quinta-feira, 2 de julho de 2009

DESASTRE DE TREM

Quando se conheceram ele foi franco:
— Eu sou muito bom, mas tenho um defeito.
— Qual?
Ele pareceu vacilar antes de responder:
— Sou ciumento.
E o era, de fato. Um ciumento sóbrio, que não dava a per­ceber, mas que se mordia por dentro. Por isso mesmo, por causa desse temperamento, é que não se casara nunca. Explicava aos amigos: — “Eu me conheço. Sei o gênio que tenho”. Comple­tara quarenta e cinco anos em solidão. Dir-se-ia um solteirão so­lícito e irremediável. Mas, um dia, foi a uma festa e lá conheceu Valquíria, jovem viúva de vinte e dois anos. As amigas da pe­quena cochichavam, entre si: “Vinte e dois, fora os que mamou”. Mas o fato é que aparentava essa idade ou pouco mais. E, conversa vai, conversa vem, houve um grande interesse, pro­fundo e recíproco. Valquíria era baiana e morena, muito viva, muito alegre. Dias depois, Antoniel dizia: “Se não fosse a dife­rença de idade...”. O fato é que estava apaixonado e, pela pri­meira vez na vida, Valquíria parecia animá-lo com olhares. Olha­res, sorrisos e uma série de pequenas atenções, fúteis, mas sig­nificativas. E foi então que Antoniel revelou que era ciumento e perguntou se ela não tinha medo.
— Medo? — Estranhou. — Mas se eu até gosto!
— Sério?
— Natural!
Casaram-se seis meses depois. Pelo gosto de Antoniel, te­ria sido uma cerimônia muito simples e íntima. Confessava: “Sou contra exibição, contra carnaval”. Valquíria, porém, exigiu pom­pa, carro enfeitado com flores de laranjeira e festa em casa. Antoniel submeteu-se com bom humor: “Você é quem manda, meu anjo”.

O CASAL FELIZ

No fundo, porém, e sem nada dizer à esposa, Antoniel fa­zia comentário interior: “Diferença de idade é espeto”. Era es­se o seu grande medo. Os dias, as semanas, os meses voavam, porém, sem que nenhuma desinteligência surgisse entre os dois. Valquíria não se cansava de espalhar: “Eu sempre gostei de ho­mem muito mais velho do que eu”. Na intimidade, com o ma­rido, uma de suas distrações prediletas era procurar cabelos bran­cos na cabeça de Antoniel. Fazia essa pesquisa com verdadeiro deleite, e exclamava:
— Achei mais um!
Arrancava-o e fazia exibição, com uma alegria de menina, e ainda mexia com ele:
— Estás ficando velhinho!
O esposo ria também, com um fundo de melancolia. Fazia cálculos: “Quando Valquíria tiver trinta e cinco, eu terei cin­qüenta e oito”. Essa aritmética de anos o amargurava. Conti­nuava o seu exasperante monólogo interior: “O homem com cinqüenta e oito anos é uma múmia, não dá mais no couro. Ao passo que a mulher de trinta e cinco...”. Em casa com a mu­lher, fazia a blague: “Tenho ciúmes de ti”. E, como ele não con­seguia evitar uma certa gravidade involuntária ao dizer isso, ela encarava:
— Eu te dou motivo?
Era obrigado a reconhecer:
— Não. Nunca.

A VIAGEM

Era verdade. Jamais Valquíria sugerira, com o seu compor­tamento, qualquer dúvida, qualquer suspeita. Ela dizia, numa comparação trivial, mas exata, que sua vida era “um livro aber­to”. Só saía com o marido, a não ser quando, uma vez por se­mana, visitava sua mãe na cidade. Já, então, sozinha, porque as ocupações do marido o retinham no subúrbio. E, após a lua-de-mel, combinaram em termos definitivos:
— Você vai de manhã — dissera ele. — Passe o dia com sua mãe e volte de tarde.
E assim, quando Valquíria ia fazer a visita filial, o marido a deixava na estação, onde a esposa apanhava o trem elétrico e ele seguia para o trabalho. Durante três anos, viveram uma felicidade tranqüila e sempre igual. Antoniel podia dizer: — “Foi um alto negócio o meu casamento”. E insistia: — “Um negocião”.
Até que chegou uma terça-feira, dia em que Valquíria, co­mo fazia sempre, devia ir ver a mãe. Quando Antoniel acor­dou nessa manhã, já a mulher estava diante do espelho, pintando-se. Tomara um banho muito demorado, perfumara todo o corpo com água-de-colônia Flor de Maçã. E agora pas­sava batom nos lábios. O marido mal desperto teve um bocejo e comentou:
— Você parece que vai a uma festa!
— Por quê?
Novo bocejo:
— Porque está se embonecando toda!
E passou. Quarenta minutos depois, ele já escovara os den­tes, fizera a barba e tomara banho; puderam tomar café juntos. Quando a mulher se levantou, ele deixou escapar o galanteio:
— Você hoje está uma uva!
Pouco depois, ele a levava à estação.
Quando o trem encostou, Antoniel lembrou, antes que ela embarcasse:
— Dá lembranças à tua mãe!

