domingo, 30 de agosto de 2009

CAPÍTULO XI

Com o lábio inferior tremendo, e quase sem voz, Letícia disse:
— Eu não ouvi direito Engraçadinha, por favor, quer repetir?
Por um momento, a menina vacila. Tem mêdo, vergonha ou asco, sei lá. Não tirava os olhos de Letí­cia e êsse rosto tão próximo e sensível metia-lhe pavor. Como doeu em Engraçadinha o olhar da outra, um olhar estrábico de angústia! Seu impulso foi dizer-lhe: “Não foi nada. Eu não disse nada. Adeus!” Mas calou-se, ou, por outra, — ainda com a cêra das lágrimas pelo rosto, repetiu, com voz nítida e vibrante:
— Estou grávida do teu noivo.
Letícia entrelaça as mãos na altura do peito. Com uma orla de suor no lábio superior, não quer acreditar:
— Do Sílvio? Fala! Do Sílvio?
Então, Letícia começa a andar de um lado para outro: “Não é possível” — eis o que pensa — “Não pode ser! Foi o Zózimo e não o ‘Sílvio”. Repetia para si mesma: — “Sílvio não foi, ó meu Deus!” Tinha von­tade de assombrar a casa com seus gritos; tinha von­tade de bater com a cabeça nas paredes. Súbito, esta­ca diante de Engraçadinha. Perguntou, rouca:
— Por que Sílvio?
Põe a mão no ventre da prima, como se já pudesse sentir a maternidade palpitar como um coração. Mas Engraçadinha continuava com a cintura e o ventre de virgem. Sentindo que ia, pouco a pouco, matando a outra, Engraçadinha responde:
— Sílvio gosta de mim.
No seu espanto, pergunta:
— E você dêle?
E ela, com involuntária doçura:
— Eu dêle.
Apertando a cabeça entre as mãos — sem uma lágrima — voltada para a parede, Letícia teria uma por­ção de pequenas curiosidades femininas. Gostaria de saber o dia, a hora, sobretudo, onde os dois, pela pri­meira vez... De costas para a prima, e com um dilaceramento tão fundo, ela começava a sonhar em voz alta:
—Se você está grávida, é claro que não foi uma só vez. Foram muitas vêzes — súbito, exalta-se: — Ainda ontem, êle me beijou, Engraçadinha! Desculpe que eu te fale assim — me beijou na bôca e já gosta­va de ti!
Engraçadinha tem mêdo de respirar: — “Letícia vai morrer!” A outra, de costas para ela, queria rezar. Na sua pânica fragilidade, vivia fazendo promessas. De vez em quando, punha uma vela num pires, em in­tenção de alguém, de um desejo, de uma esperança. E se não eram promessas, recorria a simpatias familia­res que empregadas e vizinhas lhe ensinavam. Agora, teria simplesmente rezado. Chegou a iniciar uma ora­ção, que logo truncou. Lembrara-se que Sílvio devia ter visto Engraçadinha nua. “Claro que viu”, repetia. Ela própria achava lindo o corpo da prima. Vira-se para Engraçadinha; começa:
— Eu sei que, se você diz, não há dúvida...
A outra corta:
— Juro!
E Letícia, fora de si:
— Você não mentiria. Sílvio é o culpado. E já emendava: — “Culpado, não. Em amor não há culpa­dos, ninguém é culpado. Simplesmente, as coisas acon­tecem. Mas como eu ia dizendo. Desculpe, Engraçadi­nha, às vêzes o raciocínio me foge. O que é mesmo que eu estava dizendo? Ah, sim! Se Sílvio é o pai...”
— Ou você duvida?
Atrapalhou-se:
— Absolutamente. Eu acredito em você. E outra coisa, Engraçadinha: — eu mesmo falo com Sílvio.
Engraçadinha continuava sentada. A outra aproxima-se. Tinha uma sensação de luz, como se a febre fizesse arder, nos seus cabelos, um halo intenso. Inclina­-se um pouco, puxa e aperta de encontro ao seio a ca­beça da prima. Já Engraçadinha começa a sofrer. Per­gunta de si para si: — “Ou será fingimento. Fala assim, mas quem sabe?” Ao mesmo tempo, raciocina: — “Letícia é boa. Tem inveja de mim — da minha pele e das minhas coxas — mas é boa de coração, um anjo”. Lembrou-se de que, na infância de ambas, Letícia bei­java na bôca cãezinhos de rua. E, outra vez, Letícia espiara o parto de uma gata. Ante o processo misterio­so da natureza, aquêle trabalho de espasmos sucessi­vos, ela garotinha de cinco anos, assistira a tudo. Vira a golfada de gatinhos — e com que curiosidade mara­vilhada! Nenhum nojo e nem mesmo mêdo, e sim o instinto certo. Depois, levantara-se com o vestido man­chado de vermelho e nenhum pavor daquele sangue ardente de parto.
Já Engraçadinha tomara-se de uma espécie de ódio contra o bicho. Anos depois, sonhou que ela é quem se contraía naquela golfada de vida. Agora Letícia passa­va as mãos nos cabelos da pequena; e repetia baixo:
— Falo, ainda hoje, com o Sílvio. Falo, Engraçadinha.

