sexta-feira, 3 de julho de 2009

O PASTELZINHO

Uma noite, duas semanas antes do casamento, conversava com alguns amigos no café. Súbito, um deles baixa a voz e faz-lhe a pergunta:
— Sabe onde é que se decide um casamento?
— Não.
E o outro:
— Na primeira noite. A primeira noite é tudo e o resto não tem importância.
Sérgio ouviu, sem fazer comentário. O outro era casado, bem casado, e tinha a autoridade de quem conhecia o proble­ma. Continuou e mudaram de assunto. Mas quando, uma hora depois, desfez-se o grupo, o amigo o levou até a esquina. E, lá, repete:
— Não te esqueças: — é preciso caprichar na primeira noi­te. Bye, bye.
O impressionado Sérgio balbuciou:
— Bye, bye.

EMOÇÃO

Morava na rua Adriano, no Méier. A caminho de casa, no lotação, ia pensando na advertência do amigo, que passava por ser uma enciclopédia amorosa. E Sérgio, que era por natureza um emotivo, sujeito a angústias inenarráveis, começou a entre­ver possibilidades nupciais as mais desagradáveis. Durante a noite sonhou repetidas vezes com o amigo, que lhe repetia si­nistramente: — “Olha a primeira noite. Capricha, capricha!”. Acordou banhado em suor. Mais tarde, no trabalho, permanecia o mal-estar. E a situação parecia-lhe grotesca, hedionda: falta­vam duas semanas para o casamento e já estava nervoso. Du­rante uma semana não pensou noutra coisa. Acabou indo a um médico. Chega lá e abre o coração:
— Doutor, o que há é o seguinte: — vou me casar daqui a uma semana. Tenho medo, justamente, do meu sistema ner­voso, das minhas inibições.
O médico insinua:
— Quer um calmantezinho?
E ele, de olho aceso:
— Talvez fosse negócio, não, doutor?
Mas o outro volta atrás:
— Não precisa. Pra quê? A solução é ter confiança em si mesmo, procurar distrair as idéias.
Agoniado, quer saber: — “E não vou tomar nada?”. O mé­dico, cheio de otimismo, deu-lhe o conselho:
— Faz o seguinte: — no dia do casamento, evita salgadinhos e doces. O ideal seria um bife, um bom bife. Carne assa­da, sangrenta. Nada de pastéis, de empadinhas, de coisas api­mentadas.
Ao lado, o noivo escutava:
— Compreendo, compreendo.
Saiu crente do consultório que a chave da lua-de-mel era o aparelho digestivo. Ao descer do médico, dá de cara, por uma dessas fatalidades cômicas, com o tal amigo. Este diz-lhe, em tom cavo e voz profunda:
— A primeira noite é tudo!

NÚPCIAS

Eis a verdade: — a conversa com o médico dera-lhe ânimo novo. Passou a pisar mais firme, a olhar os outros de cima para baixo e, no telefone, ao despedir-se da pequena, encostava a boca no fone:
— Um beijinho bem molhado nessa boquinha!
Entre parênteses, a garota, com dezoito anos, jeitosa de cor­po e de rosto, era, como dizia o próprio Sérgio, um “doce-de-coco”, um “arroz-doce”. Educadíssima ou, segundo se comen­tava, “muito espiritual”, era incapaz de usar expressões de gí­ria, de dar uma gargalhada ou, simplesmente, cruzar as pernas. Fisicamente era um tipo fino, de poucas cadeiras, uma linha mui­to aristocrática. Ele dizia: — “Nunca espirrou na minha frente. E outra coisa: — não transpira! Te juro que nunca vi a Dalva suada”.
De fato, nenhuma pele mais isenta de espinhas, de man­chas, mais fresca, mais cheirosa e mais suave. Custava crer que essa imagem de graça intensa, essa flor de espiritualidade tives­se nascido e, pior do que isso: — ainda morasse na Saúde. Mui­to carioca, estabanado, Sérgio mudava diante da noiva assim doce e assim macia. Sem querer, ele a tratava com relativa e in­voluntária cerimônia. O chamado “beijo bem molhado” era a máxima liberdade verbal que se permitia. Mas, na véspera do ca­samento, ela o chamou de lado. No seu jeito manso, começou:
— Vou lhe pedir um favor, meu filho.
Abriu-se:
— Pois não!
E ela:
— Eu não queria que você falasse mais em “beijo molha­do”. Acho tão sem poesia!
Pela primeira vez, Sérgio quis resistir:
— Mas, meu bem, escuta cá: — por quê?
Explicou:
— É o seguinte: — quando você fala assim eu penso logo em saliva.
O outro animou-se:
— Mas por isso mesmo! A graça do beijo está, justamente, na saliva, meu anjo. — E insistia, já inspirado: — Na mistura de saliva.
Dalva encerrou a discussão com a sua doçura irredutível:
— Eu não penso assim.
Sérgio transigiu, imediatamente:
— Está bem, coração. Todo o meu interesse é de te agradar.

A TRAGÉDIA

No dia, houve o casamento, no civil e no religioso. Na igreja, de joelhos diante do altar, ele julgava ouvir, alternadamente, a voz do amigo e a do médico. Uma dizendo: — “A primeira noi­te é tudo”. E a outra: — “Nada de salgadinhos! Nada de doces!”. De fato, desde as primeiras horas do dia que observava um extremo rigor de alimentação. Renunciara ao leite, que podia fa­zer mal ao fígado; alimentara-se, sobretudo, de frutas acima de qualquer suspeita: — bananas e mamão. Não almoçara, porque a hora do almoço coincidira com a do civil. Ao sair da igreja, sentia fome. Chegara de volta à casa dos sogros com fome. Viu os salgadinhos, os doces e, a despeito de uma tentação violen­ta, manteve-se irredutível. De vez em quando, pessoas da casa passavam com pratos de sanduíches, de pastéis, de doces. Per­guntavam:
— Aceita um?
Respondia, heróico:
— Não, obrigado.
Ficou, assim, inexpugnável, até o fim. A noiva que, por na­tureza, tinha um apetite de passarinho, não tocou em nada. Min­to: — aceitou um pastelzinho. Ele ainda teve vontade de sugerir-lhe: — “Não faça isso!”. Calou-se, porém. Por fim saíram, de táxi alugado, para um hotel no centro, onde tinha alugado um apartamento no décimo segundo andar para a lua-de-mel. Ao entrar no carro, Dalva balbucia: — “Não sei, mas não estou me sentindo bem”. Sem dizer nada, guardou para si a intuição:
— “Foi o pastelzinho”. No meio do caminho, novo lamento: — “Estou me sentindo tão mal!”. Falara de dentes trincados. Dis­se ainda: — “Tomara que a gente chegue logo, tomara!”. Sen­tindo a angústia do ser amado, comandou o chauffeur. — “Quer andar mais depressa?”. Ao lado, Dalva crispava-se toda, gelada de dor. Sérgio baixa a voz:
— Queres que eu compre elixir paregórico?
— Não diz isso: Não diz nada. Só quero é chegar, meu Deus!
Ia balbuciando: — “Não sei se agüento! Não sei se agüen­to!”. Ele finalmente diz: — “Foi aquele pastelzinho, não foi?”. Ela arquejava, chamando a atenção das pessoas. Sobe o eleva­dor com o marido, que apanhara a chave. Lá em cima, exigiu: — “Não entra, fica no corredor!”. Ele espera uns vinte minu­tos. Nada. Empurra e vem, então, lá de dentro, o berro: “Não!”. Da porta, pergunta: — “Queres elixir paregórico?”. Outro “não” violento.
Mais meia hora e quer forçar a situação. Entra. Mas quando Dalva percebe que o marido está ali, alucina-se. Ele a viu correr em direção da janela, trepar no parapeito e atirar-se lá de cima, do décimo segundo andar, deixando no ar o seu grito em flor.
Meia hora depois, chegam parentes, amigos, simples conhecidos. Diante da morte de uma noiva, em sua primeira noite, insinuou-se, em todos os espíritos, a idéia de um tenebroso cri­me sexual. O sogro de Sérgio agarrou-o pela gola e o sacudiu, aos berros:
— Ela matou-se por que?
Respondeu, num soluço imenso:
— Uma cólica a matou! Foi o pastelzinho!

Nenhum comentário: