domingo, 21 de junho de 2009

Capítulo 75 - A Menina sem Estrela

Já disse, e repeti não sei quantas vezes, que me iniciei no jornalismo aos treze anos. Na idade em que muitos tomavam carona de bonde, e outros raspavam pernas de passarinho a ca­nivete, tornei-me profissional. Ainda hoje me perguntam, no espanto da precocidade: — “Treze anos?”. Respondo, na minha vaidade feliz: — “Comecei na profissão de calças curtas”. Bem. De calças curtas, nem tanto. Mas quase.
Eis o que eu queria dizer: — naquela época, fazíamos, to­dos, jornalismo subdesenvolvido. O sujeito que apanhava, na caixa, um vale de cinco, dez mil-réis, para comer ou para be­ber, estufava o tórax, arredondava a barriga, como um nababo. Assim era a velha imprensa, famélica, não raro fétida, mas ro­mântica. Hoje, não. O jornal desenvolvido é um fato sólido, um fato que podemos apalpar, fisicamente.
Meses atrás, o Cláudio Mello e Sousa passou por mim, tumul­tuosamente, como um centauro. Chamei-o: — “Vem cá, rapaz”. Retrocedeu. Perguntei: — “Que pressa é essa?”. E ele: — “Vou a Roma”. Dizia isso com uma naturalidade não isenta de tédio. Ia a Roma como, outrora, o repórter ia, ali, ao Largo do Machado. O jornal o escalara para entrevistar não sei quem. E o Cláudio, abarrotado de dólares, ou liras, sei lá, estava com o pé no avião.
No antigo jornalismo, cena como a descrita era inviável. Roma só existia para o diretor. Outra figura inexeqüível, na im­prensa subdesenvolvida, seria o Otto Lara Resende. Em capítu­lo recente, descrevi a viagem do colega e amigo à Noruega. O Otto andou por lá e voltou furioso. Vagando por Oslo, e farto de tanto desenvolvimento, começou a ter saudades até da nos­sa mortalidade infantil. Mas era o tédio em dólar.
Mas como eu ia dizendo: — ao começar a minha carreira, conheci o último profissional fascinante. Refiro-me ao revisor. Hoje, ele anda por aí, de fronte alta, bem vestido, bem calçado. Ainda ontem, um revisor deu-me carona no seu Aero Willys suntuário. Em 1925, esse mesmo revisor andaria de taioba, se tan­to. Bem me lembro da primeira vez em que entrei numa revisão.
A redação sempre foi lírica, mesmo nas etapas mais sofri­das da história jornalística. Sim, o redator tinha uma estrutura prodigiosamente doce e cálida. A revisão, nunca, e repito: — a revisão era um pátio de milagres de ressentidos, frustrados, humilhados, deformados. Era um pessoal que se retorcia em danações impotentes.
E, de repente, descobri uma rútila exceção. Era um rapaz até bonito, de um bigodinho bem aparado, um olho claro e mei­go e uma permanente euforia de anjo. Usava muito terno bran­co, uma calça de vinco antológico e gravatas lindas. Os outros, todos os outros, eram portadores de não sei que lesões da al­ma, não sei que úlceras do sentimento. Ele, não. Tão fino, tão delicado e melífluo, que lembrava a afetação de um marquês de rancho, desses que usam peruca e sapatos de fivela. Até ho­je não se sabe quem estava por trás de sua elegância, de sua nu­trição e dos seus cosméticos. Seu ordenado de revisor não jus­tificava nem suas boas roupas, nem seus bons sentimentos.
E aqui vem a surpresa: — era um canalha, ou, para ser nu­mericamente exato: — o terceiro canalha que conheci na vida real. Já me referi com abundância aos dois primeiros. O cana­lha nº 1 foi o funcionário dos Correios e Telégrafos; o canalha nº 2, o que espiou o banho das meninas. O revisor seria o ca­nalha n° 3. Aprendi, no métier jornalístico, dramático ou sim­plesmente vital, que o pulha costuma ter uma fluorescente au­ra de simpatia.
Poderão perguntar: — que atos, ou palavras, ou sentimen­tos definiam o canalha? Como tal, vamos aos fatos. Um dia, fi­zeram no jornal um time de futebol. Em dez minutos arranja­mos titulares para cada posição. Entre parênteses, eu, filho do diretor, fui escalado na meia-direita. A dúvida era o goleiro. Co­mo se sabe, o goleiro há de ser, eternamente, uma figura vital. Todos podem errar, menos ele. Foi aí que, num rompante dra­mático, o canalha nº 3 apresentou-se como “a solução”.
Segundo o próprio, era ele um goleiro nato e mais do que isso, hereditário. Já o seu pai fora, na posição, uma autêntica bastilha. E o canalha n° 3 afirmava os seus méritos com um descaro tão radiante que ninguém duvidou. Lembro-me do nosso primeiro treino em conjunto. Curioso! Havia entre o nosso jo­go e o nosso salário uma relação nítida e taxativa. Era um fute­bol triste, lívido, depressivo. Vejo um córner batido por um re­pórter de polícia. Chutou como se a pelada fosse uma ópera e como se ele encarnasse o Alfredo da Traviata.
Só havia em campo um ser dionisíaco: — o revisor. Foi, debaixo dos três paus, uma maravilha elástica. Defendeu tudo. Numa das vezes, fiquei, com o élan dos meus treze anos (já fi­zera catorze), fiquei sozinho, vejam bem, cara a cara com o canalha nº 3. Enchi o pé. A bola subiu e se enfiou na última gave­ta. E todos vimos o goleiro tornar-se leve, alado, incorpóreo. Com a ponta dos dedos, transformou em córner o gol infalível.
No fim, quase o carregamos na bandeja. Todavia, era ape­nas um treino. No domingo seguinte, houve um jogo de verda­de contra não sei que time. Resumindo, direi que apanhamos de 10 x 5. O revisor engolira, exatamente, dez frangos. No último gol, a bola ia saindo; o cínico curvou-se, apanhou a mãos ambas a redonda e a pôs nas redes como no basquete.
No nosso vestiário havia um espanto de catástrofe. Eis se­não quando o canalha nº 3 começa a berrar: — “Me quebrem a cara! Me quebrem a cara! Eu sou um venal!”. Dava murros no próprio peito: — “Eu me vendi!”. Antes de tomar o primei­ro tapa, levou uma cusparada na cara. Sem enxugar, na face, a saliva alheia, insistia: — “Mereço mais! Mereço mais!”. E só sossegou quando apanhou a surra. Debaixo dos pescoções, ainda pedia: — “Mais! Mais!”.
Passou. No outro domingo há o segundo jogo. Chamam o canalha n° 3. Disseram: — “Se você papar algum frango, já sa­be: — depois do jogo, tu levas outra surra!”. O revisor olha pa­ra os lados, toma coragem e arrisca: — “Tem que ser depois do jogo? Não podia ser agora? Vocês não podiam bater antes do jogo?”. E teimava de olho rútilo e lábio trêmulo: — “Eu que­ro antes, antes!”. Crispava as mãos, no apelo. Tudo aconteceu numa progressão fulminante: — houve um primeiro tapa e, lo­go, por imitação, outros, e outros. Depois do espancamento, entramos em campo. O goleiro caminhava, de fronte alta, o olho incandescente, como um profeta. Agarrou tudo, fez defesas im­possíveis. E só então descobri, com secreto deslumbramento, que estava, ali, o perfeito, irretocável canalha n° 3.

Nenhum comentário: