu queixo), o copy desk do Jornal do Brasil redigiu a manchete sem nada conceder à emoção, ao espanto, ao horror. O aconte­cimento foi castrado emocionalmente. Podia ser a guerra nu­clear, talvez fosse a guerra nuclear. E o nosso copy desk, na sua casta objetividade, também não concederia ao fim do mundo um vago e reles ponto de exclamação.
A rigor, só conheço um lapso nessa intransigência estilísti­ca. Foi por ocasião da visita do papa a Portugal, o mesmo Por­tugal de d. Carlos, o rei de olho azul. Ora, não é três vezes por dia que um papa vai à terra portuguesa. E eu estava curioso de ver como reagiria o copy desk à transcendência do fato.
Sua santidade desembarcou e, no dia seguinte, atropelei o primeiro exemplar do Jornal do Brasil que encontrei na vida real. Ignorei os telegramas. O que me interessava era o estilo do jornal. E tremi em cima dos sapatos. Contando a chegada do papa, o copy desk admitia que o sol estava “radioso”. A prin­cípio, duvidei de mim mesmo; reli e lá estava, inequívoco, con­tundente, o palavrão: — “radioso”. Para a velha imprensa, o sol mais vagabundo era “radioso”. Agora, não. E vamos reconhecer a singularidade da coisa: — pela primeira vez, um sol é “radioso” na primeira página do Jornal do Brasil.
E o fato é tão escandaloso que, por um momento, roçou-me o espírito a seguinte e desprimorosa suspeita: — estaria bê­bado o copy desk ao fazer tal concessão ao papa, a Portugal, ao sol e ao vocabulário? Seja como for, acho que o rei de olho azul morreu na hora certa. Fosse ele contemporâneo do copy desk, e não teria as manchetes que só a velha imprensa, só o jornal não desenvolvido concedia à tragédia oficial ou privada.
Fiz todos os devaneios acima para chegar à minha inicia­ção jornalística. Tenho, de novo, treze anos; acabo de inaugu­rar as minhas calças compridas. Vejo-me, na redação, vagando por entre os mais velhos. Na época, eu procurava me valorizar com rompantes insolentíssimos. Ouço a minha voz de menino: — “Rui Barbosa é uma besta”. Mas a verdade é que era uma segurança de papelão. Começava a duvidar de mim mesmo: ti­nha cavas depressões literárias. Ricardo Pinto me dizia: — “Rui Barbosa é gênio! É gênio!”. Sem o confessar, era o que eu acha­va também, às escondidas.
A partir da minha primeira nota de polícia (um atropelamen­to), começou a minha guerra com a linguagem. Eu era, confes­so, um pequeno Flaubert, ou melhor dizendo: — um “baiano” torturado. Queria escrever como um orador baiano. E o que me preocupava era a metáfora. Fui um autor correndo, ofegan­te, atrás das metáforas mais desvairadas. Escrevi que o copy desk do Jornal do Brasil caiu, pela primeira vez, nos braços do adje­tivo. Não fiz outra coisa no começo da carreira jornalística. Tam­bém o adjetivo era minha tara estilística.
Depois de passar pelos casos miúdos, redigi a minha pri­meira tragédia. Uma mulher matara o marido. Não me lembro onde (talvez na rua Mariz e Barros). E, na polícia, quando per­guntaram pelas razões do crime, foi sucinta: — “Não gostava do meu marido”. Não entendi, ninguém entendeu. Matar por­que não gostava, e só por isso? Eu ainda não sabia que não gos­tar do marido, simplesmente não gostar, é pior do que o ódio. Numa palavra: — não fora o ódio, que não existia, mas a sim­ples e terrível falta de amor. Na delegacia, na embriaguez da pri­meira grande chance profissional, tomei todas as notas. E fui para a redação escrever.
Eu não via nenhuma dessemelhança entre literatura e jor­nalismo. Já ao escrever o primeiro atropelamento, me comovi como se fosse a minha estréia literária. E a minha primeira tra­gédia também me soou como outra estréia. Sentei-me para es­crever. Não podia pensar muito. Mas precisava de uma metáfo­ra como ponto de partida. Lembrei-me da imagem plagiada das Pombas: — “a madrugada raiava sangüínea e fresca”. Em úl­timo caso, reincidiria no plágio. “Sangüínea e fresca” era bom. E, súbito, me veio outra idéia. Todo mundo ali conhecia Rai­mundo Correia. Então, desesperado, imaginei a criminosa, den­tro da tarde, sonhando com o crime. No horizonte o sol morria numa “apoteose de sangue”. A imagem me pareceu original, revolucionária. E não parei mais. A “apoteose” foi o meu afrodisíaco autoral. Horas depois, ainda comovido, fui para casa. “Apoteose de sangue”, repetia para mim mesmo. Pela primeira vez, me sentia um grande escritor.

3 comentários:

Lêda Maria disse...

Me encontrei por aqui.

:)

Eliane Jany Barbanti disse...

Oi Jana, sou sua fâ tb.
Agradeço sua visita e comentário.
foi um prazer, volte sempre!!!
Bjs.
Eliane

Homero luz disse...

Realmente os tempos mudam acredito que a midia muitas vezes demora a realizar essas mudanças, mas hoje existe opções para secrever da maneira que o autor melhor