quarta-feira, 26 de agosto de 2009

CAPÍTULO VII

Ainda ofegante, Irmão Fidélis põe-se de cócoras diante da menina e a segura pelos pulsos. Sem desfitá-la, estrangula a voz:
— Olha pra mim.
E ela:
— Estou olhando.
O Irmão pensa: — “Não vou agüentar muito tempo essa posição”. A articulação dos joelhos já lhe doía. Continua:
— Agora fala.
Admira-se:
— Mas o que? Falar o quê?
Aperta os pulsos da menina:
— Tudo!
Um pouco atônita, olha-o sem responder. Irmão Fidélis ergue-se (muito incômoda a posição). Apanhando uma cadeira, decide: — “Ela vai me contar tudinho!” Vem sentar-se de frente para Engraçadinha, quase joe­lho com joelho. De longa data, já notara que aquela menina, tinha, por vêzes, em tôrno dos olhos, um halo intenso. Para si mesmo, concluía: — “Eu sei como interpretar essas olheiras!” Exaltou-se de nôvo. E, coisa curiosa! Não fingia, nem representava. Toma, entre as suas, as mãos de Engraçadinha:
— Menina! — e repete, com uma violenta chama interior — Não sei o que houve, nem importa. Você é mais pura do que antes. Agora, sim, é que você é, real­mente pura!
Pára confuso... Pergunta a si mesmo: — “Mais pura depois do incesto?”. Vacila: — “Vou dizer que até as prostitutas são incorruptíveis. Mas ela entenderá isso? É por que “até” se as prostitutas são como nós?” Ergue a voz, com surdo sofrimento:
— Até as prostitutas são incorruptíveis! — e de nôvo baixo: — Olha aqui, vamos fazer o seguinte: — eu pergunto e você responde. Se por acaso, foi teu pai — eu não estou afirmando; é uma hipótese — mas se foi teu pai, você dirá: — “Foi meu pai”. Eu continua-rei perguntando: — Onde e quando? Naturalmente, foi aqui, presumo. Teu pai não te levaria para outro lugar — e faz a pergunta à queima-roupa: — “Foi no teu quarto?”
Ergueu o rosto:
— Biblioteca.
Olha em tôrno:
— Aqui?
E ela:
— Sim.
“Numa biblioteca!” — é o seu espanto. Com uma sensação de triunfo, sente que Engraçadinha dirá tudo. Com um mínimo de voz, sem valorizar a pergunta, Ir­mão Fidélis continua:
Êle te chamou e...
Interrompe:
— Fui eu a culpada.
Balbucia:
— Você? E culpada como?
Engraçadinha imaginava: — “O Irmão finge que nem me liga. Vem aqui e não olha pra mim. Duvido! Fingimento puro. Bem que no entêrro de papai, lá no cemitério, houve uma hora em que êle ficou me roçando. Mas eu, que não sou boba, percebi tudo. Quero ver a cara dêle, agora. Êle pensa que eu sou uma menina bobinha, cheia de pudor!” Irmão Fidélis pede: — “Con­tinua”. Suspira:
— Tenho vergonha.
Êle apanha com a mão o queixo da menina e ergue o seu rosto:
— Vergonha por quê? De mim? Mas, oh! Eu já não te disse que todos nós somos puros e cada vez mais puros? O pior devasso — o mais sujo — é, ainda, ima­culado. Fala! Eu não olho pra ti. Tapei o rosto. Agora explica: — você se diz culpada e por que?
Continua de cabeça baixa:
— Êle não queria.
— E você?
Ergue o rosto, numa espécie de desafio:
— Eu queria!
O Irmão Fidélis pensa: — “Foi ela que o tentou, que o atraiu, que o destruiu. Essa menina perde qual­quer um!” E não entendia como um pai feio e lívido, de canelas e coxas finas, um magro lúgubre — podia fascinar a filha adolescente. Fala:
— Bem. Você queria e êle não. Mas continua, e olha: — não importa o que você tenha feito. Um sim­ples ato não basta para corromper ninguém — e afir­mou enfático, arbitrário: — Não temos nada com os nossos atos! Agora, responde: — você chamou seu pai para cá?
Perguntava a si mesmo: — “Por que na biblioteca e não no quarto, dêle ou dela, e alta madrugada?” Já imaginava que o velho deputado tivesse experimentado um dêsses desejos bruscos e mortais. Com súbita ale­gria, Engraçadinha pergunta:
— O senhor se lembra daquela festa? Que papai deu? Aquela? Do noivado do Sílvio. O senhor se lem­bra, sim!
Claro que o Irmão Fidélis se lembrava. Sem tirar os olhos dêle, Engraçadinha pensava: — “Minhas coxas são mais bonitas que as de Letícia. E, além disso, Letícia tem varizes. Eu não suporto, não tolero varizes!” Engraçadinha pensa naquela noite e parece ter a festa diante dos olhos:
— Pois é: — foi o baile do noivado e da formatura de Sílvio. A noiva era Letícia. Eu estava de branco — um vestido muito bonito, que fêz muito sucesso — e até ouvi um palpite gozado; alguém me disse: — “Você parece mais noiva que Letícia”. E foi nesse dia, exatamente, quer dizer, nessa noite, exatamente. Pouco depois da valsa...
O Irmão Fidélis não podia compreender: — “Mas num dia de festa? Com a casa cheia?” Engraçadi­nha ri:
— Com a casa cheia. Não sei onde eu estava com a cabeça. Imagina que nem fechei a porta. Fechei só com o trinco.
Parecia feliz da própria audácia ou imprudência. Ficou subitamente de pé, como se precisasse de um certo espaço para evocar aquêle momento de sua vida. Espantado, sem o demonstrar, Irmão Fidélis ouvia tudo. O rosto de Engraçadinha deixara de ser uma máscara inescrutável. Êle a via pela primeira vez assim com a bôca sôfrega e cruel. “Estará grávida?” era a sua dú­vida. Por sua vez, Engraçadinha olhava-o sem pena: — “Também me acha gostosa. Babão como os outros”.
Começa, com os olhos brilhantes:
— Imagina o senhor que havia, lá na festa, no meio dos convidados, uma moça, aliás, bonita, muito bonita, — e repetia: — a mais bonita de tôdas. Dan­çando, ela disse ao par. Não disse, pensou: — “Vou acabar com êsse noivado, com êsse casamento”. Está prestando atenção?
O Irmão Fidélis começa a sofrer: — “Essa bestalhona está me fazendo de idiota”.

