quarta-feira, 24 de junho de 2009

Capítulo 78 - A Menina sem Estrela

Para mim, há uma nítida relação entre a adúltera e o suicida. Aquela que trai e aquele que se mata estão fazendo um julgamento do mundo. Agora mesmo, enquanto bato estas notas, penso nas infiéis que conheci na minha infância. Deixo de lado os suicidas. Eis o que queria dizer: — há, na minha memória, todo um patético, todo um crispado elenco de adúlteras e maridos enganados.
Dirá alguém que, em nosso tempo, o adultério é o que há de mais intranscendente. Os maridos só matam na primeira página de O Dia e da Luta Democrática. E essa falta de risco, mistério, desafio e fatalismo faz da infidelidade uma pobre e árida experiência de vida. Dizia certa senhora com um desesperado impudor: — “Não sei qual é mais chato, se meu marido, se meu amante”.
Todavia, na rua Alegre, a adúltera era um dos meus espantos. Quando uma mulher traía, eu sofria como se fosse o enganado, como se fosse o traído. E me lembro de uma menina, em lua-de-mel, que veio morar na rua dos Artistas. Era o que se chama jeitosa de corpo e de rosto. Entre parênteses, foi uma paixão dos meus sete anos. E uma coisa me fascinara na garota: — o seu estrabismo.
Era, sim, estrábica. Anos depois, o mundo conheceu e se enamorou de uma estrela norte-americana: — Norma Shearer. Foi o amor de todo o Brasil. E Norma Shearer tinha, justamente, um pungente estrabismo promocional. Tivesse os olhos normais, e seria uma qualquer. Mas Hollywood descobriu que havia no seu olhar torto um apelo erótico válido em todos os idiomas e, por isso, só por isso, deu-lhe uma obsessiva promoção.
A recém-casada foi, em termos naturalmente modestos, a Norma Shearer antes da Norma Shearer. Mas como ia dizendo: — no fim de um mês, dois, solteiros, casados e até velhos tomaram-se de amores pela estrábica. Passei, quantas e quantas vezes, pela sua porta. Na humildade dos meus sete anos, eu achava que ninguém jamais gostaria de mim. Não seria amado nunca, por nenhuma menina, nenhuma mulher. Mas isso não me fazia sofrer, Eu começava a aprender que ninguém se compara à mulher amada e não possuída.
Como era o marido da estrábica? Não sei. Eis a verdade, não sei. Não me lembro de um gesto, um sorriso, um olhar, do pobre-diabo. Bem. Morava na rua Pereira Nunes, e numa casa de caramanchão (só me lembro do caramanchão), um joalheiro, com feérica loja na cidade. Era riquíssimo, diziam. Lembro-me de que um dos seus filhos andava de sapato de borracha. E o sapato de borracha foi uma das invejas e, ao mesmo tempo, uma das utopias da minha infância.
E o joalheiro, senhor já, grisalho e obeso, apaixonou-se pela estrábica. “Obeso”, disse eu. Era célebre, no bairro, o seu apetite. Mandava comprar caranguejos em Ramos, ou em Meriti, e os devorava, na mesa, com sombrio élan. Não sei se os caranguejos explicavam a barriga, não sei. Mas o homem estava amando e toda vizinhança acompanhou maravilhada o romance. De vez em quando, o joalheiro bebia demais. E, então, berrava: — “Dinheiro há! Dinheiro há!”. E, outras vezes, num rompante de ébrio, arrancava do bolso e atirava para o ar cédulas de cem, duzentos mil-réis, quinhentos, um conto.
Lembro-me de uma tarde em que passei, mais uma vez, pela porta da bem-amada. Não vi nada, ou por outra: — ver as grades, o pé do tinhorão, as janelas e o mato do jardim, tudo isso era amor. Passo por lá e, na esquina, vejo o joalheiro. Chama: — “Vem cá, menino, vem cá”. Estou diante dele, esperando. O outro tira do bolso uma moeda grande de quatrocentos réis. Começa: — “Quer ganhar isso aqui?”. E diz o resto: — “Vai naquela casa, ali, está vendo? Aquela. Dá isso à moça. Diz que fui eu que mandei”.
(O meu amigo Alfredo C. Machado reclama que, por vezes, certas lembranças minhas parecem A vida como ela é... . Eu me justifico facilmente. Eis a verdade: todos os sonhos da carne e da alma estão em A vida como ela é....)
Embolsei os quatrocentos réis e fui, com o coração aos arrancos, bater na casa da estrábica. Levava um embrulhinho, enrolado com cordão dourado. Depois se soube que era uma caixinha de veludo, com um colar de pérolas. Não imitação, mas verdadeiras, pérolas verdadeiras. Bati e a própria abriu a porta. Disse-lhe: — “Aquele moço mandou”. Entreguei o embrulhinho e saí correndo em desespero.
O joalheiro ainda me chamou. Com uma sensação de crime, atravessei correndo a rua, e fui me enfiar em casa, numa dessas angústias totais. Eu me sentia culpado e não sabia de quê. Eis o que aconteceu: a estrábica abriu o embrulhinho, viu as pérolas e leu o bilhetinho que ia junto. De longe, o joalheiro tirava-lhe o chapéu. E, então, a menina sai de casa, vem falar com o homem. Ele não tem tempo de dizer uma palavra. Dois ou três que iam passando, e senhoras das janelas vizinhas, viram tudo. Usando o colar, como um relho, a menina bateu-lhe na cara. E não parou. Sem um gesto, sem uma palavra, ele tomou aquela surra de pérolas.
Depois, num passo firme, o perfil empinado, e mais estrábica do que nunca, ela voltou para casa. E, então, o joalheiro põe-se de cócoras na calçada e, penosamente, com uma angústia de míope, começa a catar as pérolas espalhadas. A história devia acabar aí e eu daria tudo para que acabasse aí. Mas continuou. No dia seguinte, a menina junta um grupo de vizinhas no portão e conta, de rosto duro: — “Meu marido me chamou de burra porque eu não aceitei o colar. Quero que vocês sejam testemunhas. Me chamou de burra”. Dois ou três dias depois, apareceu de colar no pescoço. Chamou as mesmas vizinhas e gabava as pérolas: — “Verdadeiras! Verdadeiras!”. Era o começo. Logo a rua começou a chamá-la de cachorra.

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