O que nós chamamos infância é a soma das nossas descobertas (isso é óbvio e novamente me confrange estar aqui proclamando o óbvio). Lembro-me do meu assombro quando ouvi alguém chamar alguém de canalha. Já referi o episódio: — foi um bate-boca entre sogra e genro. E, súbito, a velha o xinga de canalha. Pela primeiríssima vez, eu ouvia a palavra. E, garoto, tremi em cima dos pés. Acho que o meu espanto iluminou a sala.
Sempre que um menino ou mesmo um adulto vê o nascimento de uma palavra, seu horizonte vital se torna mais denso, elástico, luminoso. A descoberta do “canalha” mudou, amplificou a minha realidade. Tinha meus seis, sete anos. E, durante meses e anos, aquele som andou comigo. E, depois, viriam outras descobertas também prodigiosas.
Outra lembrança que me persegue até hoje. Era em 1926, na rua Joaquim Nabuco. Morávamos numa casa branca que me parecia um palácio (e como fui sempre um pobre vocacional, o nosso luxo me parecia lúgubre e profético. Lá perdemos Roberto e meu pai). Estou pensando no jardim. Vejo o portão central, com dois ciprestes, que ali se erguiam como dois irmãos tristes.
Mas, se havia um jardim, precisávamos de um jardineiro. Quando nos mudamos, alguém indicou um português que trabalhava na vizinhança. Veio o jardineiro luso, de bigodões, camisa-de-meia listrada, tamancos e uma pupila verde e diáfana. Queria combinar o serviço. Minha mãe dizia: — “Vem um dia por semana”. Com as duas mãos, o português segurava o chapéu. Minha mãe pergunta: — “Não prefere sábado?”.
Sábado, sábado. O outro, que ouvia e falava de olhos baixos, levantou a vista. Disse apenas: — “O sábado é uma ilusão”. E parou. “O sábado é uma ilusão” e nada mais. Minha mãe não ouviu direito ou, se ouviu, não entendeu. Perguntou: “Como?”. E o outro, numa certeza cruel: — “O sábado é uma ilusão”.
Ninguém jamais dissera isso de um sábado. Nem dirá. Portanto, eu vi, ali, o nascimento de uma frase. Nascimento e morte, quem sabe? Talvez nem o próprio português repetisse mais que o sábado é uma ilusão. Ficou então combinado que ele viria, cada sexta-feira, fazer o serviço.
Fosse como fosse, a frase me pôs diante do desconhecido, do inédito, do jamais desconfiado. Lembro-me de que, durante semanas, meses, conversei com o homem. Provocava-o. Queria que ele repetisse a frase. Nada. Fiz-lhe a pergunta frontal: — “Você não gosta de trabalhar nos sábados?”. Nunca vi um velho de olhar tão límpido. Respondeu: — “Tanto faz”. Até que, num começo de angústia, eu próprio disse: — “O sábado é uma ilusão”. Nem assim respondeu. A frase resvalou por ele, sem contudo feri-lo. Continuou a muda tarefa, misturando estrume.
Ainda hei de fazer uma peça, ou um romance, e lhe darei por título: — O sábado é uma ilusão. E, assim, através dos tempos, criança, adolescente, homem feito, velho, tenho acumulado minhas descobertas. Hoje, reconheço que tenho uma dívida séria com várias frases fundamentais. Fiz peças de uma frase. E, aqui, entra em cena o meu amigo Otto Lara Resende.
Nem preciso falar do seu brilho verbal. Ao chegar, há pouco, da Noruega, ele foi inexcedível. Contou a viagem (nem um mísero bacalhau o reconhecera em Oslo); e nos deslumbrou com o seu gênio histriônico. Era o Carlitos, fazendo com Buster Keaton os números de show em Luzes da ribalta. Só que falta a Charles Chaplin a molecagem mágica do Otto e o supremo virtuosismo da frase.
Mas preciso contar justamente a história de uma frase do meu amigo. Volto ao tempo em que Jânio Quadros era nosso presidente. Como se cavou entre nós e Jânio uma distância infinita, espectral. Foi, se não me engano, o Zé Aparecido que falou ao então presidente sobre o Otto. E este é chamado a Brasília.
Imagino que a conversa há de ter sido algo assim como uma página de Os Maias. Jânio queria o Otto de qualquer maneira. Houve um momento em que, pondo a mão no joelho do Otto, e aproximando a cara, disse: — “Tenho duas fraquezas: — mulher bonita e homem inteligente”. Ao dizer isso, Jânio parecia uma paródia de si mesmo. Era como se estivesse imitando a própria voz, o próprio riso, a própria inflexão. Tinha um olho parado, outro móvel. Depois de uma hora, ou duas, sei lá, de conversa, o Otto declara que vai pensar. Mas estava disposto a não ser assessor da presidência, nem que o laçassem no meio da rua.
Na volta para Minas, parou em Belo Horizonte. Foi seu mal, ou seu bem, não sei. Parou lá e começou a fazer descobertas. Sempre que vai a Minas, ele volta menos mineiro. E quando entrava numa casa, era recebido com uma saraivada de tias. Coincidiu que chovesse; e elas pareciam pingar das goteiras. Tias inéditas, jamais suspeitadas. E o Otto, vagando por entre tias, começou a achar tudo muito parecido com um pesadelo humorístico.
Agora vem a coincidência. Por motivos teatrais, que não vêm ao caso, tive de ir a Belo Horizonte; e lá o encontrei. O Otto exalava depressão por todas as esquinas de Belo Horizonte. Ah, esquecia-me de um dado capital: — a sua Mercedes-Benz, que ele trouxera da Europa. Já percebera que o carro suntuário deflagrara o ressentimento de toda uma cidade. Afinal, voltamos. Claro que eu não ia perder a nababesca carona de Mercedes.
E foi então, no meio da viagem, que assisti ao nascimento de uma de suas frases mais famosas. Não sei se ele a improvisou, ou se foi uma inspiração fulminante e abençoada. Só sei que, de repente, Otto vira-se para mim e diz: — “O mineiro só é solidário no câncer”. Não direi que ele pôs mais sociologia numa frase do que Euclides nas seiscentas páginas de Os sertões. Mas aquilo se cravou em mim para sempre. Ainda comentei, gravemente: “Bonito”. Quando entramos no Rio, eu tinha na cabeça o título de minha nova peça: — Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária.
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