A CATÁSTROFE

Partiu o trem e Antoniel ainda esperou que ele desapare­cesse na primeira curva. Só então dirigiu-se para o emprego. Mais tarde, ele se lembraria da primeira pergunta que fez ao contí­nuo ao entrar no escritório:
— Que dia é hoje?
— Quatro.
E Antoniel, apanhando umas cartas em cima da mesa, repetiu sem ter de quê: “4 de março de 1952”. Dir-se-ia que, sem saber, sem sentir, estava dando uma importância toda especial à data, como se ela devesse ficar marcada na sua vida, e para sempre. Quanto tempo se passou até que se recebesse a notí­cia? Talvez uns vinte minutos ou pouco mais. O fato é que con­feria umas faturas quando ouviu uma voz (talvez do contínuo) dizendo a uma moça do escritório: — “Parece que houve um desastre de trem”. A mesma voz sublinhava: — “Um desastre horrível”. Uma coisa se gravou, desde logo, no espírito de Antoniel; o desastre de trem. Fosse de avião, de automóvel, de ôni­bus, ele não se levantaria, como se levantou, não iria interrogar o rapaz:
— Desastre de trem?
De manga de camisa, deixou o escritório. Estava ainda cal­mo, embora de uma calma intensa, uma calma apaixonada. Mas, no mais íntimo de si mesmo, havia certeza, definitiva, irrevogá­vel certeza: o desastre ocorrera com o trem em que viajava Valquíria. Podia ser outro. A toda hora e em toda parte, milhares de trens deslizam nos trilhos do mundo, em todas as direções. Mas ele sabia, por uma intuição mágica e apavorante, que, en­tre todos, o destino escolhera aquele trem e não outro qualquer. Passou por um botequim e se deteve; o rádio de lá irradiava, justamente, as notícias do desastre. Foi recebendo o impacto de cada notícia: “Cem mortos”, “setenta e cinco mortos”, “oi­tenta mortos”. Uma coisa queria saber no tumulto das informa­ções contraditórias. E soube que era, de fato, o trem de Nova Iguaçu.

O MARTÍRIO

Guardou para si o desespero. Podia recorrer a um amigo, a um parente ou, mesmo, tentar a simpatia e a solidariedade de um desconhecido. Mas fora arrancado da sua normalidade. Dir-se-ia que uma loucura prodigiosamente sóbria e lúcida se apo­derava dele. Uma hora depois, estava no local do desastre. E ele próprio ia juntando do chão braços sangrando, pernas, ca­beças. Houve um momento em que, olhando um morto deca­pitado, seu estômago se contraiu numa náusea violenta. Ao mes­mo tempo, experimentava uma obsessão amarga.
E, então, ouviu que, atrás de si, alguém dizia: “Ali tem uma mulher sem cabeça”. Recuou então, fugiu, como um criminoso. Estava num tal estado mental que repetia para si mesmo: “É ela! É ela!”. Não discutiu, não verificou racionalmente a hipótese delirante. Foi para casa e enfiou-se lá, num medo atroz de que um amigo, um conhecido ou um parente trouxesse a verdade.

A MUTILADA

Anoitecia e ele não acendeu a luz. De vez em quando, do fundo de sua febre, pensava: “Eu acho que já estou louco”. E, súbito, escuta um rumor. Sim, não há dúvida: alguém introduz a chave na fechadura, alguém abre a porta. Aperta a cabeça en­tre as mãos: “Quem seria?”. A criada, não, que tinha folga às terças-feiras. Ele se crispa e caminha, pé ante pé, ao encontro do recém-chegado. Este aperta o comutador e Antoniel tem uma espécie de uivo: “Você!”. Era Valquíria, sim, inteira, intacta, lin­da. Agarrou-se a ela, beijou-a na boca. Durante o beijo, porém, lembra-se do desastre.
Reflete num segundo, num décimo de segundo: “Ela de­via estar morta ou mutilada”. Durante três ou quatro minutos, sem uma palavra, ouviu a mulher contar que passara um dia agradabilíssimo com a mãe. Ele a interrompeu, com surdo sofrimen­to: “E a viagem? Não houve nada? Nenhum atraso de trem?”. Valquíria, sem nada perceber, e com alegre frivolidade, respon­dia: “Nada”.
Antoniel raciocinava: “Saltou antes do desastre”. E para quê? Segurou-a pelos dois braços, gritou-lhe a notícia do desas­tre: “O trem espatifou-se. Cem mortos!”. Apavorada, ela começou a chorar, na sua pusilanimidade de adúltera. E, de fato, sal­tara antes do desastre; passara o dia longe de tudo e de todos, sem uma notícia do mundo. Voltara, ainda deliciada, de auto­móvel; e não vira ninguém, não sonhara com ninguém nem le­ra o jornal ou escutara o rádio. Às terças-feiras era o seu dia de amor. O marido gritava como um possesso:
— Tu devias estar sem braços, sem pernas! — E baixando a voz, arquejante: “Ou sem cabeça. Sem cabeça, como aquela mulher”.
Valquíria poderia ter gritado. Mas o medo a petrificava. Ele, sentado, exausto da própria cólera, repetia numa monotonia delirante: “Sem cabeça... sem cabeça...”. Puxou-a pelo braço: “Vá dormir. Quero que durma”. Atirou-a na cama; deitada de bruços, ela ficou soluçando. Sentado na cama, Antoniel esperou que, vestida, de sapatos, dominada pelo cansaço, ela dormisse afinal. Então, num ar tétrico, foi ao quintal e apanhou a machadinha. Voltou, arquejando. De novo, no quarto, contem­plou-a, com certo espanto e sem amor. E pensou na mulher sem cabeça, do trem. Ergueu então a machadinha e desfechou-lhe um golpe só, na altura do pescoço.

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