quarta-feira, 2 de setembro de 2009

CAPÍTULO XIV

Ligou da casa de tia Adelaide (eram seis e pouco) :
— Ah, tia Zezé. Sou eu!
— Engraçadinha?
E a menina:
— Papai já chegou? Ah, já? Pergunta se eu posso jantar aqui, pergunta!
— Um minutinho.
Sorriu:
— Eu espero.
Enquanto tia Zezé ia e vinha, a pequena repetiu para si mesma: — “Fui esbofeteada”. Olhava as pri­mas (Marli e Zuzana) que a tinham levado ao telefone. Sorria-lhes em silêncio e, com a mão livre, num movi­mento inconsciente, acariciou a face batida. A bofeta­da fôra para ela um prazer agudo e nôvo, um encanto desconhecido. Imaginava os dois casados. Seria uma convivência dilacerada de voluptuosidade. Talvez êle a esbofeteasse outras vezes, quem sabe?
Naquele momento, tia Zezé procurava o Dr. Arnal­do. O velho chegara há pouco da Câmara Estadual; dirigira-se à biblioteca, depois de beber água gelada. Quando tia Zezé bateu, êle estava examinando um pa­recer, ou, por outra: — não estava examinando nada. Com o papel esquecido em cima da mesa, pensava no que ouvira, minutos antes, na Assembléia. Eis o fato — ia saindo, quando vê o Saraiva, num grupo de depu­tados. Achava o Saraiva uma das cabeças daquela Casa. Aproxima-se para cumprimentá-lo. No grupo estava também o Aprígio, velho colega, já avô, e um sujeito indigno de qualquer cargo eletivo. Vivia pelos corre­dores contando anedotas, as mais desprimorosas. Ago­ra mesmo, o Aprígio não se pejava de esfregar na cara dos presentes a sua intimidade sexual. Assim concluía tal indivíduo: — “Comigo não tem bandeira! Minha mulher conhece tudo! E não precisa trair para conhe­cer mais!” Foi tal a fúria do Dr. Arnaldo que esteve para dar umas bengaladas no sátiro imundo. — “Ah, o Hitler aqui! Encostava êsse miserável no muro e tome bala!” Tia Zezé bate e entra:
— Engraçadinha pode jantar com Adelaide?
Dr. Arnaldo pensou um pouco. Não dava nunca uma resposta imediata. Era de parecer que se deve fingir uma dúvida para valorizar as decisões. Suspira:
—Pode jantar. Eu deixo.
Tia Zezé sai sòzinho, na sua raiva impotente, Dr. Arnaldo ainda imaginava o Hitler, como ditador do Brasil, fuzilando deputados como aquele, que levava para a alcova conjugai as misérias dos alcouces. Houve um momento em que Dr. Arnaldo ergue-se, empunhan­do a bengala; o ressentimento tornou sua fisionomia ainda mais lívida e ainda mais lúgubre. Mas batem no­vamente. O deputado senta-se às pressas, ainda arque-jante. Letícia abre a porta e faz alegremente a per­gunta :
— Dá licença?
Fôsse outra, e não Letícia, a sobrinha de sua pre­ferência enternecida, e teria permanecido rígido como uma estátua de si mesmo. Eis a verdade: — êsse ho­mem público, de uma afetividade escassa ou nula, fazia duas ou três exceções. Letícia era uma delas. Tinha-lhe afeto e, mesmo, admiração. Êle costumava dizer, com o seu jeito grave e irrecorrível: — “Letícia não é como as outras. Letícia é diferente!” Em que consistia essa “diferença” só o próprio poderia dizê-lo. Mas o fato é que êle julgava perceber na sobrinha uma certa “ordem sexual”. Não sei se traduzo corretamente o pensamento do deputado; digo (“ordem”, como pode­ria dizer “harmonia” ou, se quiserem, “disciplina”). Nas outras sobrinhas, inclusive na própria filha, Dr. Arnal­do sentia como que uma disposição voluptuosa. Receava que um pretexto banal deflagrasse essa voluptuosidade contida. Letícia, não. Êle saiu de onde estava, fêz tôda a volta da mesa de jacarandá e veio, com a inseparável bengala, recebê-la:
— Como vai a feliz noiva?
Riu, ou sorriu, muito vermelha:
— Assim, assim. Um pouco resfriada.
Fê-la a sentar-se. Letícia que, geralmente, era uma menina tranqüila e até, por vêzes, um pouco calada, co­meçava a sentir um dilaceramento. Em pé, apoiando-se na bengala, Dr. Arnaldo olhava para a pequena, com a esperança, de que ela fôsse fria. Já não lhe bastava uma sexualidade saudável e dominada. Não. Queria mais. Repetiu para si mesmo: — “A espôsa deve ser fria”. Continuou, duramente, o seu monólogo: — qual­quer volúpia, mesmo entre marido e mulher, é uma mácula, realmente uma mácula. Sorriu para Letícia, que não sabia por onde começar. Êle respirou fundo:
— Você está bem, Letícia — e repetiu, com mais ênfase. — Agora, você está bem. Muito bem.
(Era de parecer que uma futilidade repetida adqui­re foros de transcendência). Depois de assoar-se ligei­ramente, Letícia guardou na bôlsa o lencinho bordado. Começa, vacilando:
— Tio Arnaldo, eu vim porque... — pára e conti­nua precipitadamente. — Eu estou aqui como filha, como se fôsse filha do senhor.
— Filha?
E ela:
— Faz de conta que eu sou sua filha.
Sorria, no seu enleio. O velho inclina-se, vivamente:
— Ótimo. Eu gosto de você como uma filha, vejo você como uma filha. Não faço diferença entre você e Engraçadinha. Ou faço? Faço diferença?
Responde, atrapalhada:
— Não, absolutamente. Aliás, desde que papai morreu, eu considero o senhor como pai.
Pensa: — “E se êle soubesse que a filha foi deflorada?” Ao mesmo tempo ocorre-lhe a reflexão: — “Palavra linda “deflorada!”” Imagina o choque do velho ao receber a noticia. Êle espera e deduz: — “É nobre de­mais para ser sensual”. Parecia-lhe que a mulher “no­bre” tem de ser fria, já que qualquer desejo — mesmo de marido para mulher — é fatalmente vil. Letícia que­ria fazer uma certa preparação. Deu-lhe a notícia, po­rém, à queima-roupa:
— Titio, eu não sou mais noiva de Sílvio.
Silêncio. Discreto espanto do tio:
— Como? Ou será que ouvi mal? Repete.
Letícia respira fundo:
— Infelizmente, titio... Quero que o senhor com­preenda... Mas eu e Sílvio, de comum acordo, acha­mos que era melhor acabar...
O velho não se mexia. Era de opinião que um ho­mem de certa responsabilidade (êle não era nenhum joão-ninguém), sim um homem de certa responsabili­dade não pode perder a cabeça. Seu padrão de compor­tamento pessoal e político era um Epitácio, um Frontin. Um ou outro tinha, na vida prática, um ar de retrato oficial. Diante de Letícia, quis manter essa atitude chatamente fotográfica. E como realmente não exteriorizava o seu tumulto interior, sentia-se mais do que nunca um Frontin, um Epitácio. Outro êxito pessoal sobre a emotividade foi a voz firme e nítida:
— Você está brincando? Não pode ser, minha filha! Desmanchar um noivado que não tem 48 horas? E, além disso, não, Letícia, não, e nem creio que você seja des­sas... — e repete pondo a bengala em cima da secretária: — Se você fôsse uma leviana, vá lá! Uma menina como você só faria se tivesse um motivo, um grande motivo. Minto? Fala!
Tomou coragem:
— Titio, há, titio, êsse motivo! Pode crer: — há! Dissera tudo de um jato. Ainda contido, êle pensa que a figura de um Frontin, de um Epitácio (a face do Frontin era rósea como nádega de anjo) não compor­tava nem berros, nem murros. Mais do que nunca, cumpria-lhe não se exaltar. Pensou também nos deba­tes da Câmara dos Comuns de bom nível. Letícia come­ça a achar que aceitara uma missão superior às suas fôrças: — “Titio não sabe de nada. O meu noivado é um detalhe. O importante é Engraçadinha. Ah, quan­do êle souber que Engraçadinha foi deflorada! É como é que eu vou dizer? Como? Êle foi até o fundo da bi­blioteca e volta, lentamente. Está sentindo falta de alguma coisa e não sabe o quê.” Estaca diante da so­brinha :
— Bem. Há um motivo. Vejamos qual.
Letícia torce e destorce as mãos.
— Titio, eu soube que Silvio gosta de outra. Êle próprio não nega. O senhor não acha que isso é um motivo?
Desta vez, êle perde um pouco a calma:
— Há outra? Sílvio gosta de outra? Ah, não! Pro­testo e como?
Continua sentindo que lhe faltava alguma coisa. Mas o quê? Repetiu, com energia: — “Ah, não! Nunca! Não acredito”. Letícia está sob a idéia, fixa: — “Quando êle souber da gravidez!” Dr. Arnaldo anda de um lado para outro. Coisa curiosa! No meio de sua angústia geral, há um sofrimento menor e indefinível. “Falta alguma coisa”, repetia para si mesmo. Já se controla menos e pergunta:
— E que outra? Se você afirma, sabe. Ou não sabe? Tem que saber! — Alteia a voz: — “Quem é a outra?”
Letícia vacila: — “Digo ou não? Ou é melhor di­zer?” Conclui: — “Vou dizer”. Sem desfitá-lo, pede:
Não se exalte, titio. Não quero que o senhor fi­que zangado.
Pela primeira vez, zangou-se, de fato:
— Menina, quem é que está exaltado ou zangado? Você não me conhece, menina!
Já lhe custa conservar o autocontrôle. E continuava a sentir que lhe faltava, mas o quê? Olha em tôrno e, súbito, pousa a vista na bengala. Era aquela a origem da angústia menor e marginal. De fato, sem a bengala sentia-se um ser desfalcado, incompleto. Com um movimento sôfrego e triunfante, apanhou-a em cima da mesa de jacarandá. Agora, sim! Com aquilo na mão, voltava a ser êle mesmo, em tôda a plenitude. Volta-se para Letícia, que o olha, atônita. Exige:
— Há uma outra. Muito bem. Tem um nome. Quero o nome. O nome!
Disse, afinal:
— Engraçadinha.
Estupefacto, murmura:
— Não... Não...
Mas a outra, desesperada, foi até o fim:
— Êles se gostam, titio! Êles se amam! Devem se casar!
O tio recua como se tivesse recebido um pé no peito. Logo, reage; perde a cabeça. Deixou o ar de fotografia de Presidente ouvindo o Hino Nacional. Não é mais retrato. Deu murros na mesa: — “Menina, você está louca! Está maluca, menina?” Arquejava: — “Impos­sível! Qualquer casamento, menos êsse! Não admito! Engraçadinha com Sílvio, não!” Letícia ergueu-se. Co­meçou a sentir uma pressão nos maxilares. Sua calma se fundiu numa agressividade histérica:
— Vão se casar, sim! Ela está grávida! — E solu­çava: — Grávida!
O velho já não gritava mais. Não esmurrava a mesa. Tinha mêdo.

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