De vez em quando, vem Hollywood e lança uma nova e apaixonante versão de Moby Dick. E, então, platéias de todo o mundo, de Cingapura a Londres, de Paris a Istambul, revêem a história prodigiosa da baleia branca. Bem me lembro da última vez em que a vi. E, de quando em quando, sonho com a cena final, de uma beleza desesperadora.
Como se sabe, o comandante mutilado perseguia Moby Dick, por todos os mares, com a demência do seu ódio. A baleia alva de sol e de lua era o sonho de sua carne e de sua alma. Não a esquecia nunca, porque o ódio é, sabemos, muito mais voluptuoso do que o amor. Até que, um dia, os dois se encontram. Tudo aconteceu numa progressão fulminante de catástrofe.
Eu estava na platéia, crispado na platéia, quando o arpão fere Moby Dick. A baleia se torce, e retorce, em estertores deslumbrantes. Quando cai, cava ela mesma o seu abismo de espumas delirantes. O capitão possesso abre a boca, mas o grito morre no fundo do ser. E, súbito, é arrastado também pelas cordas do arpão. A última imagem do filme mostra o mutilado cravado no dorso da fera. E lá está o olho de Moby Dick, enorme de espanto e mistério.
Eis o que eu queria dizer: — o olho da baleia encantada levou-me de volta à Aldeia Campista. Era, de novo, a minha infância profunda. Como se sabe, qualquer rua tem a diversidade de um elenco de circo. Há de tudo nos seus portões, janelas, quartos, salas, alcovas e varandas. Assim era a rua Alegre. Tinha adúlteras, suicidas, funcionários, arquitetos, santos e canalhas. Como se não bastassem os já citados, morava lá, também, um bandeirinha de futebol.
E o olho cruel de Moby Dick lembrou-me, justamente, do bandeirinha. Ah, como era romântico o velho futebol. Por exemplo: — o bandeirinha antigo. Hoje, a função está profissionalizada. E ele deixou de ser um marginal dos clássicos e das peladas. Na sua vida, alternam o apito e a bandeira. Naquele tempo, não. Ainda não começara a sua ascensão social e econômica.
No fundo da rua, quase esquina de Maxwell, morava um rapaz admirável. Digo admirável porque era bom pai, bom marido, bom filho, bom vizinho. De mais a mais, tinha o gênio do cumprimento. Tirava o chapéu até para desconhecido, até para inimigo. Pois bem. E o nosso herói cultivava uma utopia na vida, uma desesperada utopia: — ser bandeirinha de futebol.
Por que escolhera uma função tão humilde, tão irrelevante, só comparável à dos gandulas? Ninguém sabe. Só uma resposta vinda do Alto poderia desvendar o mistério de tamanha vocação. Alta madrugada, ele acordava, banhado em suor; agarrava a mulher e a sacudia: —’’ Fulana, ainda hei de ser bandeirinha!’’. Dizia isso de fronte alta como um fanático, como um vidente.
Mas o tempo ia passando e nada. Lá estava a função à sua espera e ninguém o convocava. Pediu a todos os paredros da época. E quem o visse tão empenhado havia de imaginar que o homem estava cavando algum ministério. O sonho já contagiara a mulher, filhos, criada, vizinhos, demais parentes e fornecedores. Perguntavam: — “Quando é o grande dia?”. Exalando frustração e impotência, gemia: — “Sei lá, sei lá”.
Um dia, entra em casa, aos berros, atropelando mesas e cadeiras. Anunciou: “Domingo, domingo!”. Era tal a sua exaltação que o fazem sentar-se, dão-lhe água da moringa. Por coincidência, eu estava lá, brincando com o filho do casal. E, ainda ofegante, contou tudo: — ia ser bandeirinha, no domingo seguinte, e no jogo Mangueira x Vila. A mulher fizera promessas, simpatia, o diabo. E, agora, atendida nas suas preces, desatou a chorar. Depois, abaixou-se e enxugou a coriza na própria saia.
Note-se que o jogo Mangueira x Vila deflagrava, na época, ódios shakespearianos. E o patético da partida valorizava e dramatizava a estréia do bandeirinha. A feliz esposa, transida de vaidade, era invejada pelas irmãs, cunhadas e vizinhas. E eu me lembro do rapaz, chegando do emprego, olhado por toda uma rua. Domingo, bem cedinho, lá estava eu na casa do bandeirinha. Ele passava alvaiade no sapato de tênis. Fiquei, de longe, olhando o dono da casa, e o lambendo com a vista.
Comigo presente, houve o almoço às dez e meia da manhã. Lembro-me de que, comendo um ensopadinho de abóbora, dizia o herói: — “Faço questão que meu filho veja!”. O garoto, meu amigo, de sete anos, baixou a vista no prato. E a mulher, encantada, tinha a graça plena da lua-de-mel. Mais bonito foi quando saímos, todos, com o homem na frente. Lá fui também. Toda a família o acompanhava. Transfigurado, o bandeirinha dava adeus para as escadas.
Não sei se disse que a mulher do bandeira era magrinha. Pelo contrário, ou melhor: — talvez não fosse propriamente gorda, mas tinha cadeiras abundantes. Era a época em que uma senhora, para atravessar uma porta, tinha que se pôr de perfil. Ao lado do marido, porém, ela parecia mais leve, miúda, de quadris menos pesados e menos fecundos. Lembro-me do momento em que chegamos ao campo apinhado.
Enchente no campo, bandeiras, bombas, e o clamor de duas torcidas homicidas. Mulheres de leque, homens de ventarola. Ficamos numa extremidade do campo, unidos, solidários, crispados. E começa o jogo. Ao meu lado, o garoto gritava: — “Papai, papai”. No atual Estádio Mário Filho, há uma distância infinita, milenar, entre a multidão e o jogo, entre a multidão e o craque. Outrora, o torcedor estava cara a cara com o jogo, com os times, juiz e bandeirinhas. E quando o nosso bandeirinha veio apanhar a bola, junto à cerca, levou uma cusparada na testa (devia ser na face e foi na testa). Mas não sabíamos que era pouco.
O martírio veio depois. Eu me lembro de tudo. Começou a lavrar o ódio entre os dois times. E, súbito, o nosso bandeirinha erra numa marcação. O resto aconteceu juntinho de nós. Um latagão, não sei se do Mangueira, do Vila, veio correndo. Vi a mão aberta e, logo, a bofetada. A bofetada passaria. Pior foi o som. Se não fosse o som, não existiria ofensa, vergonha, dano moral. Uma bofetada muda não humilha ninguém. E, de repente, foi tudo silêncio. Só se ouvia a bofetada. Não me esquecerei, nunca, nunca, do olho do bandeirinha. Era o mesmo olho de espanto que eu vi, quarenta anos depois, na baleia ferida. Assim olham as baleias agonizantes, assim olham os bandeirinhas esbofeteados.
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