sexta-feira, 7 de agosto de 2009

MARGARIDA

Durante os meses de gravidez, houve toda sorte de palpi­tes quanto ao sexo da criança. Menino? Menina? A mãe agarrou-se à parteira. Mas esta quis tirar o corpo fora. Tanto insistiram que ela sempre deixou escapar alguma coisa, embora com uma ressalva:
— Não é certo, não. Mas, pelas batidas do coração, deve ser menino.
Suspiro materno:
— Ah, eu queria tanto uma menina!
Protestavam: “Mas que bobagem! O primeiro filho deve ser homem!”. Edgardina era obrigada a explicar: “O negócio é o seguinte: menina faz mais companhia!”. O pai, Amadeu, não ti­nha preferência: “Tanto faz, tanto faz. Eu topo tudo”. E, no dia do parto, foi até interessante. Amadeu, no corredor, gemia de dor de dente. De repente, abrem a porta, ele se arremessa e re­cebe o impacto da notícia:
— Menina!
Estacou sem coragem de entrar: as lágrimas corriam gros­sas e fartas e o rapaz abriu os braços para o teto: “Oh, graças, meu Deus; graças!”. No quarto, cansada de muito sofrer, a mu­lher pediu: “Beija-me”. Adiante, nuazinha, em cima de uma toa­lha felpuda, estava a menina, E, de repente, Amadeu tem a ex­clamação:
— Ué! Minha dor de dente passou!

MARGARIDA

Durante vários dias, parecia bobo, de tanta felicidade. Confidenciava no emprego: “Tem a minha cara!”. De vez em quando, porém, mergulhava em meditação e desabafava: “Es­tou pensando no dia em que minha filha namorar”. Era enérgico e reacionário: “Não topo namoro de portão, esquina ou ci­nema; tem que ser dentro de casa”. Os colegas achavam graça:
— Toma jeito!
Finalmente, no terceiro ou quarto dia, bate o telefone. Era Edgardina: “Vem correndo, Amadeu. Tua filha está morrendo!”. Atirou-se, em mangas de camisa; e, como o elevador demoras­se, veio mesmo pela escada, como um louco. Quando entrou em casa, era tarde. Nunca se soube ao certo como foi aquilo. A menina, com quatro dias de nascida, teve uma agonia breve, quase imperceptível. Mal se sentiu quando morreu.
Os pais quase enlouqueceram. Edgardina recuperou-se mais depressa. As vizinhas, as parentas se debruçavam em cima de sua dor; usou-se muito o seguinte argumento: “Deus sabe o que faz”. Mas o que realmente a impressionou foi o que lhe disse uma tia, senhora de muita experiência.
— Quem sabe se, mais tarde, ela não ia sofrer muito? Quem sabe?
Em redor, houve o coro das comadres:
— Mulher sofre tanto!
O marido, porém, foi mais difícil de convencer. Queria so­frer, fazia questão de cultivar a própria dor. Depois do enterro, deu a ordem: “Manda todos os ternos para o tintureiro”. E nin­guém o dissuadiu do luto fechado. A própria Edgardina suge­riu, a medo: “Mas eu sempre ouvi dizer que não se punha luto para recém-nascido”. Foi categórico:
— Se ninguém põe, eu ponho. Graças a Deus, tenho sen­timento!
Ao mesmo tempo, anunciou que queria um novo filho, isto é, uma nova filha. A mulher quis achar que ainda era cedo etc. etc. Amadeu cortou as suas ponderações: “Não, senhora, em absoluto! Se Deus quiser, dentro de nove meses, eu terei outra filha, com o mesmo nome”. Na verdade, o que ele admitia, no seu desespero, é que a próxima filha seria a mesma, renascida.

A TRAGÉDIA

Nove meses depois, nascia um menino. A princípio, Ama­deu não quis compreender: “Menino?”. Estava tão certo de que seria menina que experimentou um desgosto medonho. Quase blasfemou: “Não é possível, meu Deus, não pode ser!”. A famí­lia, vendo a sua dor obtusa, já admitia a hipótese de uma psico­se; houve resmungos: “Ora veja!”.
Começou, então, a luta contra a natureza, contra a fatalida­de, talvez contra o demônio. Ano após ano, nascia uma criança naquela casa; e sempre menino. Amadeu encarniçava-se: “Hei de ter uma filha nem que o mundo venha abaixo!”.
Pouco a pouco, tomava-se de surdo rancor contra Edgardina, como se a mulher fosse responsável pelo sexo dos filhos. Ele esbravejava na presença das visitas: “Se a primeira foi mu­lher, por que os outros não são, meu Deus?”. A mãe, em voz baixa, confidenciava a queixa para as conhecidas:
— Gozado! E eu é que pago o pato!
Ela, com efeito, enchia-se de horror da maternidade. Sem­pre que tinha um filho, fazia, na hora, a pergunta: “Menino ou menina?”. A resposta não variava: “Menino”. Só faltava mor­rer. Finalmente, o sétimo filho foi uma menina. Assim que cons­tatou o sexo da criança, Amadeu foi com um cortejo de vizi­nhos para o boteco da esquina. Com o lábio trêmulo, o olhar de alucinado, berrou:
— Pode beber todo mundo, que eu pago!
Tomou um pileque tremendo e comemorativo.

A NOVA MARGARIDA

Foi um descanso para todo mundo e, sobretudo, para Edgardina. Avisou em alto e bom som: “Esse negócio de filho, já sabe. Stop. Nunca mais, que eu não sou máquina de filhos, ora essa!”. Quanto ao Amadeu, era outro homem. Realizara o dese­jo que era sua obsessão e podia piscar para os amigos: — “Já tive a filha. Agora vou viver a minha vida”.
Estava, porém, envelhecido. Casara-se tarde e as atribulações dos últimos anos o encheram de rugas e cabelos brancos. Celebrara, há pouco, o quadragésimo quinto aniversário. Os ami­gos mais íntimos o chamavam de “o velho” e diziam, às garga­lhadas: “Você não dá mais no couro”. Era uma blague, mas que tinha um fundo de verdade melancólica.
Em casa, olhando para a mulher, gorda, desleixada, sentia um gosto amargo na boca. Mas talvez continuasse na rotina implacável se, um belo dia, não encontrasse uma alegre conheci­da dos seus tempos de solteiro. Era madame Ziza.
Muito dada e espalhafatosa, ela foi dizendo: “Tomaste um banho de desaparecimento?”. Contou que estava estabelecida, num lugar assim, assim, e prosperava de uma maneira desen­freada. Baixou: “Sabes qual foi meu grande golpe?”. Ele quis saber e madame Ziza soprou a revelação:
— Os brotinhos! Só trabalho com brotinhos!
— No duro?
— Palavra de honra!
Despediram-se, afinal; e madame ainda insistia: “Aparece, aparece!”. Durante dias, meses e até anos, ele pensou, com des­lumbramento e náuseas, nesse lugar onde meninas de família, simples colegiais, quase crianças, tinham a primeira experiên­cia de amor infame. Por vezes, o assaltava a idéia de procurar madame. Mas pensava na própria filha. Confessava aos amigos: “Se eu fosse a um lugar desses, não teria mais coragem de bei­jar minha filha”.
“Deixa de ser burro. Então, me dá o telefone de madame, dá?” Acabou dando. E dois ou três amigos que, em épocas diferentes, foram lá vinham fora de si. Contavam maravilhas: “Madame me arranjou uma menina de quinze anos, imagina!”. Surgiam outros detalhes: “Menina de família, filha de um pro­fessor!”.
Durante horas e horas, Amadeu ficava ouvindo as minúcias mais vis. Insistiam com ele: “Vai lá, vai lá!”. Embora sentindo a tentação nas profundezas do ser, reagia:
— Isso é uma indignidade! Onde já se viu? Uma menina de quinze anos!

A INFÂMIA

Correu o tempo. E, afinal, chegou o dia em que Margarida fez quinze anos. Segundo as vizinhas, muito exuberante, era bo­nita como uma pintura. Outros diziam: “uma adoração de pe­quena”. Sobretudo os olhos chamavam a atenção, por causa do azul extraterreno. Houve uma grande festa de aniversário e quem visse a menina, na sua graça frágil e intensa, não esqueceria, ja­mais, sua imagem.
No dia seguinte, na cidade, Amadeu dá de cara com mada­me. Muita festa, de parte a parte, e, no fim, ela convida, formalmente: “Vem que eu tenho, pra ti, um broto espetacular! Uma coisa por demais!”. E insistiu: “Fabulosíssima!”. Amadeu, trans­pirando, duvidara: “Pode não fazer fé com minha cara”. A ou­tra foi categórica: “Deixa de ser bobo. Faz fé com qualquer um. Eu mesma, te juro que fiquei besta. Uma vocação, meu filho”.
Então, aquele pobre velho, que praticamente só conhecia a rotina conjugai, experimentou uma espécie de embriaguez. A aventura o seduziu pelo que oferecia de inédito, de sórdido, de abjeto. Deixou-se levar; sentia-se dominado por um delírio lúcido e terrível.
Subiu umas escadas, percebeu um cheiro de flores e, por fim, estava numa sala. Madame soprou-lhe: “Dois mil cruzei­ros, hein? Tabela especial. Mas o artigo vale muito mais”. Ele esperou, em pé, com os ombros vergados ao peso de uma ve­lhice subitamente maior e inapelável. Vem alguém, com passos macios, no corredor. É ela, só pode ser ela. Aparece, agora, e ele tem uma espécie de uivo.
Não pode ser e, no entanto, está diante dele, com um pija­ma cinza, finíssimo, sua filha Margarida. A menina corre, foge. Ele segue no seu encalço e a segura no corredor. Ela pensa que o pai vai matá-la. Espera a morte e quase a deseja. E, súbito, Ama­deu perfila-se. Diz-lhe, sem ódio, com uma ternura que resistiu a tudo:
— Eu não quero, Ouviste? — E repetiu, duas vezes, sem desfitá-la: — Nunca mais, nunca mais!
Matou-se, ali mesmo, a seus pés. Desde então, sempre que madame a chamava, Margarida experimentava uma brusca e agu­da nostalgia do pecado. Queria dizer “sim”. Mas aparecia, diante dos seus olhos, uma cabeça grisalha e ensangüentada; e a meni­na gritava, ao telefone, três vezes “não”.

Um comentário:

Jamylle Bezerra disse...

Já falei que adoro seu texto né? Eles são envolventes, não há como começar e não terminar de ler. Parabéns mais uma vez! Virei fã!