* * *

Sim, fôra há dois meses atrás, na festa de Sílvio. Êste, mocíssimo, formava-se em Direito (como o tio, Dr. Arnaldo) e noivava oficialmente com Letícia. Um e outro primos de Engraçadinha. Dr. Arnaldo o educa­ra. Sílvio era filho e (note-se) filho póstumo de um irmão do Dr. Arnaldo, o Severino. De fato, meses após a morte de Severino, num desastre de trem, nasce o ga­roto. A mãe, tia Guida, ainda arquejando das dores, balbucia:
— Ah, se o Severino estivesse aqui.
Dois anos depois, ela morre também e, se não me engano, da espanhola. “Tipo da morte estúpida”, di­riam . Ao que um parente, senhor ilustrado e irreverente, respondeu com lúgubre sarcasmo: — “Quem não morreu na gripe?” Dr. Arnaldo tinha por Severino um afeto quase obtuso, espécie de veneração, sei lá. Carregou o órfão de pai e mãe como se fôsse um menino-deus. Homem sóbrio, taciturno, fêz com o sobrinho o que não faria nunca com a filha. Por várias vêzes, abandonou o jeito austero e veio mudar a fraldinha do guri. De­pois, cheirava as mãos e ia lavá-las. Com a filha, fôra sempre um contido. Mesmo porque — diga-se de pas­sagem — a nudez de uma filha, ainda que de tenra idade, causava-lhe (coisa estranha!) um certo asco. Uma vez foi até interessante. A mãe de Engraçadinha pôs o casalzinho de primos na mesma banheira para o banho comum. Dr. Arnaldo soube e zangou feio:
— Tirando o pudor da menina? Ou será que você não tem consciência? Onde está a sua religião, mulher?
Era o caso de perguntar pela relação entre a fé e a inocência óbvia da nudez infantil. Mas estava deci­dido que o Dr. Arnaldo ia ficar sòzinho, com a filha e o sobrinho. D. Olímpia, que sempre fôra uma senhora lânguida, melíflua, de pressão baixa, suscetível de nos­talgia sem motivo — morreu de repente. Êle ficara com os dois e havia o cochicho mais ou menos univer­sal: — “Gosta mais do Sílvio que da Engraçadinha”.

* * *

Ouvindo Engraçadinha, Irmão Fidélis começou a ter-lhe um certo ódio: — “Cínica! Cínica!” Tio Nonô já a chamara por duas vêzes:
— Como é êsse negócio?
Resposta do Irmão Fidélis: — “Está quase”. Mas a pequena não ia direta ao fim. Perdia-se em detalhes e parecia mesmo ter o propósito de irritá-lo e confun­di-lo. Com a garganta apertada, Irmão Fidélis quis interromper:
— E teu pai?
Engraçadinha, porém, sem pressa, falava de tudo — de Sílvio, de Zózimo, de Letícia, da tal moça bonita, e esquecia o pai. Tornava-se evidente que prolongava, maldosamente, o mistério. Tia Zezé bate de nôvo:
— Vocês abrem?
Pensando: — “O Irmão vai ficar besta!” — Engra­çadinha continua:
— A moça bonita disse para alguém: — “Vai na biblioteca. Dá um pulo lá”. E explica: — “Tenho uma surprêsa pra ti”. Êsse alguém teve mêdo. Quando aca­bou a dança, ela foi na frente — não havia na festa uma tão linda. Ficou combinado que, cinco minutos depois, o fulano apareceria. Quando êle passou a mão no trinco e abriu a porta, viu aqui — olha — aqui...
A própria Engraçadinha colocou-se no lugar e re­petia :
— Aqui onde estou. Viu a moça nua. Completamente nua.
Irmão Fidélis balbucia: — “Quem viu? Teu pai?” E só no fim — depois de torturá-lo bastante — é que Engraçadinha disse o nome:
— Não foi meu pai. Meu pai não sabia de nada. Foi Sílvio. Sílvio não; Zózimo. Foi Zózimo.
Pausa. Desesperado, Irmão Fidélis pergunta: — “E a moça nua?”
Engraçadinha teve um sorriso muito tênue:
— Eu.

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