sábado, 20 de junho de 2009

Capítulo 74 - A Menina sem Estrela

“Eu bem n’a sinto! Eu bem n’a sinto!” — assim começa uma página de Fialho que li há muitos e muitos anos. Se não me en­gano, o autor falava da boa primavera portuguesa. Ou por ou­tra: — não era a primavera. Falava da uva translúcida de Portu­gal, de sua doçura afrodisíaca. Teria eu dez, onze anos. E o “bem n’a sinto” de Fialho deu-me a sensação de que eu já fora portu­guês algum dia.
Ontem, quarenta e poucos anos depois, volto a sentir, na minha carne e na minha alma, esse maravilhoso passado luso. Imaginem que me acordam com a notícia: — “Morreu o Zé Gon­çalves!”. E nem fora a boa, consentida, compadecida morte na­tural. Zé Gonçalves, ou, por extenso, José Gonçalves dos San­tos, maquinista do Municipal, cenotécnico, fora assassinado, em casa, exatamente às quatro da manhã.
Ninguém mais português, ninguém tão português. Chegou menino ao Brasil; ia fazer setenta anos. E tinha, setuagenário, o sotaque de quem desembarcou na véspera. E a memória uniu em mim as duas coisas: — a retórica de Fialho e a morte do amigo. Novamente, senti que já fui português em vidas passadas. Em ca­pítulo recente, disse eu que o amigo é o grande acontecimento.
Exato, exato. E José Gonçalves foi, para mim, um grande acontecimento. Estou batendo estas notas e voltando à minha pré-história teatral. Quando fiz a minha primeira peça, A mu­lher sem pecado, eu não era ninguém. Fazia esporte no Globo, no tempo em que era humilhante ser cronista esportivo. E, mes­mo num setor estreitamente especializado, não tive jamais um destaque forte. A crônica esportiva era um território solidamente ocupado por Mário Filho.
(Mas preciso retificar. Ao escrever A mulher sem pecado, eu já deixara a seção de esporte. Isso mesmo. Estava no Globo Juvenil, que Roberto Marinho acabara de fundar.) Com a peça debaixo do braço, saí de porta em porta. Ninguém quis encená-la, ninguém. Vargas Netto apresentou-me a Abadie Faria Rosa, então diretor do Serviço Nacional de Teatro e da companhia oficial Comédia Brasileira. Era o Estado Novo e Vargas Netto tinha a onipotência do nome.
Automaticamente, o meu texto instalou-se no repertório da Comédia, com uma prioridade feroz.
Restava uma dúvida, e desesperadora. Abadie queria repre­sentar a peça, o elenco, idem. Mas a companhia não tinha um tostão para o cenário. Era em dezembro e a verba estava esgo­tada, até o último vintém. Só havia dinheiro para a quinzena dos artistas. E começou o meu desespero. À beira da glória, subita­mente a perdia (para mim, a estréia era a glória fulminante). Foi então que Rodolfo Mayer, intérprete e diretor de A mulher sem pecado, cochichou-me: — “Depende do José Gonçalves”.
O velho Zé. Tinha tremendas varizes nas pernas e andava mancando. Não precisei pedir. Foi ele que veio me dizer: — “Dei­xa o cenário por minha conta”. Eis o que eu queria dizer: — a bondade desse homem, a bondade tímida, humilde, envergonha­díssima. Tenho defeitos inumeráveis. Tenho. Mas há em mim uma virtude confessa: — um gesto bom, um simples gesto bom ou, menos do que isso: — um simples olhar ou sorriso bom me dila­cera. Eu me lembro de uma senhora que, na minha infância pro­funda, cruzou por mim, na rua D. Zulmira. E, de passagem, ela me olhou, de passagem. Não mais, apenas um olhar, a pura carícia de um olhar. Nunca mais a vi; sumiu, como se jamais tivesse existido. Esse breve olhar de uma desconhecida, esse olhar de uma doçura insuportável, está eternamente comigo.
Também jamais esquecerei o olhar do Zé Gonçalves. Posso dizer que houve a minha estréia porque José Gonçalves a pagou. E, através dos tempos, ele continuou português. Tinha sessen­ta anos de Brasil e era português como uma metáfora de Fialho. O bem que me fazia o som, a vista, a luz do seu riso. E o pior é que, há dias, fiz uma pequena seleção de amigos. Lá não está este nome: — José Gonçalves dos Santos. E me pergunto que lapso cruel o excluiu da lista dos que me querem bem para sem­pre. Eu o esqueci porque ele era um simples? Por causa do seu nobre, lindo, luminoso, esforço braçal? Porque era um francis­cano maquinista?
Até que chegou a grande noite de ontem. Meus filhos Jof­fre e Nelsinho contam que o Zé Gonçalves estava numa euforia total. Pôs o melhor terno, a melhor camisa, a melhor gravata, o melhor sapato. Seus últimos momentos foram de uma felici­dade absurda. Era já a morte e ninguém sabia. À meia-noite, to­dos vão dormir. E, naquele momento, já os bandidos que iam matá-lo estavam assaltando.
Chegaram num carrinho que ficou numa rua próxima à Silva Teles. A rua Agostinho Meneses é uma rua indefesa como toda a cidade (não há polícia, não há nada). Os sujeitos sobem para a varanda do Zé Gonçalves; cada um entra por uma janela. To­da a família dorme. Os meus filhos estão lá (foi seu José e podia ser Joffre ou Nelsinho). Segundo o repórter Amado Ribeiro, os três assaltantes deviam estar maconhados.
E, de repente, o barulho acordou seu José. Ou por outra: — não foi o barulho, foi a luz da lanterna. Seu José pula da ca­ma. E, logo, a casa encheu-se de gritos. Meu filho Joffre tam­bém acorda. Atraca-se com o bandido que atravessava o seu quarto. Veio de outro quarto Nelsinho. É a luta na treva. O ban­dido se desprende dos meus filhos; e salta pela varanda. Lá em­baixo, ergue-se e corre. Outro o acompanha.
Ninguém imaginava que um terceiro ficara. Seria o assassi­no de José Gonçalves e estava de dedo no gatilho. E, súbito, aparece atrás de José, Joffre e Nelsinho. Apontava a arma e ia atirar para fugir. Não foi sorte, não foi azar, não foi destino. Se­riam meus filhos, um dos meus filhos. E seu José saltou na fren­te do revólver. Levou a bala no coração para salvar.
José Gonçalves dos Santos. Falando dos meus amigos, eu o esqueci. E ele morreu. Meu amigo, disse. Mas que fosse meu inimigo. Morreu para salvar meus filhos. Será enterrado hoje e para sempre amado por mim. De manhã bate o telefone. Lúcia atende. Era a notícia. Ela não me acorda. Vela meu sono e nem sinto a sua desesperada proteção. É a compadecida que chora antes de mim e por mim. Só quando acordo é que me conta, aos poucos, lágrima por lágrima.
José Gonçalves dos Santos. Outro dia, falando dos meus amigos eu o esqueci. “Meu amigo”, posso agora dizer, tardia­mente. Mas que fosse inimigo. Morreu para salvar meus filhos. Vão enterrá-lo hoje. Será para sempre amado por mim.

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