quinta-feira, 27 de agosto de 2009

CAPÍTULO VIII

Houve um silêncio. Engraçadinha continuava com o sorriso tênue, quase imperceptível. Irmão Fidélis pensava, com uma surda irritação: — êle for­mava, uma imagem falsa, infiel, daquela menina. Quando a via, pela casa, no meio das tias, costumava pensar: — “É uma bestalhona”. Não o era, pelo con­trário: — sua graça leve seria talvez o disfarce de uma alma profunda. Mas o Irmão ainda não sabia se fôra Sílvio ou Zózimo. Realmente, não sabia.
Diante dêle, sem desfitá-lo, Engraçadinha imagi­nava: — “Está besta comigo. Com cara de tacho”. E o fato de ter surpreendido um homem que, precisa­mente, lidava com almas e conhecia a imaginação do pecado — dava-lhe uma vaidade muito doce e muito aguda. Irmão Fidélis ergue-se. Experimentava um sentimento de frustração. Teria preferido à pior das hipóteses, ou seja — a paixão incestuosa e realizada. O incesto seria uma arma na sua mão. Dominaria a família. Em vez de incesto, porém, tinha havido o quê? Um defloramento, puro e simples, entre primos. Nova­mente, o Irmão Fidélis pensa, com amargura, no deputado morto: — “Aquêle animal gostava, sim, da filha. Tinha-lhe paixão. Matou-se por mêdo. Não teve coragem de ir até o fim”. De resto, sempre achara que o velho escondia, por trás do feitio austero, da poli­dez gelada, uma pusilanimidade abjeta.

* * *

Engraçadinha mentia. Precisava convencer a famí­lia que Zózimo... A verdade é que jamais contaria tudo a ninguém. Não dissera ao Irmão Fidélis que, no dia da festa, já acordara zangada. Tia Ceci — a que só se lavava na bacia — estava no banheiro. A menina bate lá, com muxoxos:
— Tem gente?
E aquela velhinha frágil, quase incorpórea: — “Já vai”. Falava com uma voz fininha de criança que baixa em centro espírita. Sentia na sobrinha a agres­sividade da adolescente e tinha-lhe pavor. Andando de um lado para outro, no corredor — e coçando a cabeça — Engraçadinha resmungava: — “Que amolação!” — Mas antes que a outra saísse, tocou, em­baixo, o telefone. Em seguida, gritaram:
— Engraçadinha!
Desceu, com a camisola em cima da pele. Se o pai visse, havia de dar-lhe um passa-fora: — “Andando nua pela casa?” Dr. Arnaldo não admitia e mandara mesmo uma das aias avisar à menina: — “Tem que dormir de calça!” Ao apanhar o telefone, Engraçadi­nha já sabia que era Letícia (primas e pareciam irmãs). A outra suspira no telefone:
— Tenho mêdo, Engraçadinha!
Coçou o nariz:
— De quê?
Letícia, que já tomara banho, já se arrumara, sus­pira, novamente:
— Sei lá! Eu me sinto tão feliz, mas tão!
E era justamente essa felicidade que a apavorava. Ao despertar, antes das cinco, pensara na festa de logo mais. Contava, agora, para a prima, que a euforia lhe dera uma brutal cólica. Explica, triste e insegura da própria felicidade:
— Emoção. Já fui três vêzes!
Foi aí que Engraçadinha insinuou: — “Aliás, casamento até na porta da Igreja se desmancha”. Para quê? Do outro lado da linha, a prima toma um susto: — “Não fala assim!” E gemia: — “Isola!” Mais que depressa bateu as três pancadinhas na madeira. En­graçadinha despedia-se:
— Vou tomar banho. Te telefono depois.
E a outra:
— Telefona.
Engraçadinha sobe. A festa ia ser ali porque o Dr. Arnaldo fizera questão de dar a casa e, mais do que isso, de fazer todos os gastos. Queria pagar até o mais ínfimo e obscuro salgadinho, até a mãe-benta mais humilde e tostada. Primas, tias, vizinhas, numa roda viva, faziam doces, noite e dia, e andavam pela casa aos tropeções, nos preparativos. Dr. Arnaldo aparecia na copa, na cozinha, e, grave, numa emoção contro­lada, fazia a pergunta geral: “Está faltando alguma coisa?” De vez em quando, Tio Nonô também apare­cia com a sua plenitude obscena. Furtava mães-bentas com exultante descaro. Certa vez, enfiara uma na bôca com papel e tudo. Tia Zezé precisava ralhar com o marido e enxotá-lo: — “Tira a mão daí!” Mas como eu ia dizendo: — “Engraçadinha sobe e tia Ceci vinha saindo do banheiro. Pequenina de natureza e com o desgaste do tempo, tinha algo, na sua fragilidade in­tensa, de múmia de anão. Ela entra lá, tranca-se. O próprio banho era para Engraçadinha uma experiên­cia sempre nova. E só uma coisa a irritava: — que o espelho fôsse pequeno e ela não se visse de corpo in­teiro. Teve que se pôr nas pontas dos pés para espiar os seios, que apanhou por baixo, com as duas mãos. Arrancara a camisola, por cima da cabeça, com um movimento selvagem. Baixava o rosto para se ver melhor. Olhava a própria nudez com triunfante vo­racidade. E, antes de cair debaixo do chuveiro, pen­sava em Sílvio: — “Sujeito burro! Vá ser burro assim no diabo que o carregue! Palhaço!”. E parecia-lhe um absurdo que, conhecendo as duas, desde meninas, êle tivesse preferido Letícia. Diante do espêlho, com os olhos escurecidos de ódio, ela parecia estar discutindo, argumentando com o noivo da outra: — “Seu animal! A Letícia tem as coxas finas, horrorosas, o joelho os­sudo e o umbigo — você já viu o umbigo de Letícia? Responde: — já viu o umbigo? Te juro e por essa luz que me alumia: — o umbigo mais feio que já vi na minha vida”. O que ela estava querendo dizer, a si mesma por outras palavras, é que nenhuma mulher é bonita sem um umbigo bem feito. Já debaixo do chuveiro, passando espuma pelo corpo, continuava o seu monólogo irritado: — “De mais a mais, tem uma barriguinha ridícula!” Quando acabou o banho, pôs a camisola no braço e atravessou do banheiro para o quarto — tão nua!
Tia Zezé, que ia descendo, viu e ralhou:
— Teu pai não gosta!

