Ligou da casa de tia Adelaide (eram seis e pouco) :
— Ah, tia Zezé. Sou eu!
— Engraçadinha?
E a menina:
— Papai já chegou? Ah, já? Pergunta se eu posso jantar aqui, pergunta!
— Um minutinho.
Sorriu:
— Eu espero.
Enquanto tia Zezé ia e vinha, a pequena repetiu para si mesma: — “Fui esbofeteada”. Olhava as primas (Marli e Zuzana) que a tinham levado ao telefone. Sorria-lhes em silêncio e, com a mão livre, num movimento inconsciente, acariciou a face batida. A bofetada fôra para ela um prazer agudo e nôvo, um encanto desconhecido. Imaginava os dois casados. Seria uma convivência dilacerada de voluptuosidade. Talvez êle a esbofeteasse outras vezes, quem sabe?
Naquele momento, tia Zezé procurava o Dr. Arnaldo. O velho chegara há pouco da Câmara Estadual; dirigira-se à biblioteca, depois de beber água gelada. Quando tia Zezé bateu, êle estava examinando um parecer, ou, por outra: — não estava examinando nada. Com o papel esquecido em cima da mesa, pensava no que ouvira, minutos antes, na Assembléia. Eis o fato — ia saindo, quando vê o Saraiva, num grupo de deputados. Achava o Saraiva uma das cabeças daquela Casa. Aproxima-se para cumprimentá-lo. No grupo estava também o Aprígio, velho colega, já avô, e um sujeito indigno de qualquer cargo eletivo. Vivia pelos corredores contando anedotas, as mais desprimorosas. Agora mesmo, o Aprígio não se pejava de esfregar na cara dos presentes a sua intimidade sexual. Assim concluía tal indivíduo: — “Comigo não tem bandeira! Minha mulher conhece tudo! E não precisa trair para conhecer mais!” Foi tal a fúria do Dr. Arnaldo que esteve para dar umas bengaladas no sátiro imundo. — “Ah, o Hitler aqui! Encostava êsse miserável no muro e tome bala!” Tia Zezé bate e entra:
— Engraçadinha pode jantar com Adelaide?
Dr. Arnaldo pensou um pouco. Não dava nunca uma resposta imediata. Era de parecer que se deve fingir uma dúvida para valorizar as decisões. Suspira:
—Pode jantar. Eu deixo.
Tia Zezé sai sòzinho, na sua raiva impotente, Dr. Arnaldo ainda imaginava o Hitler, como ditador do Brasil, fuzilando deputados como aquele, que levava para a alcova conjugai as misérias dos alcouces. Houve um momento em que Dr. Arnaldo ergue-se, empunhando a bengala; o ressentimento tornou sua fisionomia ainda mais lívida e ainda mais lúgubre. Mas batem novamente. O deputado senta-se às pressas, ainda arque-jante. Letícia abre a porta e faz alegremente a pergunta :
— Dá licença?
Fôsse outra, e não Letícia, a sobrinha de sua preferência enternecida, e teria permanecido rígido como uma estátua de si mesmo. Eis a verdade: — êsse homem público, de uma afetividade escassa ou nula, fazia duas ou três exceções. Letícia era uma delas. Tinha-lhe afeto e, mesmo, admiração. Êle costumava dizer, com o seu jeito grave e irrecorrível: — “Letícia não é como as outras. Letícia é diferente!” Em que consistia essa “diferença” só o próprio poderia dizê-lo. Mas o fato é que êle julgava perceber na sobrinha uma certa “ordem sexual”. Não sei se traduzo corretamente o pensamento do deputado; digo (“ordem”, como poderia dizer “harmonia” ou, se quiserem, “disciplina”). Nas outras sobrinhas, inclusive na própria filha, Dr. Arnaldo sentia como que uma disposição voluptuosa. Receava que um pretexto banal deflagrasse essa voluptuosidade contida. Letícia, não. Êle saiu de onde estava, fêz tôda a volta da mesa de jacarandá e veio, com a inseparável bengala, recebê-la:
— Como vai a feliz noiva?
Riu, ou sorriu, muito vermelha:
— Assim, assim. Um pouco resfriada.
Fê-la a sentar-se. Letícia que, geralmente, era uma menina tranqüila e até, por vêzes, um pouco calada, começava a sentir um dilaceramento. Em pé, apoiando-se na bengala, Dr. Arnaldo olhava para a pequena, com a esperança, de que ela fôsse fria. Já não lhe bastava uma sexualidade saudável e dominada. Não. Queria mais. Repetiu para si mesmo: — “A espôsa deve ser fria”. Continuou, duramente, o seu monólogo: — qualquer volúpia, mesmo entre marido e mulher, é uma mácula, realmente uma mácula. Sorriu para Letícia, que não sabia por onde começar. Êle respirou fundo:
— Você está bem, Letícia — e repetiu, com mais ênfase. — Agora, você está bem. Muito bem.
(Era de parecer que uma futilidade repetida adquire foros de transcendência). Depois de assoar-se ligeiramente, Letícia guardou na bôlsa o lencinho bordado. Começa, vacilando:
— Tio Arnaldo, eu vim porque... — pára e continua precipitadamente. — Eu estou aqui como filha, como se fôsse filha do senhor.
— Filha?
E ela:
— Faz de conta que eu sou sua filha.
Sorria, no seu enleio. O velho inclina-se, vivamente:
— Ótimo. Eu gosto de você como uma filha, vejo você como uma filha. Não faço diferença entre você e Engraçadinha. Ou faço? Faço diferença?
Responde, atrapalhada:
— Não, absolutamente. Aliás, desde que papai morreu, eu considero o senhor como pai.
Pensa: — “E se êle soubesse que a filha foi deflorada?” Ao mesmo tempo ocorre-lhe a reflexão: — “Palavra linda “deflorada!”” Imagina o choque do velho ao receber a noticia. Êle espera e deduz: — “É nobre demais para ser sensual”. Parecia-lhe que a mulher “nobre” tem de ser fria, já que qualquer desejo — mesmo de marido para mulher — é fatalmente vil. Letícia queria fazer uma certa preparação. Deu-lhe a notícia, porém, à queima-roupa:
— Titio, eu não sou mais noiva de Sílvio.
Silêncio. Discreto espanto do tio:
— Como? Ou será que ouvi mal? Repete.
Letícia respira fundo:
— Infelizmente, titio... Quero que o senhor compreenda... Mas eu e Sílvio, de comum acordo, achamos que era melhor acabar...
O velho não se mexia. Era de opinião que um homem de certa responsabilidade (êle não era nenhum joão-ninguém), sim um homem de certa responsabilidade não pode perder a cabeça. Seu padrão de comportamento pessoal e político era um Epitácio, um Frontin. Um ou outro tinha, na vida prática, um ar de retrato oficial. Diante de Letícia, quis manter essa atitude chatamente fotográfica. E como realmente não exteriorizava o seu tumulto interior, sentia-se mais do que nunca um Frontin, um Epitácio. Outro êxito pessoal sobre a emotividade foi a voz firme e nítida:
— Você está brincando? Não pode ser, minha filha! Desmanchar um noivado que não tem 48 horas? E, além disso, não, Letícia, não, e nem creio que você seja dessas... — e repete pondo a bengala em cima da secretária: — Se você fôsse uma leviana, vá lá! Uma menina como você só faria se tivesse um motivo, um grande motivo. Minto? Fala!
Tomou coragem:
— Titio, há, titio, êsse motivo! Pode crer: — há! Dissera tudo de um jato. Ainda contido, êle pensa que a figura de um Frontin, de um Epitácio (a face do Frontin era rósea como nádega de anjo) não comportava nem berros, nem murros. Mais do que nunca, cumpria-lhe não se exaltar. Pensou também nos debates da Câmara dos Comuns de bom nível. Letícia começa a achar que aceitara uma missão superior às suas fôrças: — “Titio não sabe de nada. O meu noivado é um detalhe. O importante é Engraçadinha. Ah, quando êle souber que Engraçadinha foi deflorada! É como é que eu vou dizer? Como? Êle foi até o fundo da biblioteca e volta, lentamente. Está sentindo falta de alguma coisa e não sabe o quê.” Estaca diante da sobrinha :
— Bem. Há um motivo. Vejamos qual.
Letícia torce e destorce as mãos.
— Titio, eu soube que Silvio gosta de outra. Êle próprio não nega. O senhor não acha que isso é um motivo?
Desta vez, êle perde um pouco a calma:
— Há outra? Sílvio gosta de outra? Ah, não! Protesto e como?
Continua sentindo que lhe faltava alguma coisa. Mas o quê? Repetiu, com energia: — “Ah, não! Nunca! Não acredito”. Letícia está sob a idéia, fixa: — “Quando êle souber da gravidez!” Dr. Arnaldo anda de um lado para outro. Coisa curiosa! No meio de sua angústia geral, há um sofrimento menor e indefinível. “Falta alguma coisa”, repetia para si mesmo. Já se controla menos e pergunta:
— E que outra? Se você afirma, sabe. Ou não sabe? Tem que saber! — Alteia a voz: — “Quem é a outra?”
Letícia vacila: — “Digo ou não? Ou é melhor dizer?” Conclui: — “Vou dizer”. Sem desfitá-lo, pede:
Não se exalte, titio. Não quero que o senhor fique zangado.
Pela primeira vez, zangou-se, de fato:
— Menina, quem é que está exaltado ou zangado? Você não me conhece, menina!
Já lhe custa conservar o autocontrôle. E continuava a sentir que lhe faltava, mas o quê? Olha em tôrno e, súbito, pousa a vista na bengala. Era aquela a origem da angústia menor e marginal. De fato, sem a bengala sentia-se um ser desfalcado, incompleto. Com um movimento sôfrego e triunfante, apanhou-a em cima da mesa de jacarandá. Agora, sim! Com aquilo na mão, voltava a ser êle mesmo, em tôda a plenitude. Volta-se para Letícia, que o olha, atônita. Exige:
— Há uma outra. Muito bem. Tem um nome. Quero o nome. O nome!
Disse, afinal:
— Engraçadinha.
Estupefacto, murmura:
— Não... Não...
Mas a outra, desesperada, foi até o fim:
— Êles se gostam, titio! Êles se amam! Devem se casar!
O tio recua como se tivesse recebido um pé no peito. Logo, reage; perde a cabeça. Deixou o ar de fotografia de Presidente ouvindo o Hino Nacional. Não é mais retrato. Deu murros na mesa: — “Menina, você está louca! Está maluca, menina?” Arquejava: — “Impossível! Qualquer casamento, menos êsse! Não admito! Engraçadinha com Sílvio, não!” Letícia ergueu-se. Começou a sentir uma pressão nos maxilares. Sua calma se fundiu numa agressividade histérica:
— Vão se casar, sim! Ela está grávida! — E soluçava: — Grávida!
O velho já não gritava mais. Não esmurrava a mesa. Tinha mêdo.
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