Com o lábio inferior tremendo, e quase sem voz, Letícia disse:
— Eu não ouvi direito Engraçadinha, por favor, quer repetir?
Por um momento, a menina vacila. Tem mêdo, vergonha ou asco, sei lá. Não tirava os olhos de Letícia e êsse rosto tão próximo e sensível metia-lhe pavor. Como doeu em Engraçadinha o olhar da outra, um olhar estrábico de angústia! Seu impulso foi dizer-lhe: “Não foi nada. Eu não disse nada. Adeus!” Mas calou-se, ou, por outra, — ainda com a cêra das lágrimas pelo rosto, repetiu, com voz nítida e vibrante:
— Estou grávida do teu noivo.
Letícia entrelaça as mãos na altura do peito. Com uma orla de suor no lábio superior, não quer acreditar:
— Do Sílvio? Fala! Do Sílvio?
Então, Letícia começa a andar de um lado para outro: “Não é possível” — eis o que pensa — “Não pode ser! Foi o Zózimo e não o ‘Sílvio”. Repetia para si mesma: — “Sílvio não foi, ó meu Deus!” Tinha vontade de assombrar a casa com seus gritos; tinha vontade de bater com a cabeça nas paredes. Súbito, estaca diante de Engraçadinha. Perguntou, rouca:
— Por que Sílvio?
Põe a mão no ventre da prima, como se já pudesse sentir a maternidade palpitar como um coração. Mas Engraçadinha continuava com a cintura e o ventre de virgem. Sentindo que ia, pouco a pouco, matando a outra, Engraçadinha responde:
— Sílvio gosta de mim.
No seu espanto, pergunta:
— E você dêle?
E ela, com involuntária doçura:
— Eu dêle.
Apertando a cabeça entre as mãos — sem uma lágrima — voltada para a parede, Letícia teria uma porção de pequenas curiosidades femininas. Gostaria de saber o dia, a hora, sobretudo, onde os dois, pela primeira vez... De costas para a prima, e com um dilaceramento tão fundo, ela começava a sonhar em voz alta:
—Se você está grávida, é claro que não foi uma só vez. Foram muitas vêzes — súbito, exalta-se: — Ainda ontem, êle me beijou, Engraçadinha! Desculpe que eu te fale assim — me beijou na bôca e já gostava de ti!
Engraçadinha tem mêdo de respirar: — “Letícia vai morrer!” A outra, de costas para ela, queria rezar. Na sua pânica fragilidade, vivia fazendo promessas. De vez em quando, punha uma vela num pires, em intenção de alguém, de um desejo, de uma esperança. E se não eram promessas, recorria a simpatias familiares que empregadas e vizinhas lhe ensinavam. Agora, teria simplesmente rezado. Chegou a iniciar uma oração, que logo truncou. Lembrara-se que Sílvio devia ter visto Engraçadinha nua. “Claro que viu”, repetia. Ela própria achava lindo o corpo da prima. Vira-se para Engraçadinha; começa:
— Eu sei que, se você diz, não há dúvida...
A outra corta:
— Juro!
E Letícia, fora de si:
— Você não mentiria. Sílvio é o culpado. E já emendava: — “Culpado, não. Em amor não há culpados, ninguém é culpado. Simplesmente, as coisas acontecem. Mas como eu ia dizendo. Desculpe, Engraçadinha, às vêzes o raciocínio me foge. O que é mesmo que eu estava dizendo? Ah, sim! Se Sílvio é o pai...”
— Ou você duvida?
Atrapalhou-se:
— Absolutamente. Eu acredito em você. E outra coisa, Engraçadinha: — eu mesmo falo com Sílvio.
Engraçadinha continuava sentada. A outra aproxima-se. Tinha uma sensação de luz, como se a febre fizesse arder, nos seus cabelos, um halo intenso. Inclina-se um pouco, puxa e aperta de encontro ao seio a cabeça da prima. Já Engraçadinha começa a sofrer. Pergunta de si para si: — “Ou será fingimento. Fala assim, mas quem sabe?” Ao mesmo tempo, raciocina: — “Letícia é boa. Tem inveja de mim — da minha pele e das minhas coxas — mas é boa de coração, um anjo”. Lembrou-se de que, na infância de ambas, Letícia beijava na bôca cãezinhos de rua. E, outra vez, Letícia espiara o parto de uma gata. Ante o processo misterioso da natureza, aquêle trabalho de espasmos sucessivos, ela garotinha de cinco anos, assistira a tudo. Vira a golfada de gatinhos — e com que curiosidade maravilhada! Nenhum nojo e nem mesmo mêdo, e sim o instinto certo. Depois, levantara-se com o vestido manchado de vermelho e nenhum pavor daquele sangue ardente de parto.
