segunda-feira, 31 de agosto de 2009

CAPÍTULO XII

Sílvio perdeu a cabeça:
— Escuta! Meu bem, você não sabe o que está dizendo!
Novamente, Letícia trava-lhe o braço:
— Fala baixo! Fala baixo!
Tinha mêdo que o tio Arnaldo aparecesse, de repen­te. Sílvio baixa a voz:
— É uma mentirosa! Mentiu, Letícia! E eu não queria! Foi uma cilada!
Letícia apanha o rosto do ser amado entre as mãos. Pergunta:
— Não era virgem? Era. Deixou de ser virgem por ti e contigo.
Na sua violência, êle quis objetar que também se finge virgindade. Mas Letícia, abraçada ao noivo (e se alguém os surpreendesse?), unindo seu corpo ao dêle, embriagando-se com o seu hálito, não o deixou falar:
— Eu quero! — repetia — Eu quero!
Êle a contempla com espanto, quase com ódio. Parecia-lhe que o altruísta é um pobre ser vazio, sem ima­ginação nem voluptuosidade, que, afinal, não sacrifica nada. Disse: — “Você não me ama!” Letícia balbucia: — “Não te amo, Sílvio?” Olha-o, ainda uma vez, como se quisesse ter uma memória dessa másca­ra atormentada. Sente o que jamais sentira: agora que o perdia, teve por êsse homem um desejo brusco e cruel. Prende nos dentes o seu lábio, até sangrar. Síl­vio recua, levando a mão à bôca. Estão calados e ofegantes. Foi Sílvio quem primeiro falou:
— Acredita em mim...
Ao mesmo tempo pensa: — “Letícia nunca me bei­jou assim!” Ela passa de leve os dedos nos seus lábios: — “Te feri? Te machuquei?” Continua, com a imaginação trabalhada pela febre:
— Promete que... Sílvio, eu jurei que tu serias noivo de Engraçadinha... E te peço — sou eu que te peço, Sílvio! — que você repare... É uma reparação. É um direito que não temos o de humilhar ninguém. E você desejou, Sílvio! É uma menina, quase uma criança, que você desejou na noite do nosso noivado. Conta pra mim. Não é verdade? Querido, eu compreen­do! Não me zango, pode falar!
Pára. O rapaz não tem o que dizer. Letícia queria perguntar: — “Mas ela ficou mesmo nua? E comple­tamente? Tirou as meias? Tu achaste o corpo bonito? É lindo? Não é lindo? Oh, Sílvio” Mas não perguntou nada. Sentindo-se doente da imaginação, vira-se para o noivo:
— Vamos, Sílvio. E não te esqueças: se, por acaso, você se recusar...
Letícia caminha um pouco na frente. Silvio quer segurá-la pelo braço: — “Vem cá”. Ela se desprende:
— ...Se você não fôr marido de Engraçadinha, nunca mais — isso é sério! — nunca mais falarei con­tigo . Vem!
Desesperado, Sílvio a seguiu. Ao mesmo tempo, Dr. Arnaldo aparecia na porta:
— Vocês sumiram! Mas venham: Engraçadinha, Zózimo! Onde está o Zózimo?
— Saiu.
E o Dr. Arnaldo:
— Ora pinóia! Vem cá, Sílvio, Letícia chega aqui. O Zózimo não volta mais?
Engraçadinha teve de explicar que Zózimo estava com nevralgia. O velho ainda resmungou: — “Algum foco!” Todos reunidos, êle, com uma suave satisfa­ção, uma vaidade sóbria, contou a idéia que lhe ocor­rera: os dois casamentos, no mesmo dia, na mesma igreja, na mesma hora. Sílvio olha, primeiro para Le­tícia, depois para Engraçadinha. Com uma contração no estômago, apanha um cigarro. Tio Arnaldo insistia. Fazia os cálculos, em voz alta!
— Dez coroinhas!
Dr. Arnaldo era o homem de pequenas fixações. O projeto de casamento simultâneo ia empolgá-lo. Que­ria a opinião de todos. Com uma das mãos na bengala e a outra em cima do joelho, virava-se para as tias e para os noivos, com uma cintilação meio sinistra no olhar triste e fixo:
— Que tal?

