domingo, 26 de julho de 2009

RAINHA DE SABÁ

Saíram juntos da festa. E o amigo vinha entusiasmado:
— Foi contigo! Fez fé com tua cara!
Referia-se a Teresinha Seixas, que não tirara os olhos do Asdrúbal, num flerte escandaloso. Tinha sido uma coisa de cha­mar a atenção. Raimundo, eufórico como se o beneficiado fos­se ele, atiçava o outro:
— Está pra ti. Dá em cima, que é canja. Quero ser mico de circo se ela não entregar os pontos.
Mas o Asdrúbal, que era um tímido e exagerava as dificul­dades, coçava a cabeça:
— O negócio não é assim como você diz. É muito mais complicado.
— Complicado o quê! Barbada. E, ainda por cima, uma su­jeita cheia da “erva”. Tem pra lá de vinte mil contos. Sabes lá o que é isso?
Despediram-se, afinal. E o Asdrúbal, sujeito sem vintém, es­cravo do salário, entrou em casa com aquilo na cabeça: vinte mil contos! Tirou a roupa e, nu da cintura para cima, ficou ruminando a situação que subitamente se criara na sua vida. O fa­to é que Teresinha, filha do Seixas dos lotações, parecia interessadíssima e ele já se via rico, milionário, o diabo.

ROMANCE

No dia seguinte, pela manhã, quando Asdrúbal entrou no emprego, encontrou o Raimundo à sua espera. Tomara-se de um interesse medonho pelo caso. E foi logo intimando: “Olha aqui, sua besta: você vai telefonar agorinha mesmo para fulana”. Asdrúbal, que tinha horror da ação, quis escapar. Mas ele, implacável, coagiu o outro e foi ao cúmulo de fazer a ligação. Asdrúbal, quisesse ou não, teve que falar. Gaguejou no telefo­ne, suou, meteu os pés pelas mãos. Raimundo, do lado, bufava: “Mas que animal!”. E foi preciso que Teresinha, desembaraça­díssima (sabia até francês), conduzisse a conversa e inventasse os assuntos.
No fim de dez minutos, a timidez de Asdrúbal evaporava-se. Já se permitia até piadas. Raimundo soprou: “Marca um encon­tro! Marca um encontro!”. O rapaz acabou tomando coragem e sugerindo o encontro. E quando Raimundo percebeu que Te­resinha concordava, assoviou de pura delícia. Finalmente, despediram-se. E então, triunfante, Raimundo cantou vitória:
— Mulher, quando cisma com um cara, já sabe. Está no pa­po, direitinho!
E Asdrúbal maravilhado: “Veremos. Veremos”. Pensava nos lotações do sogro e suspirava.
Horas depois, num café, ainda confabulavam; e foi então que, baixando a voz, Raimundo insinuou: “Tu me arranjas um emprego com o velho, não me arranja? Vê lá! Sou teu, do pei­to!”. E insistiu:
— Mas um emprego bacana. Micharia não interessa!
E começaram os encontros. Ofuscados pelo dinheiro da pe­quena, os dois amigos esqueciam-se de um pequeno detalhe: ou seja, a própria pequena. Tinham desta uma idéia vaga, ne­bulosa. E se lhes pedissem para descrever o feitio do nariz, do queixo, do corpo de Teresinha, não saberiam fazê-lo. Ignora­vam, honestamente, se era bonita, feia ou simpática.

NOIVOS

Num instante, a menina meteu o namorado dentro de ca­sa. Asdrúbal conheceu o pai, mãe, irmãs e tias. Jantou lá e suou frio quando serviram o peixe. Não sabia direito qual o garfo. Já por ocasião da sopa, recebeu um impacto tremendo, pois a moça soprou-lhe: “Faz menos barulho”. Saiu humilhado e, ao mesmo tempo, mais preso do que nunca àquela família.
E, pouco a pouco, foi contando à menina as suas dificulda­des e, sobretudo, as desconsiderações que sofria no emprego. Aliás, o amigo o industriara: “Conta miséria, rapaz”. E o Asdrúbal, segurando a mão da pequena, gemia: “O chefe tomou assi­natura comigo”. Ela o considerava um anjo, espantava-se:
— Mas por quê?
— Porque não sou puxa como os outros. Digo o que te­nho de dizer e pronto.
Teresinha, solidária, reforçava:
— Faz bem, se ele se fizer de besta, mete-lhe a mão na cara.
— E o emprego?
— Por minha conta. — E acrescentou: — Fome você não passa.
Raimundo, quando soube da conversa, inflamou-se:
— Ótimo! Se ela garante o negócio, nem se discute.
O fato é que Asdrúbal passou a ser outro no escritório. Ele que sempre se caracterizara pela subserviência mais deslavada, pela humildade mais constrangedora — roncava grosso e já fa­lava em “quebrar caras”. Um dia, o chefe soube que ele não saía do telefone e o convocou para o competente sabão:
— Que negócio é esse que andam me contando? O senhor pensa que isso aqui é a casa da Mãe Joana? Não, senhor, absolu­tamente!
A princípio, por uma questão de hábito, Asdrúbal ouviu só, calado. Mas lembrou-se de que o dinheiro do sogro cobria a re­taguarda. Num instante, estava de dedo espetado na cara do che­fe: “Seu palhaço! Vem cá para fora que eu te parto a cara. Creti­no!”. O chefe, lívido, numa crise de pânico, escondia-se detrás dos móveis e punha a boca no mundo. Tiveram que arrastar Asdrúbal, aos apelos de “não faça isso”. Nos corredores, ele ain­da esbravejava: “Eu sou é homem!”.
Da rua telefonou para a pequena, ainda heróico; terminou com a insinuação: “Estou sem emprego e imagina o abacaxi: devo três meses do quarto!”.