Já Engraçadinha tomara-se de uma espécie de ódio contra o bicho. Anos depois, sonhou que ela é quem se contraía naquela golfada de vida. Agora Letícia passava as mãos nos cabelos da pequena; e repetia baixo:
— Falo, ainda hoje, com o Sílvio. Falo, Engraçadinha.
* * *
Ao despedir-se, Engraçadinha apertou as duas mãos de Letícia: — “Você é um anjo”. O interessante é que, ao mesmo tempo, aceitava e negava a bondade da amiga. “Vai fazer uma sujeira comigo”, era o seu pânico. Voltando para casa, prometia a si mesma: — “Mas se Letícia usar de falsidade, faço um escândalo, conto tudo a papai, no mesmo instante”.
Depois do jantar, Letícia e a mãe apareciam na casa de Engraçadinha. Logo que pôde, Letícia vira-se para os demais:
— Vou namorar com o meu noivo!
Para Sílvio, soou falso a alegria da pequena. Olhou-a com certo mêdo: — “Representa”. Por sua vez, Letícia sente que a naturalidade do noivo é afetada demais. “Finge como eu”, pensa. Já não tinha dúvida de que Engraçadinha dissera a verdade. Saem os dois Na varanda, junto da grade, ficam, por um momento, calados. Letícia deduz: — “Tem remorso”, Caminham até a extremidade da varanda e, bruscamente, ela pergunta:
— Sílvio! Por que você não foi sincero, não foi leal comigo, Sílvio? Por que?
O rapaz não entende: — “Mas eu sempre fui sincero!” E ela, sem olhá-lo:
— Como se explica que, sendo meu noivo, você goste de outra? Ame outra?
Recuou, assombrado: — “Eu não gosto de ninguém. Gosto de você”! Letícia crispa a mão no seu braço:
— Por que você mente, Sílvio? Você está mentindo!
E êle:
— Dou-lhe minha palavra! Você acredita na minha palavra?
Repete chorando:
— Não é de mim que você gosta. Você gosta de Engraçadinha. Olha para mim e responde: “Não é de Engraçadinha que você gosta?”
Sùbitamente, compreende tudo. Diz algo: — “Ela falou contigo. Não falou contigo? Eu sabia!” Letícia olha-o como a um homem perdido para o seu amor. Pensa: — “O Sílvio! Meu amor é por tôda a vida. Sempre gostei de ti, desde garotinho, Sílvio. Deus sabe que eu não minto. E eu não presto, eu sou má, porque tenho ódio de Engraçadinha. Mas ela é tão bonita, Engraçadinha é linda e que corpo! Ah, se eu tivesse o corpo de Engraçadinha, ou as coxas!” O rapaz está fora de si:
— Essa menina é cínica!
Agarra-se a êle: “Fala baixo!” E continua, quase boca com bôca:
— Sílvio, eu não admito que você fale assim da mãe do seu filho!
— Que mãe e que filho?
Pergunta num sôpro de voz:
— Ou você não sabe que Engraçadinha está grávida? De ti, sim, senhor!
Tem um riso sórdido, pesado:
— Te disse isso? É mais ordinária do que eu pensava! Ah, cínica! Letícia, meu amor, eu te juro! Quero morrer leproso, se não é verdade o que eu vou dizer: Escuta. Eu não tive nada com Engraçadinha, nunca.
Letícia pedia: — “Fala baixo! Fala baixo”! E o rapaz:
— “Só tive ontem. Ontem foi a primeira vez. Ou melhor: na madrugada de hoje! Hoje, ouviu?” Sílvio a sacudia: — “E queres que eu te conte tudo?” Deixou o noivo falar:
— Quando eu abri a porta da biblioteca, ela estava lá, nua. Vê que sem-vergonha! Completamente nua!
Protestou:
— Não! Se ela te esperou nua, foi por amor, ou não sentes que foi amor? Eu não fiz isso, eu não faria isso, por causa talvez da minha formação... Mas o que importa é o amor. O amor que eu não tive. Ela te deu tanto, Silvio!
Parou, exausta. Queria dizer-lhe: — “Eu não te dou a ninguém. Te quero para mim. Fica comigo. Foge comigo. Vem”. Soluça:
— Sílvio, você tem que casar com Engraçadinha.
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