segunda-feira, 22 de junho de 2009

Capítulo 76 - A Menina sem Estrela

O que nós chamamos infância é a soma das nossas desco­bertas (isso é óbvio e novamente me confrange estar aqui pro­clamando o óbvio). Lembro-me do meu assombro quando ou­vi alguém chamar alguém de canalha. Já referi o episódio: — foi um bate-boca entre sogra e genro. E, súbito, a velha o xinga de canalha. Pela primeiríssima vez, eu ouvia a palavra. E, garo­to, tremi em cima dos pés. Acho que o meu espanto iluminou a sala.
Sempre que um menino ou mesmo um adulto vê o nasci­mento de uma palavra, seu horizonte vital se torna mais denso, elástico, luminoso. A descoberta do “canalha” mudou, ampli­ficou a minha realidade. Tinha meus seis, sete anos. E, durante meses e anos, aquele som andou comigo. E, depois, viriam ou­tras descobertas também prodigiosas.
Outra lembrança que me persegue até hoje. Era em 1926, na rua Joaquim Nabuco. Morávamos numa casa branca que me parecia um palácio (e como fui sempre um pobre vocacional, o nosso luxo me parecia lúgubre e profético. Lá perdemos Ro­berto e meu pai). Estou pensando no jardim. Vejo o portão cen­tral, com dois ciprestes, que ali se erguiam como dois irmãos tristes.
Mas, se havia um jardim, precisávamos de um jardineiro. Quando nos mudamos, alguém indicou um português que tra­balhava na vizinhança. Veio o jardineiro luso, de bigodões, camisa-de-meia listrada, tamancos e uma pupila verde e diáfana. Queria combinar o serviço. Minha mãe dizia: — “Vem um dia por semana”. Com as duas mãos, o português segurava o chapéu. Minha mãe pergunta: — “Não prefere sábado?”.
Sábado, sábado. O outro, que ouvia e falava de olhos bai­xos, levantou a vista. Disse apenas: — “O sábado é uma ilusão”. E parou. “O sábado é uma ilusão” e nada mais. Minha mãe não ouviu direito ou, se ouviu, não entendeu. Perguntou: “Como?”. E o outro, numa certeza cruel: — “O sábado é uma ilusão”.
Ninguém jamais dissera isso de um sábado. Nem dirá. Por­tanto, eu vi, ali, o nascimento de uma frase. Nascimento e mor­te, quem sabe? Talvez nem o próprio português repetisse mais que o sábado é uma ilusão. Ficou então combinado que ele vi­ria, cada sexta-feira, fazer o serviço.
Fosse como fosse, a frase me pôs diante do desconhecido, do inédito, do jamais desconfiado. Lembro-me de que, duran­te semanas, meses, conversei com o homem. Provocava-o. Que­ria que ele repetisse a frase. Nada. Fiz-lhe a pergunta frontal: — “Você não gosta de trabalhar nos sábados?”. Nunca vi um ve­lho de olhar tão límpido. Respondeu: — “Tanto faz”. Até que, num começo de angústia, eu próprio disse: — “O sábado é uma ilusão”. Nem assim respondeu. A frase resvalou por ele, sem contudo feri-lo. Continuou a muda tarefa, misturando estrume.
Ainda hei de fazer uma peça, ou um romance, e lhe darei por título: — O sábado é uma ilusão. E, assim, através dos tem­pos, criança, adolescente, homem feito, velho, tenho acumulado minhas descobertas. Hoje, reconheço que tenho uma dívida séria com várias frases fundamentais. Fiz peças de uma frase. E, aqui, entra em cena o meu amigo Otto Lara Resende.
Nem preciso falar do seu brilho verbal. Ao chegar, há pou­co, da Noruega, ele foi inexcedível. Contou a viagem (nem um mísero bacalhau o reconhecera em Oslo); e nos deslumbrou com o seu gênio histriônico. Era o Carlitos, fazendo com Buster Keaton os números de show em Luzes da ribalta. Só que falta a Charles Chaplin a molecagem mágica do Otto e o supremo vir­tuosismo da frase.
Mas preciso contar justamente a história de uma frase do meu amigo. Volto ao tempo em que Jânio Quadros era nosso presidente. Como se cavou entre nós e Jânio uma distância in­finita, espectral. Foi, se não me engano, o Zé Aparecido que fa­lou ao então presidente sobre o Otto. E este é chamado a Brasília.
Imagino que a conversa há de ter sido algo assim como uma página de Os Maias. Jânio queria o Otto de qualquer maneira. Houve um momento em que, pondo a mão no joelho do Otto, e aproximando a cara, disse: — “Tenho duas fraquezas: — mu­lher bonita e homem inteligente”. Ao dizer isso, Jânio parecia uma paródia de si mesmo. Era como se estivesse imitando a pró­pria voz, o próprio riso, a própria inflexão. Tinha um olho pa­rado, outro móvel. Depois de uma hora, ou duas, sei lá, de con­versa, o Otto declara que vai pensar. Mas estava disposto a não ser assessor da presidência, nem que o laçassem no meio da rua.
Na volta para Minas, parou em Belo Horizonte. Foi seu mal, ou seu bem, não sei. Parou lá e começou a fazer descobertas. Sempre que vai a Minas, ele volta menos mineiro. E quando en­trava numa casa, era recebido com uma saraivada de tias. Coin­cidiu que chovesse; e elas pareciam pingar das goteiras. Tias iné­ditas, jamais suspeitadas. E o Otto, vagando por entre tias, co­meçou a achar tudo muito parecido com um pesadelo humo­rístico.
Agora vem a coincidência. Por motivos teatrais, que não vêm ao caso, tive de ir a Belo Horizonte; e lá o encontrei. O Otto exalava depressão por todas as esquinas de Belo Horizon­te. Ah, esquecia-me de um dado capital: — a sua Mercedes-Benz, que ele trouxera da Europa. Já percebera que o carro suntuário deflagrara o ressentimento de toda uma cidade. Afinal, volta­mos. Claro que eu não ia perder a nababesca carona de Merce­des.
E foi então, no meio da viagem, que assisti ao nascimento de uma de suas frases mais famosas. Não sei se ele a improvi­sou, ou se foi uma inspiração fulminante e abençoada. Só sei que, de repente, Otto vira-se para mim e diz: — “O mineiro só é solidário no câncer”. Não direi que ele pôs mais sociologia numa frase do que Euclides nas seiscentas páginas de Os ser­tões. Mas aquilo se cravou em mim para sempre. Ainda comen­tei, gravemente: “Bonito”. Quando entramos no Rio, eu tinha na cabeça o título de minha nova peça: — Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária.

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