sexta-feira, 28 de agosto de 2009

CAPÍTULO IX

Engraçadinha não contara ao Irmão Fidélis o “cachorra” que Sílvio lhe atirara ao rosto, com uma bôca de ódio. Depois de a beijar no pescoço, o rapaz a carregou. O pêso da menina fê-lo, por um momento, dobrar os joelhos; quase, quase aquêle corpo escorre­gou-lhe dos braços. Contraiu a cara no esfôrço. E, por um segundo, uma fração de segundo, pensou: — “Isso não está acontecendo!” Engraçadinha imagina, numa feroz alegria: “E se êle me levasse, nos braços, pelada, para a sala?” O espanto, o horror dos convidados ao ver Sílvio abraçado à sua nudez!
O rapaz queimava a pele da garôta com a sombra áspera e quente da barba. Parecia não saber o que fazer com o corpo nu. Olhava para os lados: — “Letícia não merece isso”. Foi Engraçadinha que estendeu o braço (moreno e bonito), apontando:
— Ali.
Levou-a para o divã. Sùbitamente, descobria que sempre a desejara, sempre. Naquele momento, a pou­cos passos, o pai conversava com deputados e o pre­feito; o noivo andava, meio perdido, por entre os con­vidados, com o jeito doce e lancinante de pobre-diabo. Letícia perguntava a todo mundo, com a humilhação do abandono: — “Viu o Sílvio?” E ninguém podia ima­ginar que, na biblioteca fechada apenas com o trinco — aquêle corpo enroscado! Repetia para si mesmo: — “Crápula! Crápula! Eu sou um crápula! Me cuspam na cara!” Se um convidado desgarrado, ou o próprio Dr. Arnaldo (ou Letícia) entrasse, de repente?
Desesperado, Sílvio diz e repete:
— Somos dois loucos! Dois loucos!
Engraçadinha passa-lhe as unhas nas costas; balbucia:
— Abre a bôca, anda... abre...
Sílvio obedece. Fome e sede de uma bôca por ou­tra. Engraçadinha crispa-se, enquanto a saliva caía da bôca para o queixo. Disse, ofegante:
— Bôbo! Letícia não chega aos meus pés!