* * *

Assim que Sílvio e Letícia passaram da sala para a varanda — uns cinco minutos depois — aparecia lá o Zózimo. Se alguém perguntasse a Engraçadinha: — “Por que é que o Zózimo é teu noivo?”, ela não saberia responder. Agora mesmo, ao olhá-lo — sem ternura, nem pena — ela experimentava um sentimento cruel de tédio. “Chato”, repetia para si mesma. O rapaz sen­ta-se, a seu lado. Por um momento, Engraçadinha fe­cha os olhos e pensa, na sua irritação: — “Sua nas mãos”. E outra coisa que a exasperava: a humildade de Zózimo. Não se contam às vêzes em que ela troçara dos seus modos: — “Não se deve ser tão humilde. Você é humilde demais”. Então o rapaz, numa humil­dade ainda maior, babujava:
— Eu tenho veneração por você!
Ela se crispava, como se aquela veneração a eno­jasse. Por vêzes, o espicaçava: — “Você parece que gosta de se rebaixar. Eu grito com você. Pois reaja!” Chegou a adverti-lo: — “Um dia, vou fazer uma expe­riência contigo: vou te dar uma bofetada. Mas olha! Se você não der outra, brigo contigo!” O noivo abria os braços, numa incompreensão honesta e profunda: “Você acha que eu vou te bater, Engraçadinha?” Era, porém, benquisto naquela casa. Prestava pequenos ser­viços à família; pagava a conta da luz e do gás para o velho; dava injeção nas tias. Como eu ia dizendo: Zó­zimo senta e Engraçadinha já o recebe com o pé atrás:
— Você bebeu!
Balbucia :
— Quem?
E ela, com cara de nojo:
— Não bebeu? Ah, bebeu! Estou sentindo o chei­ro de bebida. Confessa: bebeu?
— Juro!
Mentia. Embora não tivesse o vício da bebida, vi­nha do batizado de um sobrinho, e, sabe como é: con­versa daqui, dali, e, sem sentir, tomara de quatro a cinco chopes. Não estava bêbedo, claro; mas era fraco para bebida. Sentia-se, nêle, uma certa crepitação sus­peita, digamos. De resto, o hálito de álcool não admi­tia dúvidas. Ainda uma vez, mentia por humildade e não lhe ocorreu a confissão normal e válida: o batiza­do do sobrinho. Com uma crueldade triunfante, ela re­petia: — “Quer dizer que você deu pra beber!” E acres­centou: — “Não tolero bêbedo. Vira pra lá”. Descon­certado, negava ainda: — “Não bebi, filhinha”. En­graçadinha pensa, naquele momento, que riscara as cos­tas de Sílvio, com as unhas, de alto a baixo. Pergun­tava, de si para si: — “Será que êle vai no meu quar­to, hoje?” E, súbito, Zózimo pára de negar. Admite:
— Bebi, sim. Pouca coisa, mas bebi. Perdão, mi­nha vidinha.
Quis segurar-lhe o braço. Engraçadinha foge com o corpo: — “Enxuga as mãos, enxuga. Que melação!” Zózimo puxa o lenço: — “Desculpe”. E, de fato, aquê­le suor inestancável das mãos e entre os dedos é a sua humilhação irredutível. Engraçadinha perde a pa­ciência:
Zózimo, pelo amor de Deus! Por que você ainda pede desculpas? Eu falo demais, Zózimo. Eu não tenho nada que você beba ou deixe de beber, por que você não se impõe? Nem parece homem!
Com a mão enxuta, apanha a de Engraçadinha:
— Você está nervosa!
Tinha um olhar triste, um olhar de perdão, que a enfurecia. Ela não se conteve. Trinca os dentes:
— Zózimo, vamos acabar, Zózimo!
Faz espanto:
Engraçadinha vacila: — “Devo esperar mais dois ou três dias ou decidir já?” Não resistiu. Arranca a aliança do dedo (ao mesmo tempo, controlava a volta do pai que foi ao banheiro) e a entrega ao noivo:
— Toma!
Os beiços do rapaz começavam a tremer: — “Que é isso?” Baixa a voz:
— Leva!
Apanha a aliança. Quis protelar: —”Você me dá amanhã”. Teima: — “Agora”. O pobre diabo pergunta a si mesmo, num dilaceramento total: “Mas o que é que fiz? Eu não fiz nada!” Diz: — “Engraçadinha, eu...” As lágrimas estão caindo. Depois: — “Engraçadi­nha...” A menina corta:
— Escuta: — “Você gosta de mim? Muito bem: — se gosta, vai embora. Vai embora, pelo amor de Deus! Nós não combinamos. Mas vai embora! Ou você quer que eu grite? Quer que eu dê um escândalo? Zózimo, vai embora! E leva a aliança!”
Como um louco, o rapaz ergue-se: — “Você me expulsa?” A própria Engraçadinha está espantada com à sua raiva. Antes que o pai aparecesse, diz: — “Não chateia, e olha: não somos mais noivos, não somos nada. Depois, eu falo com papai. Some da minha fren­te”. Êle chega a dar dois passos. Estaca e retrocede. Baixa a voz:
— Eu sou o mesmo. Você conta comigo, sempre. Adeus.
Ela não se entendia. O que era simples tédio, fun­dira-se, de repente, num ódio ativo e devorador. Ti­vera de escorraçá-lo de si. Sentia-se livre de uma hu­mildade que parecia enroscar-se, materialmente, nas suas pernas.

* * *

Todos concordaram com o Dr. Arnaldo. “Ótima idéia”, disseram. Animado, o deputado ergueu-se. Êsses pequenos êxitos da vida familiar davam-lhe uma certa embriaguez. Nessas ocasiões, chegava a pensar na Presidência da República. Letícia já ia se despedir. Puxa o noivo para um canto: — “Vai dizer aquilo a Engraçadinha”. Enquanto Sílvio se afasta, Letícia in­veja a facilidade sôfrega com que Engraçadinha se des­pira. Concluiu que a prima arriscara a própria nudez porque não tinha, nem varizes, nem coxas finas. Sílvio está falando baixo para Engraçadinha:
— Você me paga. E quero te avisar uma coisa: eu me casaria com a última das vagabundas, menos con­tigo. E não diz nada, não fala, Engraçadinha, porque eu perco a cabeça e te quebro a cara agora mesmo!
Engraçadinha, sorri-lhe com uma naturalidade muito doce: — “Você vai lá? A porta está só encos­tada”. Trêmulo, êle volta para a noiva. Letícia não quer que êle a acompanhe. Baixa a voz: — “Não, não e não!” Submete-se, desesperado. Mas tarde, no quar­to, Sílvio anda de um lado para outro, numa alucinação. Depois, descalço, sai e caminha no escuro. Junto à porta de Engraçadinha, empurra. Fechada. Torce o trinco. Tranca-se à chave. Outra vez mexe no trinco. Na sua angústia, teria posto abaixo a porta. Se pudesse gritar: “Sou eu! Abre!” Nunca a desejara tanto. E, ali, os braços em cruz, passa muitas vêzes o corpo na porta. Depois, volta para a cama, chorando.

Nenhum comentário: