terça-feira, 23 de junho de 2009

Capítulo 77 - A Menina sem Estrela

De vez em quando, vem Hollywood e lança uma nova e apaixonante versão de Moby Dick. E, então, platéias de todo o mundo, de Cingapura a Londres, de Paris a Istambul, revêem a história prodigiosa da baleia branca. Bem me lembro da últi­ma vez em que a vi. E, de quando em quando, sonho com a cena final, de uma beleza desesperadora.
Como se sabe, o comandante mutilado perseguia Moby Dick, por todos os mares, com a demência do seu ódio. A baleia alva de sol e de lua era o sonho de sua carne e de sua alma. Não a es­quecia nunca, porque o ódio é, sabemos, muito mais voluptuo­so do que o amor. Até que, um dia, os dois se encontram. Tudo aconteceu numa progressão fulminante de catástrofe.
Eu estava na platéia, crispado na platéia, quando o arpão fere Moby Dick. A baleia se torce, e retorce, em estertores des­lumbrantes. Quando cai, cava ela mesma o seu abismo de espu­mas delirantes. O capitão possesso abre a boca, mas o grito mor­re no fundo do ser. E, súbito, é arrastado também pelas cordas do arpão. A última imagem do filme mostra o mutilado crava­do no dorso da fera. E lá está o olho de Moby Dick, enorme de espanto e mistério.
Eis o que eu queria dizer: — o olho da baleia encantada levou-me de volta à Aldeia Campista. Era, de novo, a minha in­fância profunda. Como se sabe, qualquer rua tem a diversidade de um elenco de circo. Há de tudo nos seus portões, janelas, quartos, salas, alcovas e varandas. Assim era a rua Alegre. Tinha adúlteras, suicidas, funcionários, arquitetos, santos e canalhas. Como se não bastassem os já citados, morava lá, também, um bandeirinha de futebol.
E o olho cruel de Moby Dick lembrou-me, justamente, do bandeirinha. Ah, como era romântico o velho futebol. Por exem­plo: — o bandeirinha antigo. Hoje, a função está profissionali­zada. E ele deixou de ser um marginal dos clássicos e das pela­das. Na sua vida, alternam o apito e a bandeira. Naquele tempo, não. Ainda não começara a sua ascensão social e econômica.
No fundo da rua, quase esquina de Maxwell, morava um rapaz admirável. Digo admirável porque era bom pai, bom ma­rido, bom filho, bom vizinho. De mais a mais, tinha o gênio do cumprimento. Tirava o chapéu até para desconhecido, até para inimigo. Pois bem. E o nosso herói cultivava uma utopia na vi­da, uma desesperada utopia: — ser bandeirinha de futebol.
Por que escolhera uma função tão humilde, tão irrelevante, só comparável à dos gandulas? Ninguém sabe. Só uma resposta vinda do Alto poderia desvendar o mistério de tamanha vocação. Alta madrugada, ele acordava, banhado em suor; agarrava a mu­lher e a sacudia: —’’ Fulana, ainda hei de ser bandeirinha!’’. Dizia isso de fronte alta como um fanático, como um vidente.
Mas o tempo ia passando e nada. Lá estava a função à sua espera e ninguém o convocava. Pediu a todos os paredros da época. E quem o visse tão empenhado havia de imaginar que o homem estava cavando algum ministério. O sonho já contagiara a mulher, filhos, criada, vizinhos, demais parentes e for­necedores. Perguntavam: — “Quando é o grande dia?”. Exa­lando frustração e impotência, gemia: — “Sei lá, sei lá”.
Um dia, entra em casa, aos berros, atropelando mesas e cadeiras. Anunciou: “Domingo, domingo!”. Era tal a sua exalta­ção que o fazem sentar-se, dão-lhe água da moringa. Por coinci­dência, eu estava lá, brincando com o filho do casal. E, ainda ofegante, contou tudo: — ia ser bandeirinha, no domingo se­guinte, e no jogo Mangueira x Vila. A mulher fizera promessas, simpatia, o diabo. E, agora, atendida nas suas preces, desatou a chorar. Depois, abaixou-se e enxugou a coriza na própria saia.
Note-se que o jogo Mangueira x Vila deflagrava, na época, ódios shakespearianos. E o patético da partida valorizava e dra­matizava a estréia do bandeirinha. A feliz esposa, transida de vai­dade, era invejada pelas irmãs, cunhadas e vizinhas. E eu me lembro do rapaz, chegando do emprego, olhado por toda uma rua. Domingo, bem cedinho, lá estava eu na casa do bandeiri­nha. Ele passava alvaiade no sapato de tênis. Fiquei, de longe, olhando o dono da casa, e o lambendo com a vista.
Comigo presente, houve o almoço às dez e meia da manhã. Lembro-me de que, comendo um ensopadinho de abóbora, di­zia o herói: — “Faço questão que meu filho veja!”. O garoto, meu amigo, de sete anos, baixou a vista no prato. E a mulher, encantada, tinha a graça plena da lua-de-mel. Mais bonito foi quando saímos, todos, com o homem na frente. Lá fui também. Toda a família o acompanhava. Transfigurado, o bandeirinha dava adeus para as escadas.
Não sei se disse que a mulher do bandeira era magrinha. Pelo contrário, ou melhor: — talvez não fosse propriamente gor­da, mas tinha cadeiras abundantes. Era a época em que uma se­nhora, para atravessar uma porta, tinha que se pôr de perfil. Ao lado do marido, porém, ela parecia mais leve, miúda, de qua­dris menos pesados e menos fecundos. Lembro-me do momento em que chegamos ao campo apinhado.
Enchente no campo, bandeiras, bombas, e o clamor de duas torcidas homicidas. Mulheres de leque, homens de ventarola. Ficamos numa extremidade do campo, unidos, solidários, crispados. E começa o jogo. Ao meu lado, o garoto gritava: — “Pa­pai, papai”. No atual Estádio Mário Filho, há uma distância infi­nita, milenar, entre a multidão e o jogo, entre a multidão e o craque. Outrora, o torcedor estava cara a cara com o jogo, com os times, juiz e bandeirinhas. E quando o nosso bandeirinha veio apanhar a bola, junto à cerca, levou uma cusparada na testa (de­via ser na face e foi na testa). Mas não sabíamos que era pouco.
O martírio veio depois. Eu me lembro de tudo. Começou a lavrar o ódio entre os dois times. E, súbito, o nosso bandeiri­nha erra numa marcação. O resto aconteceu juntinho de nós. Um latagão, não sei se do Mangueira, do Vila, veio correndo. Vi a mão aberta e, logo, a bofetada. A bofetada passaria. Pior foi o som. Se não fosse o som, não existiria ofensa, vergonha, dano moral. Uma bofetada muda não humilha ninguém. E, de repente, foi tudo silêncio. Só se ouvia a bofetada. Não me es­quecerei, nunca, nunca, do olho do bandeirinha. Era o mesmo olho de espanto que eu vi, quarenta anos depois, na baleia feri­da. Assim olham as baleias agonizantes, assim olham os bandei­rinhas esbofeteados.

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