* * *

Também não contaria ao Irmão Fidélis que, de­pois, Sílvio a empurrara:
— Põe a roupa.
Êle próprio enfia o paletó com uma urgência pâ­nica. Agora, de costas para a prima, apanha um cigar­ro e começa a catar os fósforos. Tinha ódio de si mes­mo, ou, pior, nojo. Vira-se para Engraçadinha:
— Depressa! e insistia: — Depressa, antes que ve­nha alguém!
Só agora é que, numa prudência retardatária, vai fechar a porta à chave. Engraçadinha, feliz, calçava as meias. Espicaçou-o: — “Por que não olha?” Êle, que ainda não achara os fósforos, continuou de costas. Perguntava, fora de si: — “Onde é que eu botei essa caixa?” Só então lembrou-se que a emprestara a um deputado e que êste não a devolvera. Com um cigarro inútil entre os dedos, pensa, olhando Engraçadinha, que certas mulheres são prostitutas natas.
Engraçadinha sorria-lhe:
— Gostou?
Recua:
— Não!
Ela o desafia:
— Duvido!
Instintivamente, Sílvio procura os fósforos que emprestara ao deputado. Ela ainda tem, no lampejo do olhar, a embriaguez da própria audácia. O rapaz sofre com um nôvo raciocínio: — “Ela foi louca, mas eu aceitei a loucura!” Desesperado com a falta de fósforos, começa:
— Bem. Eu quero deixar bem claro o seguinte: eu não fui culpado de nada e você foi culpada de tudo. Exato?
A pergunta saiu como um apêlo. Engraçadinha es­tende a mão:
— Dá o lenço pra eu limpar o batom — repete: — Está todo sujo de batom. Dá o lenço.
Enquanto a menina passa a cambraia fina no seu rosto, Sílvio bate na mesma tecla:
— Você reconhece que foi a culpada? Reconhece? Eu estava quieto, no meu canto — eu não estava quieto no meu canto? não estava ao lado da minha noiva? — Fala! — berra — diz qualquer coisa!
Em silêncio, Engraçadinha molha a ponta do len­ço na língua e passa a fazenda úmida na mancha de batom. Sílvio fala, ainda:
— Foi você que me chamou pra biblioteca. Pois bem: chego aqui e você está pelada — repetiu, na sua fúria. — Tôda a culpa é sua!
Engraçadinha arrumara o lenço e o colocava no bôlso do rapaz. Ergueu o rosto e com uma voz macia, um sorriso muito tênue, pergunta
— Escuta aqui, seu cretino: — você quer dizer o quê? Que você foi forçado, que não queria? Ora, Síl­vio! Você é algum bebèzinho? E não se esqueça que você foi o primeiro.
O rapaz ergue a voz:
— Eu te disse, eu te avisei, que, em hipótese ne­nhuma, deixaria Letícia! Foi ou não? Responde — foi ou não foi?
Engraçadinha exaltou-se também:
— Se você é noivo, eu também sou noiva! Ou não sou? E com que cara vou aparecer ao meu noivo e di­zer: — “Sílvio me fêz isso assim, assim!” Você acha que o Zózimo vai gostar? Pimenta nos olhos dos ou­tros é doce de leite!
Sílvio queria falar, mas o som não saía. No seu espanto e no seu ódio, olhava a prima. Lembrou-se do momento em que abrira a porta e vira aquela nudez espantosa. Sentiu que, se fixasse a imaginação, o dese­jo ia romper novamente de não sei que profundezas, Fecha os olhos e quase soluça:
— Eu amo minha noiva!
Corrige:
— Ex-noiva!
Abre os olhos. Balbucia: — “O quê?” E ela:
—Vocês homens são uns covardes! Então você fêz o que fêz e vai me abandonar — por quê? Olha! — Eu vou deixar Zózimo, e você, Letícia! Mas claro, evidente!
Sílvio sentou-se. Mais uma vez, procura os fósfo­ros. Jamais tivera por alguém um ódio tão violento:
“Como é ordinária! Eu devia quebrar-lhe a cara, agora! Dar-lhe um sôco na bôca! Ainda ri, a cachorra! Por isso que há uns caras que matam mulher!” Lívido ergue-se; dirige-se à pequena, com a voz estrangulada: — Eu devia te dizer uns palavrões...
— Diz.
E êle:
— Devia te quebrar a cara...
Oferece o rosto:
— Quebra.
Sílvio tem os olhos cheios de lágrimas. “É uma prostituta! Uma vagabunda!” E já lhe parecia que ne­nhuma mulher trai por amor ou desamor. O que há é o apêlo milenar, a nostalgia da prostituta que existe ainda na mais pura. Pensava na noiva que devia estar desesperada. Encaminha-se para a porta e, súbito, es­taca. Vim-se, pergunta:
— Que tal o cabelo?
— Despenteado.
Olha para um lado e outro. Explode:
— Pente! Onde é que eu arranjo um pente?
Engraçadinha não se mexe. Sonha: — “Tu és meu. Letícia que se dane. Só meu”. Humilhado, pede:
— Quer arranjar um pente?
Enquanto ela sai por um momento, Sílvio, com o inútil cigarro entre os dedos, tem ódio também do deputado a quem emprestara os fósforos. Podia ter pedido a Engraçadinha para trazer uma caixa: — “Isso não. Seria demais”. A menina volta com o pente. Retocara a pintura. E ela própria se oferece:
— Deixa que eu penteio.
Enquanto a prima reparte o cabelo do rapaz, Sil­vio está pensando: — “Se eu estivesse num lugar de­serto ou passeando num barco, com essa miserável, eu a empurraria”... E já imaginava Engraçadinha no mar, ou na lagoa, debatendo-se, engolindo água, e êle abrindo-lhe a cabeça com o remo, até afundá-la... Com o pente na mão esquerda, Engraçadinha passava a mão direita na cabeça do primo. Sorri, quando acaba:
— Nós somos amantes.
Êle baixa a voz:
— Amanhã, vamos ter uma conversa muito séria.
Sai. Entra na sala e vê o deputado dos fósforos. Encaminha-se para êle, indignado: — “O senhor quer me ceder seu fogo?” Acende o cigarro e embolsa a caixa com uma sensação de triunfo, exclama:
— É minha!
Letícia já o chamava. Era de uma família de ner­vosos e deprimidos. Valorizava e dramatiza pequeninos contratempos. A ausência do noivo parecera-lhe uma catástrofe. Recebeu-o com uma euforia feroz: — “Oh, meu bem! Você demorou!” Sílvio a puxou para si, como se quisesse protegê-la da ameaça que só êle co­nhecia. Olhava em tôrno, perguntava a si mesmo se em cada uma daquelas mulheres existia o apêlo da pros­tituta eterna. Dançou duas ou três vêzes com Letícia. Via Engraçadinha passando com o cego, obtuso e bo­vino Zózimo. Tio Arnaldo aproximou-se e batia-lhe nas costas: — “Você tem sorte, Sílvio. Há poucas meninas de família. Estão desaparecendo. Letícia é uma das últimas”. Cêrca das quatro da manhã, leva Letícia em casa. Engraçadinha está só na sala, chei­rando as flôres de um jarro, diz-lhe:
— Vou deixar a porta do quarto apenas encosta­da. Empurra e entra. Te espero.

Nenhum comentário: