“Eu bem n’a sinto! Eu bem n’a sinto!” — assim começa uma página de Fialho que li há muitos e muitos anos. Se não me engano, o autor falava da boa primavera portuguesa. Ou por outra: — não era a primavera. Falava da uva translúcida de Portugal, de sua doçura afrodisíaca. Teria eu dez, onze anos. E o “bem n’a sinto” de Fialho deu-me a sensação de que eu já fora português algum dia.
Ontem, quarenta e poucos anos depois, volto a sentir, na minha carne e na minha alma, esse maravilhoso passado luso. Imaginem que me acordam com a notícia: — “Morreu o Zé Gonçalves!”. E nem fora a boa, consentida, compadecida morte natural. Zé Gonçalves, ou, por extenso, José Gonçalves dos Santos, maquinista do Municipal, cenotécnico, fora assassinado, em casa, exatamente às quatro da manhã.
Ninguém mais português, ninguém tão português. Chegou menino ao Brasil; ia fazer setenta anos. E tinha, setuagenário, o sotaque de quem desembarcou na véspera. E a memória uniu em mim as duas coisas: — a retórica de Fialho e a morte do amigo. Novamente, senti que já fui português em vidas passadas. Em capítulo recente, disse eu que o amigo é o grande acontecimento.
Exato, exato. E José Gonçalves foi, para mim, um grande acontecimento. Estou batendo estas notas e voltando à minha pré-história teatral. Quando fiz a minha primeira peça, A mulher sem pecado, eu não era ninguém. Fazia esporte no Globo, no tempo em que era humilhante ser cronista esportivo. E, mesmo num setor estreitamente especializado, não tive jamais um destaque forte. A crônica esportiva era um território solidamente ocupado por Mário Filho.
(Mas preciso retificar. Ao escrever A mulher sem pecado, eu já deixara a seção de esporte. Isso mesmo. Estava no Globo Juvenil, que Roberto Marinho acabara de fundar.) Com a peça debaixo do braço, saí de porta em porta. Ninguém quis encená-la, ninguém. Vargas Netto apresentou-me a Abadie Faria Rosa, então diretor do Serviço Nacional de Teatro e da companhia oficial Comédia Brasileira. Era o Estado Novo e Vargas Netto tinha a onipotência do nome.
Automaticamente, o meu texto instalou-se no repertório da Comédia, com uma prioridade feroz.
Restava uma dúvida, e desesperadora. Abadie queria representar a peça, o elenco, idem. Mas a companhia não tinha um tostão para o cenário. Era em dezembro e a verba estava esgotada, até o último vintém. Só havia dinheiro para a quinzena dos artistas. E começou o meu desespero. À beira da glória, subitamente a perdia (para mim, a estréia era a glória fulminante). Foi então que Rodolfo Mayer, intérprete e diretor de A mulher sem pecado, cochichou-me: — “Depende do José Gonçalves”.
O velho Zé. Tinha tremendas varizes nas pernas e andava mancando. Não precisei pedir. Foi ele que veio me dizer: — “Deixa o cenário por minha conta”. Eis o que eu queria dizer: — a bondade desse homem, a bondade tímida, humilde, envergonhadíssima. Tenho defeitos inumeráveis. Tenho. Mas há em mim uma virtude confessa: — um gesto bom, um simples gesto bom ou, menos do que isso: — um simples olhar ou sorriso bom me dilacera. Eu me lembro de uma senhora que, na minha infância profunda, cruzou por mim, na rua D. Zulmira. E, de passagem, ela me olhou, de passagem. Não mais, apenas um olhar, a pura carícia de um olhar. Nunca mais a vi; sumiu, como se jamais tivesse existido. Esse breve olhar de uma desconhecida, esse olhar de uma doçura insuportável, está eternamente comigo.
Também jamais esquecerei o olhar do Zé Gonçalves. Posso dizer que houve a minha estréia porque José Gonçalves a pagou. E, através dos tempos, ele continuou português. Tinha sessenta anos de Brasil e era português como uma metáfora de Fialho. O bem que me fazia o som, a vista, a luz do seu riso. E o pior é que, há dias, fiz uma pequena seleção de amigos. Lá não está este nome: — José Gonçalves dos Santos. E me pergunto que lapso cruel o excluiu da lista dos que me querem bem para sempre. Eu o esqueci porque ele era um simples? Por causa do seu nobre, lindo, luminoso, esforço braçal? Porque era um franciscano maquinista?
Até que chegou a grande noite de ontem. Meus filhos Joffre e Nelsinho contam que o Zé Gonçalves estava numa euforia total. Pôs o melhor terno, a melhor camisa, a melhor gravata, o melhor sapato. Seus últimos momentos foram de uma felicidade absurda. Era já a morte e ninguém sabia. À meia-noite, todos vão dormir. E, naquele momento, já os bandidos que iam matá-lo estavam assaltando.
Chegaram num carrinho que ficou numa rua próxima à Silva Teles. A rua Agostinho Meneses é uma rua indefesa como toda a cidade (não há polícia, não há nada). Os sujeitos sobem para a varanda do Zé Gonçalves; cada um entra por uma janela. Toda a família dorme. Os meus filhos estão lá (foi seu José e podia ser Joffre ou Nelsinho). Segundo o repórter Amado Ribeiro, os três assaltantes deviam estar maconhados.
E, de repente, o barulho acordou seu José. Ou por outra: — não foi o barulho, foi a luz da lanterna. Seu José pula da cama. E, logo, a casa encheu-se de gritos. Meu filho Joffre também acorda. Atraca-se com o bandido que atravessava o seu quarto. Veio de outro quarto Nelsinho. É a luta na treva. O bandido se desprende dos meus filhos; e salta pela varanda. Lá embaixo, ergue-se e corre. Outro o acompanha.
Ninguém imaginava que um terceiro ficara. Seria o assassino de José Gonçalves e estava de dedo no gatilho. E, súbito, aparece atrás de José, Joffre e Nelsinho. Apontava a arma e ia atirar para fugir. Não foi sorte, não foi azar, não foi destino. Seriam meus filhos, um dos meus filhos. E seu José saltou na frente do revólver. Levou a bala no coração para salvar.
José Gonçalves dos Santos. Falando dos meus amigos, eu o esqueci. E ele morreu. Meu amigo, disse. Mas que fosse meu inimigo. Morreu para salvar meus filhos. Será enterrado hoje e para sempre amado por mim. De manhã bate o telefone. Lúcia atende. Era a notícia. Ela não me acorda. Vela meu sono e nem sinto a sua desesperada proteção. É a compadecida que chora antes de mim e por mim. Só quando acordo é que me conta, aos poucos, lágrima por lágrima.
José Gonçalves dos Santos. Outro dia, falando dos meus amigos eu o esqueci. “Meu amigo”, posso agora dizer, tardiamente. Mas que fosse inimigo. Morreu para salvar meus filhos. Vão enterrá-lo hoje. Será para sempre amado por mim.
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