terça-feira, 1 de setembro de 2009

CAPÍTULO XIII

Deitada na cama, com a camisola puxada até os joelhos, sentira alguém mexer no trinco, pelo lado de fora. Aquilo deu-lhe uma brusca euforia. Riu, no es­curo: — “É êle! Veio!” Pensava, trincando os dentes: — “Não abro e bem feito!” Imaginou o sofrimento, o desejo de Sílvio. Passava o rosto, o corpo na porta. Depois, Engraçadinha percebeu que êle se afastava, le­vando para longe a sua febre. Repetiu para si mesma: “Bobo”, trança os pés, ri baixinho, levando a mão à nuca.
De manhã, bem cedinho, liga para a prima. Com a maior facilidade, simula tristeza, desespero e até chora.
— Sabe o que êle me disse ontem? Que me quebra­va a cara!
Do outro lado, Letícia faz espanto:
— Não é possível! Disse isso? Sílvio mudou mui­to! Mas pode deixar. Falo com êle, não está direito. Mas escuta, Engraçadinha. Teu noivo? Sabe ou descon­fia?
Suspira:
— Desmanchamos.
— Já?
— Ontem.
Por um momento, Letícia calou-se. Lembrava-se de Zózimo, que era um bom, um manso, um dos poucos homens no Brasil que ainda se ruborizavam. Ficava vermelho por tudo. Um simples cumprimento o deixa­va atônito. Tio Nonô, com o seu exagero caricatural e a sua grandiloqüência de gordo, costumava dizer: — “Todo tímido é candidato a um crime sexual”. Letícia tinha por êle uma ternura apiedada. Arrisca a pergunta: —”Ficou triste, o Zózimo? Ou já esperava?” Engraçadinha irritou-se:
— Vocês estão muito enganados com o Zózimo! Não queira saber o que tenho sofrido! Aparenta uma coisa, mas olha: — quando está sòzinho comigo, um cavalo!
Letícia balbuciou: — “Não parece!” Foi então que Engraçadinha tomou coragem e fêz a pergunta:
— E você. Triste? Diz a verdade: — você gostava muito de Sílvio, gostava? Mas não minta, Letícia!
Fazia a pergunta com inesperada; sinceridade. E se, naquele momento, a outra tivesse pedido o noivo de volta, talvez, Engraçadinha, quem sabe? Gostava de Letícia e não queria perdê-la. O único sofrimento que a espantava era o da prima. E, ali, no telefone, chegou a pensar: — “Sílvio podia continuar as duas coisas: — noivo de Letícia e meu amante!” Teve uma vontade doida de rir. “Depois, marido de Letícia e meu amante da mesma maneira!” Prendeu o riso, mas já mudava de opinião, com seu egoísmo de apaixonada: — “Está muito bem assim e vamos deixar como está”. Letícia estava dizendo:
— Te juro, Engraçadinha: não tenho raiva de ti. Tu não és culpada de nada. E, além disso, olha: — se há uma culpada sou eu!
— Por quê?
Respirou fundo (sorria por entre lágrimas) :
— Eu amo Sílvio, mas falta a meu amor, sabe o quê? Desejo? Falta desejo a meu amor. É isto! E o homem não perdoa, nem aceita. O defeito é meu.
Engraçadinha não soube o que dizer. A bondade da prima a confundia. Pensava, com surdo sofrimento: — “Letícia quer ser melhor que todo o mundo. Tanta bondade chateia?”. Novamente, teve a suspeita de uma abnegação simulada. Letícia suspira:
— Eu não interesso. Olha: — você faz o seguinte: — não fala, não diz nada. Eu resolvo tudo. Converso, hoje mesmo, com tio Arnaldo.
— Com papai?
— Mas claro! Não podemos perder tempo. Ou você se esquece que está grávida?
De fato, esquecera a falsa gravidez. Letícia continuou:
— Sílvio diz que não. Diz que não houve tempo. Mas eu prefiro acreditar em ti. E, afinal de contas, Engraçadinha, êsse casamento tem que sair o mais depressa possível, o quanto antes. Você não pode casar de véu e grinalda e uma barriga de nove meses.
Suspira:
— É mesmo, mas tenho medo. Mêdo de papai. Fala amanhã. Amanhã você fala.
Teimou:
— Hoje.
E ela:
— Está bem: — hoje. Mas escuta: — hoje, mas sem a minha presença. Vou passar o dia fora. Aparece aqui, depois do jantar. Está bem? Depois do jantar?

* * *

Preparou-se e avisou que ia, primeiro à cidade, e depois, à casa de tia Zenaide. Acrescentou nervosa: — “Talvez eu jante lá. Ainda não sei”. Teve um arre­pio intenso. Era o mêdo do pai. Aquela polidez que era, digamos, fisicamente gelada, a espantava. Teria preferido talvez que fôsse como Tio Nonô. Antes o riso ultrajante, a vitalidade bestial do outro, do que a afe­tação lívida do Dr. Arnaldo. Saiu, depois de beijar a tia Ceci que vinha da varanda. Ia apanhar condução mais adiante. Chega na esquina e dá com o Zózimo, lá, numa tocaia de ex-noivo. A menina bate com o pé e tem o muxoxo:
— Que inferno!
Na obstinação de sua humildade, começa:
— Engraçadinha, olha aqui...
Interrompe furiosa:
— Não adianta! Quantas vêzes quer que eu repita a mesma coisa? E que amolação!
O rapaz arquejava: — “Você não mudou de idéia?” A menina olha para os lados. Tem mêdo que vizinhos, ou simples transeuntes reparem. Exclama:
— Oh, meu Deus! Ou será que eu não falo portu­guês?
Gostaria de ter pena desse homem, um mínimo de pena. Êle, porém, a olhava como se a lambesse! Men­talmente fazia a comparação: a humildade de Zózimo e a violência do outro. Sílvio falara, até, em quebrar-lhe a cara. Por um momento ela perguntou a si mesma se êle seria capaz de lhe dar uma surra. Zózimo estava mostrando, na palma da mão, a. aliança devolvida:
— E você aceitaria, de volta, a aliança? Ao menos isso? Só isso, Engraçadinha. Aceita?
Exasperou-se:
— Zózimo, estão me esperando. Alguém está a mi­nha espera. Você me compreende ou preciso ser mais clara? Eu gosto de outro. Eu não queria dizer, mas você me força, Zózimo! De quem é a culpa? Sua! Está satisfeito? E, agora, você vai me responder: — você se casaria comigo, nessas condições? Sabendo que eu vou enganar, trair? Não, claro. Pois é, Zózimo!
Pergunta, quase sem voz:
— Gosta de outro?
E ela:
— Evidente! Convenceu-se?
Ela poderia ter acrescentado: — “O sujeito disse que me quebraria a cara, que me dava um soco na bôca! E você, Zózimo, com essa humildade, que é que vai querer você? Pelo amor de Deus!” Zózimo ergue o rosto:
— Engraçadinha, já que é assim... Você desculpe, mas se um dia...Você já sabe, não sabe?
Ela teve que apertar a mão encharcada.

* * *

Sílvio tomou um choque, ao vê-la entrar no escri­tório. Pouco antes, falara, no telefone, com Letícia. E quando soube que esta ia falar com o tio Arnaldo, to­mou-se de uma fúria obtusa e potente. Em voz baixa, mas violento, foi dizendo: — “Mas isso está passando da medida! Você está louca?” Letícia exaltou-se tam­bém:
— Se você disser mais uma palavra, passo a consi­derar você um canalha!
Balbuciou: — “Letícia!” A noiva, ou ex-noiva, foi implacável: ...
— Vou dizer ao tio Arnaldo isso assim, assim. E, depois logo depois, comunica-se à família. Até logo.
Desligou. Engraçadinha apareceu pouco depois. A pequena vinha pensando: — “Eu não entendo Letícia. Isso é até suspeito. Ninguém entrega o amor, a vida, a felicidade, de mão beijada”. Julgava sentir na abne­gação da prima algo de falso. “E cuida de tudo, por quê?” Sorria para o primo estupefato. Funcionários da firma andavam por perto. Com uma voz quase inaudível, brincou:
— Dá um beijo?
E êle, pálido:
— Vamos ali.
Levou-a para o corredor. Engraçadinha sentiu, ao passar, que todo o escritório a olhava. Meses atrás, ela confessara a Letícia: — “Gosto de ser desejada”. Con­versaram junto ao bebedouro de água gelada. Ela bai­xa a voz, docemente:
— Você foi lá? Não foi?
Não entendeu. Engraçadinha insiste: — “Você não mexeu no trinco da porta? Era você?” Disse com a voz estrangulada:
— Não!
— Seu mentiroso! Foi e bateu com o nariz na porta! Não bateu com o nariz na porta? Mas olha: — hoje pode ir. Pode ir que eu só deixo encostada. Não fecho.
Olha em tôrno. Ninguém. Então, ali mesmo, Sílvio deu-lhe a bofetada e tão inesperada e violenta que En­graçadinha chegou a dobrar os joelhos, como se fôsse desmaiar. A bolsa caiu e a menina apóia-se na parede. Automàticamente, Sílvio apanha a bolsa e a entrega. Ela passa dois dedos no canto da bôca: — sangrava e enxuga levemente. Diz sem desfitá-lo, um pouco sofrida:
— Te amo.

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