quinta-feira, 9 de julho de 2009

O INFERNO

Quando ela disse que tinha um filho, um garoto, já de do­ze anos, Romualdo caiu das nuvens:
— Filho?
— Você não sabia?
Foi enfático:
— Nem desconfiava.
E ela:
— Pois tenho. Fez doze anos, está no colégio.
— Engraçado!
— Por quê?
Ele foi, então, gentilíssimo. Disse que ela não parecia mãe de ninguém e muito menos de um garoto, quase rapaz. E, na verdade, a idade do menino o espantara. Lucília, com seu tipo frágil e pequeno, o ar de menina, um quê de infantil nos olhos, no sorriso, nas maneiras, parecia uma garota solteirinha. E não foi somente de espanto a sua reação. Experimentou também um certo alarme. Aquele filho, aquele marmanjo, inesperado e taludo, assustava. Foi, porém, bastante hábil e educado para dissi­mular o desconforto e bastante cínico para a seguinte promessa:
— Vou ser para ele um segundo pai!
— Deus me livre!
— Como?
Lucília suspirou:
— Eu te explico. Vamos entrar ali, um momentinho.

O FILHO

Entraram numa sorveteria. Depois de sentados e servidos, ela foi tomando sorvete e explicando.
— O Odésio não pode saber, nem desconfiar.
Esta era uma condição que ela impunha. Ou ele aceitava ou, então, nada feito. Romualdo ainda ponderou:
— Acho que você exagera!
— Ora, Romualdo, tem dó! Você se esquece que é casado, que vive com outra, que tem filhos, esquece?
— Realmente.
— Pois é, meu filho, pois é!
Eram seis horas quando Romualdo a largou, num ônibus apinhadíssimo. Ela fez a viagem em pé. A promiscuidade, ali, era uma coisa abjeta. Espremida, imprensada, triturada em meio dos passageiros, teve uma sensação de ultraje, de profanação, de aviltamento. Um cavalheiro que ia saltar no poste seguinte foi varando a massa humana; ao passar por ela quase a derruba. A sensação do ultraje recrudesceu em Lucília. Resmungou:
— Animal!
Mas ia bastante atribulada com seus problemas. E não li­gou mais para os contatos indesejados e brutais que, nos ôni­bus cheios, são inevitáveis. O drama de Lucília era, em suma, o seguinte: o medo, o pavor, de que o filho enfim soubesse... A opinião, o julgamento do garoto era a coisa que mais a im­pressionava no mundo. Temia-o mais do que o Juízo Final. Ao mesmo tempo, tinha loucura por Romualdo e a vida sem ele seria de uma monotonia medonha. Pendurada no ônibus, ge­meu interiormente:
— Oh! meu Deus do céu!

HISTÓRIA DE AMOR

Então, começou a mais doce, a mais sofrida história de amor. Voltava dos seus encontros com Romualdo em sobres­salto. O filho estava sempre na rua, jogando bola ou em brinca­deiras turbulentas com amigos de sua idade. Uma vez, deu um chute, e com tanta infelicidade, que a unha do dedo grande do pé saltou longe. O negócio inflamou; e Lucília, quando chegou de uma entrevista amorosa, tomou-se de vergonha e de remor­so. Pensou, lavando o pé machucado: enquanto ela se divertia com um homem, além do mais casado, o filho, sozinho, estava precisando de seus cuidados. Vamos que fosse uma coisa pior que um simples esfolamento de dedo. Que remorsos não senti­ria? O menino, corajoso, quase não se queixava. E era ela quem tinha de perguntar:
— Está doendo?
— Mais ou menos.
E Lucília:
— Quando estiver doendo, diga!
No dia seguinte, Lucília apareceu triste. Suspirava:
— Que vida!
Romualdo acabou se enfezando:
— Que vida, por quê?
Ela, então, pôs as cartas na mesa:
— Reconheço que a culpada sou eu, porque você, sendo casado, eu não devia... Romualdo, não está direito.
Fez uma pausa, antes de completar:
— Se, ao menos, você vivesse só pra mim!
Foi brutal:
— Ora, Lucília, ora! No mínimo, você está querendo que eu deixe minha mulher! Sou capaz de apostar!
Despediram-se sem carinho. E ele, ressentido, mal se dei­xou beijar. Disse, apenas:
— Vai com Deus, vai!
Nessa noite, ele fez confidências a um amigo. Quando este soube que havia um filho no meio, um marmanjão de doze anos, foi categórico:
— Abacaxi autêntico!
E Romualdo insistiu:
— Você não acha um desaforo que ela queira, imagine, que eu deixe minha mulher?
— Evidente!
No primeiro encontro, Romualdo rompeu fogo:
— Das duas uma: ou você muda de cara, faz uma cara ale­gre, ou, então, minha filha, vamos acabar com esse negócio. Já não estou gostando, nada, nada!
Já o termo negócio pareceu a Lucília de uma abominável grosseria, de um prosaísmo ultrajante. Além disso, a agressivi­dade, como se ela fosse uma qualquer! Exaltou-se, também:
— Não grite! Está pensando que eu sou o quê?
— Grito, pronto, grito! Não topo chiquê! Comigo, não!
Ela não disse uma, nem duas. Apanhou a bolsa, que estava em cima da mesa: olhou-se, instintivamente, no pequeno espe­lho; e, num passo lento, encaminhou-se para a porta. Parou um segundo, uma fração de segundo. Esperava talvez que Romualdo a chamasse. Teria, então, voltado e tudo terminaria numa reconciliação feroz. Mas ele esbravejou:
— Mulheres é que não faltam, inclusive a minha! Podia haver pontapé mais claro, mais insofismável, mais ab­soluto? Saiu para nunca mais.

O ABANDONO

Ela tinha do próprio casamento e do marido morto uma lembrança penosa. O marido era uma nobre alma, que vivia pa­ra a esposa e para o filho. Mas tudo que ele fizesse, de bom, de heróico, de sublime, esbarrava diante de sua falta de amor. E isso, essa falta de amor, era pior do que o ódio. Crispava-se quando o pobre-diabo vinha fazer-lhe festa. Houve uma vez em que não pôde, não agüentou, explodindo:
— Não me beija! Não quero seu beijo! Que coisa aborrecida!
Ele já estava doente, na ocasião. Foi talvez este episódio que antecipou o fim. Seis meses depois, ela, sem nenhum luto interior, tinha a sua primeira experiência amorosa, na pessoa do casado Romualdo. Viu, então, que o marido a interessava menos que o mata-mosquito anônimo que vinha pôr creolina no ralo. Foi uma paixão feroz que acabou, como vimos, da ma­neira mais estúpida do mundo.
Durante dias, Lucília, numa tristeza obtusa, esperou um te­lefonema, um bilhete, um recado. Nada, absolutamente nada. Depois soube, por terceiros, que ele andava com uma datiló­grafa extranumerária numa autarquia; tinham sido vistos no Pas­seio Público, onde tiravam retratos no lambe-lambe. Lucília, fora de si, encerrava-se no quarto, ficava horas de bruços, na cama, chorando. Já o julgamento do filho não a interessava mais. O garoto, diante do seu pranto, perguntava:
— Que é que a senhora tem, mamãe?
— Não aborrece! Não amola! Sai daqui, anda!
Na presença do filho, ligava para o escritório do bem-amado. De lá, queriam saber quem era.
Lucília se identificava. Então, a resposta infalível era: “Não está”. Uma vez, porém, coincidiu que o próprio atendesse. Mas, quando percebeu que era ela, explodiu:
— Me deixa em paz, sim? Quero sossego! Vê se não me chateia.
O filho não fazia comentário. Era uma testemunha muda de tudo. Guardara, porém, o nome e o repetia: “Romualdo, Romualdo”. Conhecia-o, de vista. Pensava nele dia e noite, com essa obstinação de amor ou de ódio. E já não saía mais de casa, não jogava mais bola; passava as horas ao lado de Lucília, de olhos muito abertos, como se esse desespero o fascinasse, ape­sar de tudo. Ouviu quando a mãe, numa crise maior, amaldi­çoou o homem que a abandonara:
— Tomara que ele morra, meu Deus! Fique debaixo de um automóvel! Tomara, meu Deus!
Por fim, ela já não queria mais nada; ou, por outra, queria morrer. Não comia e seu desmazelo, de atitudes, de roupas, de higiene, era aterrador. Passava dias com uma mesma combina­ção. Outras vezes, do fundo do seu desespero, fazia a reflexão: “Há três dias que não escovo os dentes”. O filho se abraçava a ela. Chorava:
— Não fique assim, mamãe! Não chore mais!
Certa vez, na rua, o garoto ouviu dizer que não se nega na­da a quem está morrendo, a quem vai morrer. O “último” pe­dido de alguém, justamente por ser o “último”, é alguma coisa de terrível e sagrado, que cumpre obedecer, sob pena de mal­dições tremendas.
Então, afirmou:
— Ele volta, mamãe! Volta, sim! Juro por Deus!

A VOLTA

Romualdo estava, no poste, esperando o ônibus. O garoto desconhecido aproximou-se e disse que era filho de d. Lucília e falou mais:
— Volta para minha mãe. É meu “último” pedido.
Romualdo não entendeu. Ou só entendeu quando o menino se atirou debaixo de um ônibus que passava a toda a velocida­de. A morte foi instantânea.
Alta madrugada apareceu mais alguém para fazer quarto ao menino: era o assombrado, o enlouquecido Romualdo. Voltava, sim. E continuou voltando, escravo do “último pedido” de uma criança. Quando, finalmente, ela se cansou dele e quis deixá-lo, Romualdo lembrou, apenas, o desejo do menino. Então Lucília compreendeu que estavam unidos, e para sempre, dentro de um inferno.

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