* * *

De noite, a. festa. Depois do almôço, Letícia salta de um táxi, com a mãe, duas irmãs e a criada. Entra, com um ar meio atônito e pergunta:
— Tem Eparema?
Com a mão apertava o ventre. Só acreditava na “Flora Medicinal”. A mãe explica para as outras tias: — “Nervosa”. Sobe correndo para o banheiro, enquan­to tia Zezé cata, no armário, o vidro. Mais tarde, mu­dam a roupa juntas. Súbito, de costas para Engraçadi­nha, Letícia deixa escapar o lamento: — “Tenho as coxas muito finas”. Vira-se para a outra. Puxa a com­binação e repete, com pena e, ao mesmo tempo, com raiva: — “Não são finas?” Engraçadinha, diante da penteadeira passa verniz nas unhas; olha pelo espelho: — “Nem tanto, nem tanto”. Soprando as unhas, a pe­quena pensa: — “Burro como Sílvio nunca vi”. Caíra a noite; a orquestra já chegaria. Pouco depois, a mãe de Letícia vem vê-la. Baixa a voz para a filha:
— Melhor?
Agora era o fígado. A noiva, que tomara o remédio amargo, e ia repetir a dose (a título de precaução), geme: — “Sei lá!”. Passava baton, diante do espêlho, e gostaria de ter as coxas mais grossas, como Engraça­dinha. Súbito, a orquestra, de umas cinco figuras, co-meça a tocar. Nervosíssima, e com o pavor de novas cólicas, Letícia puxa Engraçadinha. Queria ter a prima ao lado. Tia Cotinha vem com mais uma colher de remédio. — “Toma! Toma!” Letícia, meio torturada (por causa das coxas finas e dos quadris um pouco estreitos), bebe de uma vez. Desceram as escadas, ao mesmo tempo; e naquela atmosfera cálida de música, de vozes, de ombros nus — Letícia experimentou um brusco deslumbramento. Já sofria menos o sentimento de inferioridade. Pararam, no último degrau. Sílvio aproxima-se (tão bonito!) e segurava a noiva pela mão. Olhando para outro lado, Engraçadinha ouviu o rapaz sussurrar para Letícia:
— Linda!
Engraçadinha sorria, disfarçando a própria fúria: — “Bobão!” Sentia-se muito mais bonita do que a pri­ma. E erguia a cabeça — os cabelos, em silêncio, des­ciam até os ombros. Ali, nas salas, tinha de tudo: — feias, simpáticas, bonitas ou simplesmente passáveis. Mas não havia nenhuma tão linda. Todos a olhavam. O Zózimo veio tirá-la. Sorriu para o noivo, num des­contentamento cruel. Zózimo dançava mal e era tão sem graça! No meio do fox teve que ralhar com o noi­vo: — “Não aperta tanto!” Em seguida, dançou outras vêzes, muitas vêzes. Cêrca de meia-noite, começou a desesperar-se: todo mundo a tirava, menos Sílvio. Prometia a si mesma: — “Eu me vingo!” Finalmente, depois da meia-noite (era desejada por todos, menos por êle), vai buscá-lo: — “Você não dança comigo?” Letícia, ao lado, dizia, melíflua:
— Dança com Engraçadinha, meu bem.
Saem os dois. A princípio, Engraçadinha não fala nada. Está comovida até as raízes do ser. Finalmente, ergue e aproxima o rosto; fala bem de perto, para que êle sinta o gôsto de sua bôca e veja a côr molhada de sua língua. Sussurra: — “Depois da dança, deixa pas­sar uns cinco minutos e vai pra biblioteca. Eu te espe­ro lá”. Fôra, sim, na frente. E, na biblioteca, numa espécie de embriaguez foi tirando tudo. Por um mo­mento, teve a sensação de que jamais uma mulher se despira tanto ou ficara tão nua. Sílvio abre a porta e estaca. Não entendia aquela nudez súbita e, com a mão no trinco, pensou em correr, fugir. Engraçadinha disse, quase sem mover os lábios:
— Vem.
Sílvio deu um passo. Com o calcanhar, empurra e fecha a porta. Caminha lentamente para a moça. Passa-lhe a mão por trás da cabeça; agarra os seus cabelos. Ela balbucia, num delírio:
— Tua noiva não faria isso!
Primeiro, êle a beija no pescoço. Depois, antes de juntar bôca com bôca, soluça:
— Cachorra!

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