O LAR

O sogro deu-lhe emprego na firma. Raimundo, animado com o exemplo, brigou no emprego, disse uns desaforos ao pa­trão. Mas este, corpulento e feroz, correu com ele a taponas. Desempregado, o rapaz passou a viver às custas do Asdrúbal. Mordia-o, diariamente, em dez, vinte cruzeiros; e estava sem­pre reclamando: “Vê se te casas e me arranja o tal emprego”. Meses depois, casava-se Asdrúbal. E parte para a lua-de-mel. No último momento, Raimundo fez-lhe um substancial pedido de dinheiro: quinhentos cruzeiros. O sogro fez a advertência: “Tra­ta bem minha filha, rapaz, que tu estás feito”.
Durou trinta dias a lua-de-mel e, quando voltou, Asdrúbal parecia espantado. Começava a conhecer verdadeiramente a mu­lher. Até então, ele, na embriaguez do casamento rico, não to­mara conhecimento dos defeitos e qualidades físicas e morais de Teresinha. A experiência conjugai abria-lhe os olhos.
Descobria, antes de mais nada, que ela era somítica demais. Tomava conta do dinheiro, regateava até o último tostão, exa­minava todas as contas. Sempre que, numa boate, ele se permi­tia uma gorjeta muito alta, ela o imprensava: “Parece até que o dinheiro é teu. Calma, calma no Brasil!”. E, não raro, o ad­vertia antes: “Cuidado que meu pai custou muito a ganhar esse dinheiro!”.
Voltaram da montanha para morar num palacete, na Gávea. Vamos e venhamos: não lhe faltava nada. Casa de luxo, auto­móvel, piscina de mármore, garçom, o diabo. E, na rua, os lo­tações do sogro continuavam atropelando pedestres, E conse­guiu, mesmo, um emprego de contínuo para o Raimundo, na firma.
Mas ao chegar de fora teve uma surpresa: todas as criadas, de sua casa, eram pretas. Veio perguntar à mulher:
— Que negócio é esse?
E ela, categórica:
— Claro, ora essa! Ou você pensa que eu sou alguma bo­ba? Pois sim! Criada branca não me entra aqui!
— Mas, criatura!
— Sim, senhor! Só preta e olhe lá! Não acredito em homem nenhum! Eu que ponha uma criada bonitinha aqui, para ver o que acontece!

A RAINHA DE SABÁ

Entre as cinco ou seis empregadas, havia uma, Mariana, que se destacava das demais. Quando Teresinha a viu teve um mu­xoxo: “Hum! hum!”. Mas deixou-se convencer pela cor. Por­que a menina, com seus dezenove anos, era uma figura singu­lar. No Carnaval anterior, saíra de Rainha de Sabá num rancho, com espetacular sucesso. E Teresinha dizia para as visitas: “Tem bom corpo, mas é preta!”.
Mergulhado até o pescoço na nova vida, Asdrúbal procu­rava Raimundo. Parecia meio descontente; suspirava: “Não sei o que há comigo”. Raimundo, que era agora contínuo e de uni­forme, fazia uma síntese:
— Vida chata, meu Deus do céu!
De vez em quando, ele ia à casa do amigo, levar encomen­das. Um dia, chamou Asdrúbal a um canto: “Tens, em casa, um material de primeira”. Espanto de Asdrúbal: “Quem?”. E o ou­tro: “A Mariana”. Asdrúbal fez a restrição racial: “Mas é preta!”. Raimundo saltou:
— Deixa de ser burro! Pode ser preta, mas que perfil. E o corpo, menino!
A verdade é que Raimundo, inferiorizado dentro do uni­forme de contínuo, tomava-se de ódio contra Teresinha. Em ca­sa, na cama, devorado pelos percevejos, ele ruminava: “Vou fa­zer a caveira dessa gaja!”. Não sabia como, mas... Sempre que podia, interpelava Asdrúbal: “Como vai a Rainha de Sabá? Ah, se eu fosse você!”. E Asdrúbal, cruzando com Mariana, no cor­redor, já a olhava de uma certa maneira.
O amigo o sugestionava: “Deixa de preconceito besta!”.

O CHEQUE

No dia em que Asdrúbal fez trinta e cinco anos, a mulher preparou um grande jantar, com a presença de muitos paren­tes, inclusive dos pais. Quando todos se sentaram à mesa, o As­drúbal apanhou o guardanapo e um papel caiu no chão. Sur­preso, curvou-se e apanhou. Era um cheque de quinhentos mil cruzeiros! Enquanto ele, vermelhíssimo, relia a importância, os parentes batiam palmas e o sogro anunciava:
— Para uma viagem a Paris e outros bichos!
Teresinha ergueu-se e veio beijá-lo na testa. Então, aconte­ceu o seguinte. De pé, à cabeceira da mesa, o rapaz olhou ainda uma vez o papel e, sem exaltação, com método, o rasgou em não sei quantos pedacinhos. Houve alarido na sala. Que é isso? Está louco? Bêbado? Mas todos emudeceram quando ele, em voz forte e nítida, anunciou:
— Comunico que vou me desquitar de minha mulher, aqui presente. E que me casarei com minha criada, Mariana, no Mé­xico, no Uruguai ou no raio que o parta.

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