sábado, 29 de agosto de 2009

CAPÍTULO X

Irmão Fidélis baixa a voz:
— Posso te fazer uma pergunta?
— Claro!
Insiste:
— E você responde?
— Respondo.
Respira fundo:
— Silvio foi o primeiro?
— Não ouvi.
Repete:
— Pergunto se, de fato, teu primo foi o primeiro ou se...
— Juro!
— E teu noivo?
A menina sente a dúvida do Irmão. Pensa: — “Bôbo!” Ri.
— O senhor quer que eu jure? Eu juro. Quer? Pela alma de meu pai?
Põe a mão no braço da pequena:
— Basta a tua palavra.
Mas a pequena continua:
— Naturalmente, o senhor pensa que, se eu, noiva de um, estive com outro, é porque, com certeza... Mas quero que Deus me cegue se minto. E lhe digo mais: — “Sílvio, quando voltou, não queria acreditar”...

* * *

Realmente, quando Sílvio chegou e a viu na sala, sozinha, quis retroceder. Acabara de levar Letícia; to­mara entre as suas as mãos da noiva, beijara uma e outra, com remorso, com vergonha e pensando: — “Tenho nojo de Engraçadinha!” Balbuciou, com mêdo de olhar Letícia: — “Adeus”. A noiva tem um certo espanto: — “Não me beija?” Êle ia responder que já lhe beijara as duas mãos. Letícia ergueu o rosto:
— Na bôca.
Roçou com os seus os lábios da pequena. Partira, fugindo. Puxou um cigarro. Experimentou a alegria de encontrar a caixa de fósforos; e fêz todo o percur­so de volta, repetindo para si mesmo: — “Tenho nojo daquela cara!” Tudo em Engraçadinha cheirava a voluptuosidade ordinária. E, sobretudo, uma coisa não lhe saía da cabeça: — a agilidade instantânea e acrobática com que a menina se enroscara. Sentira os rins triturados, sob a pressão das coxas. Entra na sala, di­zendo para si mesmo: — “Nunca mais”, ao dar com Engraçadinha, ia passar adiante. A prima está só; as empregadas andavam na copa, cobrindo os pratos, pu­xando cadeiras. Engraçadinha, que estava mexen­do numas flores, vira-se bruscamente e barra-lhe a passagem. Teve vontade de empurrá-la. Mas estava diante dela, sem ação e meio atônito. Mentalmente, comparava as duas: — Engraçadinha, que vira, ainda há pouco, tão delirante; e Letícia, que era de uma feminilidade tão sofrida e, ao mesmo tempo, tão de­licada. A pequena diz que o espera no quarto. Neste momento, Dr. Arnaldo sai da biblioteca, já de robe de chambre, chinelos. Disse, ao passar: — “Bonita, a festa”. Engraçadinha pede:
— A bênção, papai!
— Deus te abençôe!
E assim que êle some, Engraçadinha olha para Silvio. Faz-lhe com a bôca um bico de beijo, sussurra: — “Meu amante!” E êle:
— Nunca mais!

* * *

Claro que nunca mais. Todavia, pouco mais em­purrava a porta da prima. Em calças de pijama, nu da cintura para cima, descalço, aproximou-se da cama. Sentiu a mão da pequena no seu braço. Não podiam fazer barulho e Engraçadinha dizia: — “Chega pra cá”. Sílvio fica de bruços, com a cara enfiada na me­tade do travesseiro. Ela fala tão próximo que o rapaz sente a sua respiração na orelha. Ocorreu-lhe, então, a curiosidade que o Irmão Fidélis teria depois:
— Fui o primeiro?
Rio, no escuro:
— Seu burro! Ou você não percebeu?
Arqueja:
— Sei lá! Mulher é tão falsa!
Êle pensa: — “Não tem alma. É só fêmea”. Ah, se Letícia soubesse que, naquele momento, êle estava com Engraçadinha! No quarto em trevas, a intimidade era mais voraz, misteriosa e ameaçadora. Com surdo de­sespêro, pergunta:
— E teu noivo?
Com as unhas ela risca, novamente, as costas do primo. Êle sente na pele lanhos de fogo. Queria saber: — “Teu noivo te beija?” E ela: — “um boboca!” Fa­lam tão baixo que a voz é quase inaudível. E como não vêem o movimento dos lábios, têm que adivinhar cada palavra. Sílvio teima: — “Beija ou não beija?” E, de­pois, tem uma curiosidade ainda mais aguda e mais sofrida:
— Vocês nunca passaram de beijo?
Engraçadinha morde o seu ombro. Sílvio geme. Ela, então, beija na carne do rapaz a marca dos pró­prios dentes. Pergunta: — “Doeu?”: Diz: — “Um pouco”. Cicia:
— Meu amante.
Afunda a cara na fronha. Então, Engraçadinha falia juntinho do seu ouvido:
— Casa comigo?
Vira-se e senta-se na cama. A pequena senta-se também. Baixo e violento, êle a desilude:
— Está maluca? Mas oh criatura! Pensa, racioci­na! Eu sou noivo, você é noiva! E tio Arnaldo? Se tio Arnaldo souber, se desconfiar! Meu Deus do céu, se Letícia... Nem quero pensar! De mais a mais, Letícia põe a mão no fogo por ti!
— Vou falar com Letícia!
Desesperado, vira a menina e a segura pelos dois braços. Fala, rosto com rosto:
— Se você falar com Letícia. Olha: — eu nunca me julguei capaz de matar ninguém! Mas se você tiver essa audácia, eu sou capaz, nem sei! Te mato, Engra­çadinha !...
Larga a prima. Ela não se mexe. Deixa que Sílvio, fora de si, abandone o quarto. Começa a amanhecer. Engraçadinha sai da cama e vem abrir a janela; sumiu no alto a última estrêla da noite.

* * *

O almoço saiu tarde. Na mesa (Sílvio continuava no quarto), Dr. Arnaldo e Engraçadinha. Com o seu feito austero, de aparente positivista, e, depois de en­xugar os lábios com o guardanapo, pigarreia:
— Tive uma idéia.
Faz uma pausa desnecessária. Ainda uma pequena tosse e continua:
— Passa o arroz. Pois é: — estive pensando que os dois casamentos podiam coincidir.
Com o rosto sem mobilidade, a face hirta de más­cara, parecia ver os dois casais ajoelhados ante o mes­mo altar: — Engraçadinha e Zózimo, Letícia e Sílvio. Repetia para si mesmo com o olhar parado: — mesmo altar, mesma igreja, mesmo padre, mesmos coroinhas. Por um momento, fica assim, num meio sonho, en­quanto a filha baixa os olhos. Depois, êle suspira e serve-se de arroz.
Em seguida ao cafèzinho, que tomava aos peque­nos goles, com uma certa beatitude, uma fisionomia transcendente, Dr. Arnaldo sai para a Câmara. Os jor­nais já falavam, abertamente, de sua candidatura para o Govêrno do Estado. Logo depois, Engraçadinha saía também para a casa de Letícia. “Antes que Sílvio acor­de”, ia pensando. Foi uma surpresa na casa de Letícia. “Olhe quem está aí”, gritou a mãe da pequena. Letícia apareceu, no alto da escada:
— Sobe! Sobe!
— Volto já.
Deixou a velha com duas vizinhas, subiu. Em cima, enlaça a prima. Sopra-lhe:
— Houve uma desgraça.
A outra balbucia:
— Não me assusta.
Entram no quarto. Letícia fecha a porta à chave. Engraçadinha, sentada numa extremidade da cama, tira do sei o lenço pequenino. Começa a chorar. Ao mesmo tempo pensa — “Como é feia sem pintura”. Letícia pede: — “Fala! Conta!” Depois de assoar-se no lencinho, vira-se para a outra:
— Estou grávida!
Silêncio. Estupefata, Letícia, pergunta: “Como é que o Zózimo foi fazer uma coisa dessas?” Engraçadinha chora mais forte. Por entre lágrimas, espia a reação:
— Grávida de teu noivo.

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