terça-feira, 4 de agosto de 2009

VIÚVA ALEGRE

Quando seu Neves passou, de cara amarrada, os emprega­dos cochicharam entre si:
— No mínimo, brigou com a mulher!
E, de fato, cinco minutos depois, ele abria a porta do gabi­nete. Esbravejou:
— Cadê o Carvalhinho? A besta do Carvalhinho, onde está?
Não se dirigia a ninguém. Levanta-se então, do fundo da sala, espavorido, Amadeu, o guarda-livros. No seu passo rápido e miúdo de pigmeu, atravessa todo o escritório. Chega junto a seu Neves, põe-se quase na ponta dos pés e sussurra:
— Morreu.
O outro recua:
— Quem?
— O Carvalhinho.
Pálido, pergunta:
— Morreu? Mas de quê, carambolas? Ainda ontem estava bonzinho!
Amadeu resume:
— Coração.
Sem uma palavra, seu Neves apanha o lenço no bolso tra­seiro da calça e enxuga o suor da testa. A morte, fosse como fosse, o assombrava. Desde criança que perguntava de si para si: “Por que se morre?”. E concluía: “Ninguém devia morrer, nunca!”. No caso do Carvalhinho, havia uma agravante: o mor­to fora, até a véspera, seu secretário. Numa impressão profun­da, seu Neves vira-se para Amadeu:
— Entra, entra. Preciso falar contigo.
E trancava nas costas os dedos em figas.

MARIDO HUMILHADO

Carvalhinho morrera na véspera, durante o jantar, quando se servia de sopa. Preliminarmente, seu Neves determinou: “Olha, Amadeu. Manda uma coroa em meu nome, uma coroa bem bacana, ouviu?”. Sentou-se na cadeira giratória. Passada a desagradabilíssima surpresa da notícia, recuperava-se rapidamen­te. De um modo ou de outro, o fato é que a morte do Carvalhi­nho vinha distraí-lo de um feio bate-boca que tivera em casa, com sua esposa Guiomar.
Enquanto o Amadeu vai tratar da coroa, seu Neves andava no gabinete, de um lado para o outro, fazendo uma revisão de sua vida matrimonial. Segundo se dizia, casara-se com Guiomar por interesse. E, com efeito, ela era filha de um italiano riquís­simo, dono de trinta padarias, ao passo que seu Neves não tinha nada de si, senão dívidas.
O fato é que seu Neves comia no lar o pão que o diabo amas­sou. Sofria as mais graves desconsiderações. Na presença de vi­sitas, de estranhos, Guiomar o humilhava, sem dó nem pieda­de: “Quando você se casou comigo, era um pronto! Não tinha onde cair morto!”. E seu Neves, indefeso, rilhava os dentes, nu­ma treda e torva humilhação. Nesta manhã, ela o desacatara fe­rozmente:
— Você é um marido que eu pago! O marido que eu com­prei!

CONFISSÃO

Até aquele momento, fora de uma discrição exemplar. Ja­mais abrira a boca para falar mal da esposa. Mas, ao fim de cin­co anos de cotidiana humilhação, sentia-se no limite extremo da resistência. Gemia de si para si mesmo: “Eu não agüento mais! Não suporto mais”. Quando o Amadeu voltou da casa de flo­res, seu Neves o pilhou para confidente: “Senta aí, senta”. E explica: “Hoje eu tenho de desabafar com alguém ou morro”. Diante do subalterno espantado, fez as confidências mais deslavadas. Começou mais ou menos assim:
— Vou te contar o que nunca disse a ninguém: eu me casei por causa do dinheiro de minha mulher, percebeste? Puro inte­resse e nada mais. Conclusão: estou pagando tudinho. Tu co­nheces minha esposa: é um bucho?
O acovardado Amadeu gagueja:
— Eu não acho!
Seu Neves salta:
— Acha sim, seu 2ebu! É um bucho, ouviu? É horrorosa! Mas, enfim, podia ser bucho e prestar, ser uma boa pessoa. Nem isso! Nem isso! É uma megera, compreendestes? Ela me trata a pontapés. Qualquer dia desses me dá na cara!
Parou, arquejante. Ao lado, o Amadeu, trêmulo, era incapaz de um comentário. Seu Neves continua. Tem um riso feroz:
— Eu invejo! Invejo os maridos que matam, que esfolam! Te juro que só não mato minha mulher por falta de coragem física. Sou um banana!
E berrava: “Um banana!”.
No fim, vira-se para Amadeu e, quase sem fôlego, diz:
— Resolvi fazer o seguinte: não gosto de minha mulher. Até aqui, fui estupidamente fiel. Não faço uma farra. Mas vou deixar de ser burro. Minha mulher tem dinheiro, não tem? Vou gastar o dinheiro dela com outras mulheres. E vai começar ho­je. Percebeste?
— Percebi.
Seu Neves põe-lhe a mão no ombro: “Conto contigo pra isso!”. O outro esbugalha os olhos: “Comigo?”. E o chefe, trans­pirando, em voz baixa:
— Contigo sim. Queres subir aqui, não queres? Conheces alguma dona, que seja boa, muito boa, pra lá de boa? Estou dis­posto a pagar bem. Dinheiro há!
Silêncio de Amadeu, que era, a um só tempo, tímido e am­bicioso, taciturno e voraz. Seu Neves enxuga com o lenço o suor do rosto. Interroga o rapaz: “Conheces alguma nessas condi­ções? Disponível para hoje?”.
Resposta vaga: “Estou pensando”. E, com efeito, durante uns cinco minutos, ele força a memória. Por fim levanta-se:
— Achei.

A PEQUENA

Seu Neves arremessou-se:
— Quem?
E o outro:
— A viúva!
A princípio, seu Neves não entende: “Qual delas?”. Sem desfitar o patrão, Amadeu completa:
— A viúva do Carvalhinho.
Atônito, o chefe realiza todo um penoso esforço mental. Mas quando percebe, afinal, a sordidez da sugestão, só faltou bater no subordinado: “Você está maluco? Bebeu? Me acha com cara de abutre? De necrófilo?”. Agarra o Amadeu pelos braços e o sacode: “Você acha que eu vou dar em cima da viúva do meu secretário, no dia em que ele é enterrado?”. Sem perder a calma, Amadeu trata de convencê-lo. Explica:
— Carvalhinho andava traindo a mulher com uma dona, compreendeu? E sabe por que ele empacotou? Porque a mu­lher, ontem, descobriu tudo, inclusive a identidade da gaja, e o escrachou durante o jantar. Eu estava lá, vi e ouvi.
— E daí?
Amadeu acende um cigarro:
— Mas é claro como água! Uma mulher despeitada, seja viú­va, seja o que for, faz qualquer negócio. Eu aposto os tubos! Aposto o que o senhor quiser! Quer apostar?
Então, enfiando as duas mãos nos bolsos, seu Neves per­gunta:
— E a minha situação? Você se esquece de minha situação? Ela pode ser despeitada, mas eu não sou, ora bolas! Negócio de defunto é espeto! Sempre tive um medo danado de defuntos!

VIÚVA

Fosse como fosse, Amadeu sugere: “Vamos lá dar uma es­piada. Não custa espiar”. Seu Neves concordou. Ao meio-dia, partem de automóvel para a residência do morto, no subúrbio. E o patrão foi dizendo: “Não telefonei para minha mulher, por­que não gosto de dar notícias de morte”.
Quase ao chegar ao destino, seu Neves lembra-se: “E que tal? Ela é boa, é?”. Amadeu estala a língua: “Um monumento!”.
Quando surgiram no velório, seu Neves ia escabreado, ao passo que Amadeu, na frente, varava os grupos. Em dado mo­mento, Amadeu cutuca o outro: “Espia!”. Ele olha na direção indicada e recebe um impacto. A viúva, junto do caixão, perce­be que aquele, o chefe do marido, crava as unhas no seu braço: “Ah, é o senhor?”. Balbucia: “Pois não... Meus pêsames”. A pequena teve um meio riso, entre sardônico e apiedado. Indaga: “Sua senhora não veio? Não? Não sabe?”. Amadeu, ao lado, ex­plicou que a esposa do patrão ainda não sabia. Então, a viúva não perde tempo: “Quer vir, aqui, um instantinho, quer?”. Seu Neves, espantado, acompanha-a até o jardim. Lá ela começa:
— Meu marido arranjou esse emprego por influência de sua senhora. O senhor nunca estranhou esse interesse? Nunca des­confiou de nada?
Conversaram uma meia hora, em voz baixa. Cada pessoa que chegava, já sabe, arregalava os olhos, sem compreender que uma viúva abandonasse o velório do marido. Por fim, ela ergueu-se: “Não vou ficar aqui, nem vou ao cemitério. Quer sair comi­go?”. Foi um escândalo quando eles, de braço, deixaram a casa e apanharam um automóvel. Seu Neves andou de táxi pela ci­dade com a viúva, horas e horas. Deixou-a, alta madrugada, na residência de um parente.
E, então, voltou para o lar. Chegou em casa, acordou a es­posa e deu-lhe uma surra.

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