* * *

Ao despedir-se, Engraçadinha apertou as duas mãos de Letícia: — “Você é um anjo”. O interessante é que, ao mesmo tempo, aceitava e negava a bondade da amiga. “Vai fazer uma sujeira comigo”, era o seu pânico. Voltando para casa, prometia a si mesma: — “Mas se Letícia usar de falsidade, faço um escândalo, conto tudo a papai, no mesmo instante”.
Depois do jantar, Letícia e a mãe apareciam na casa de Engraçadinha. Logo que pôde, Letícia vira-se para os demais:
— Vou namorar com o meu noivo!
Para Sílvio, soou falso a alegria da pequena. Olhou-a com certo mêdo: — “Representa”. Por sua vez, Letícia sente que a naturalidade do noivo é afetada demais. “Finge como eu”, pensa. Já não tinha dúvida de que Engraçadinha dissera a verdade. Saem os dois Na varanda, junto da grade, ficam, por um momento, calados. Letícia deduz: — “Tem remorso”, Caminham até a extremidade da varanda e, brusca­mente, ela pergunta:
— Sílvio! Por que você não foi sincero, não foi leal comigo, Sílvio? Por que?
O rapaz não entende: — “Mas eu sempre fui sin­cero!” E ela, sem olhá-lo:
— Como se explica que, sendo meu noivo, você goste de outra? Ame outra?
Recuou, assombrado: — “Eu não gosto de nin­guém. Gosto de você”! Letícia crispa a mão no seu braço:
— Por que você mente, Sílvio? Você está men­tindo!
E êle:
— Dou-lhe minha palavra! Você acredita na mi­nha palavra?
Repete chorando:
— Não é de mim que você gosta. Você gosta de Engraçadinha. Olha para mim e responde: “Não é de Engraçadinha que você gosta?”
Sùbitamente, compreende tudo. Diz algo: — “Ela falou contigo. Não falou contigo? Eu sabia!” Letícia olha-o como a um homem perdido para o seu amor. Pensa: — “O Sílvio! Meu amor é por tôda a vida. Sem­pre gostei de ti, desde garotinho, Sílvio. Deus sabe que eu não minto. E eu não presto, eu sou má, porque te­nho ódio de Engraçadinha. Mas ela é tão bonita, En­graçadinha é linda e que corpo! Ah, se eu tivesse o corpo de Engraçadinha, ou as coxas!” O rapaz está fora de si:
— Essa menina é cínica!
Agarra-se a êle: “Fala baixo!” E continua, quase boca com bôca:
— Sílvio, eu não admito que você fale assim da mãe do seu filho!
— Que mãe e que filho?
Pergunta num sôpro de voz:
— Ou você não sabe que Engraçadinha está grá­vida? De ti, sim, senhor!
Tem um riso sórdido, pesado:
— Te disse isso? É mais ordinária do que eu pen­sava! Ah, cínica! Letícia, meu amor, eu te juro! Quero morrer leproso, se não é verdade o que eu vou dizer: Escuta. Eu não tive nada com Engraçadinha, nunca.
Letícia pedia: — “Fala baixo! Fala baixo”! E o rapaz:
— “Só tive ontem. Ontem foi a primeira vez. Ou melhor: na madrugada de hoje! Hoje, ouviu?” Sílvio a sacudia: — “E queres que eu te conte tudo?” Deixou o noivo falar:
— Quando eu abri a porta da biblioteca, ela esta­va lá, nua. Vê que sem-vergonha! Completamente nua!
Protestou:
— Não! Se ela te esperou nua, foi por amor, ou não sentes que foi amor? Eu não fiz isso, eu não faria isso, por causa talvez da minha formação... Mas o que importa é o amor. O amor que eu não tive. Ela te deu tanto, Silvio!
Parou, exausta. Queria dizer-lhe: — “Eu não te dou a ninguém. Te quero para mim. Fica comigo. Foge comigo. Vem”. Soluça:
— Sílvio, você tem que casar com Engraçadinha.

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